Para conciliar os estudos com a maternidade, mulheres vivem rotina exaustiva e quase sempre sem nenhuma rede de apoio
Todos os dias, a estudante de Odontologia Letícia Roque, de 28 anos, acorda bem cedo para dar início à sua rotina de se arrumar e levar a filha de quatro anos até a casa de seus sogros. O casal fica com a menina para que Letícia vá para a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), no campus Maracanã, Zona Norte da cidade. A estudante sai de Realengo, Zona Oeste do município, e leva em torno de duas horas de viagem para chegar à Uerj. A jornada dupla faz parte da realidade de muitas mães e, por vezes, torna-se tripla para as mulheres que precisam trabalhar fora.
Em uma pesquisa realizada pelo Infojobs com 742 mulheres de 18 a 60 anos, cerca de 83% das entrevistadas afirmaram viver a dupla jornada de trabalho, tendo que cuidar de crianças e realizar atividades domésticas. Além disso, 45% delas relataram que não têm rede de apoio em casa.
Letícia, que passa 12 horas diárias na universidade, conta que graças à ajuda dos avós pode deixar a pequena com alguém de confiança e continuar sua formação: “Eu consigo conciliar a vida materna com a acadêmica por conta da ajuda deles, que ficam com ela o dia inteiro. Busco ela de tarde, porque fico de 6h30 até 17h da tarde na faculdade”.
A estudante, que se tornou mãe durante a graduação, conta que, ao descobrir a gravidez, sua maior preocupação foi se conseguiria dar conta das duas funções e ainda manter a produtividade acadêmica. “Ao mesmo tempo que eu tinha que me dedicar à minha filha, eu ainda precisava ser muito produtiva na faculdade, ler muito e ainda ter diversos trabalhos para fazer. Nós que somos mães e temos uma rotina em casa nem sempre temos disponibilidade emocional e psicológica para nos dedicarmos 100% aos estudos. Eu ainda me sinto muito limitada dentro da minha rotina, que é estudar e voltar para casa. Eu não consigo fazer uma extensão de mim mesma dentro da universidade”.
A solução encontrada por ela é realizar o máximo de atividades acadêmicas possíveis durante as horas que passa na universidade, visto que quando chega em casa toda a sua atenção é voltada para a filha e os afazeres domésticos. “Ela é uma criança autista que precisa de muita atenção. Confesso que estudar no final de semana em casa é muito complicado e eu não consigo, porque preciso me dedicar também a minha casa e ao meu casamento”.
Para Letícia, o apoio que recebe da família é a base para continuar estudando: “Tenho uma rede de apoio muito forte dos meus pais e dos meus sogros. Por morarem perto de mim, ajudam bastante na minha rotina. O meu marido me apoia muito e me ajuda em tudo o que é necessário também. Eu me sinto muito privilegiada por isso”.
Mãe de uma menina de 1 ano, Mariana Rodrigues se vê em um dilema diário porque nem sempre pode contar com uma rede de apoio. Aos 26 anos, ela está prestando mais uma vez vestibular para tentar ingressar no curso de Direito. “Eu só tenho a ajuda da minha mãe durante alguns dias da semana, porque o pai da minha filha trabalha o dia todo e não pode ficar com ela. Quando eu estava grávida, pensei em não voltar para a faculdade, porque eu pensava com quem eu deixaria a minha filha quando a minha mãe não pudesse ficar. Essa é uma preocupação que não vejo a maioria dos homens terem.”
Atualmente, Mariana consegue lidar com a situação, mas a cabeça da jovem já está no futuro. “Hoje é mais tranquilo porque eu não comecei a faculdade ainda. Quando eu for aprovada, a única pessoa que eu vou ter para me ajudar vai ser a minha mãe mesmo. Pagar uma creche ou uma pessoa para cuidar da minha filha por enquanto não vai dar”, desabafa Mariana.
O dia a dia é ainda mais desafiador para Juliana Silva, de 32 anos, que revela não ter ninguém com quem deixar a filha de 15 anos. A estudante da Uerj revela que precisou deixar a filha, na época com 12 anos, sozinha em casa no início da graduação durante os horários em que estava na faculdade: “Na época foi um pouco complicado, porque ela ia para a escola e depois ficava sozinha em casa, geralmente na parte da tarde e início da noite. Hoje, ela está com 15 anos, então tem um pouco mais de responsabilidade para ficar sozinha, mas às vezes sinto que, por passar muito tempo longe, não fico disponível para ouví-la. Tem semanas que não consigo ser a mãe presente que eu gostaria”.
As três mães concordam que as universidades deveriam ampliar a rede de apoio para as mulheres que precisam. Segundo o Coletivos de Mães Uerj, a universidade vem falhando em não oferecer ajuda e nem incentivar que elas sigam estudando. O coletivo ainda reivindica espaço de acolhimento para amamentação, combate ao assédio moral a mães dentro da Uerj e substituição do auxílio-creche por bolsa permanência.
De acordo com relatos de estudantes do curso de História e de Ciências Sociais, ambos localizados no 9° andar da Uerj do Campus Maracanã, foi a partir do coletivo de mães que um fraldário foi instalado dentro do banheiro feminino daquele andar. Essa era uma demanda de mães que precisam de um espaço minimamente adequado para trocar a fralda dos bebês.
Além da falta de estrutura adequada no ambiente universitário, as mães precisam lidar com constrangimentos partindo de seus próprios professores. Através do perfil no Instagram, o Coletivo Mães Uerj divulga diversos relatos de mulheres que precisaram levar seus filhos para a sala de aula.
“Eu acho esses comentários uma falta de humanidade, de princípios e de respeito ao próximo. Acho que tudo que uma mãe universitária mais quer é se sentir acolhida para poder exercer suas potencialidades e não ser alvo de comentários que façam ela sentir que não deveria estar ali, que sua vida tem que ser encerrada com a maternidade. Os sonhos profissionais de uma mulher não acabam quando ela se torna mãe e é importante que esse direito seja reconhecido”, disse a estudante Juliana.
Em abril deste ano, o pró-reitor Daniel Pinha, responsável pela Pró-Reitoria de Políticas e Assistência Estudantis (PR4), participou de uma reunião com representantes do Coletivo de Mães e Pais da Uerj. No encontro, foi entregue um dossiê apresentado pelo coletivo para discutir as demandas urgentes das mães universitárias. Em seu perfil no Instagram, a PR4 informou que está atenta à situação das mães e que está “trabalhando para promoção da equidade no ambiente universitário, para que todas possam seguir com seus estudos e atividades acadêmicas”.
A Pró-reitoria também realiza mensalmente o encontro “Aldeia: cuidado e acolhimento materno na Uerj”, exclusivo para mães estudantes de graduação e pós-graduação da universidade. Segundo o órgão, o objetivo é oferecer a essas mulheres um espaço de acolhimento, escuta, troca de vivências e apoio mútuo.
Além disso, uma pesquisa de perfil está sendo realizada pelo projeto Aldeia para identificar as principais demandas das mães universitárias. As mães estudantes que desejem participar da pesquisa podem responder ao formulário.
O Rampas procurou a PR4 para saber sobre outros projetos e iniciativas voltadas para mães estudantes da Uerj, mas até o fechamento desta reportagem não obtivemos resposta.
Saúde mental de uma mãe universitária
Mãe solo, Juliana percebe que sua saúde mental é afetada pela sobrecarga da dupla jornada: “Parece que por mais que eu me esforce, nunca vai ser suficiente. Tem sempre uma cobrança aqui, um prazo de entrega que eu não vou conseguir cumprir, além de ter que dar atenção para a minha filha e ajudar ela em suas questões. Tento fazer um ranking de prioridades. Sei que eu não deveria me cobrar em excesso.”
Para Mariana, estudar para o vestibular e cuidar de uma criança de quase um ano também não tem sido tarefa fácil. Cansaço, incertezas e desânimo são frequentes. “Minha bebê precisa de mim a maior parte do dia. Só consigo estudar quando ela dorme, e, na maioria das vezes, isso é de madrugada, então eu só consigo focar nos estudos nesses horários. Durante o dia, acabo ficando muito cansada e tem vezes que aquele sentimento de culpa e tristeza bate na porta, tornando tudo mais difícil.”
Letícia também revela que o mesmo sentimento insiste em permanecer. Apesar de ter apoio em casa, ela sente que algumas vezes dá mais prioridade para os estudos do que para a maternidade: “É óbvio que eu me sinto culpada por não estar cuidando da minha filha e sim estudando. Tem vezes que eu até me sinto menos mãe”.
A constante pressão para equilibrar maternidade, estudos e trabalho pode levar a altos níveis de irritabilidade, ansiedade, estresse, insônia, baixa autoestima e, em alguns casos, depressão.
A psicóloga Rosa Silva explica que o impacto da dupla jornada nessas mães pode ser muito grave, gerando um estado de exaustão física e mental. “O impacto é devastador, principalmente para mães solo ou quando a outra parte é ausente nas tarefas domésticas. Muitas mulheres estão cada vez mais deprimidas por não conseguirem dar conta e ainda exigem de si uma perfeição que não existe. A sociedade tem enorme parcela de responsabilidade por continuar colocando sobre os ombros da mulher um rótulo de que tem que dar conta de tudo sem reclamar”, explica Silva.
O suporte emocional e a rede de apoio são fundamentais na maternidade. Rosa sugere que a família esteja atenta às mudanças de comportamento para que assim possam oferecer ajuda: “A rede de apoio é primordial para que eles sinalizem o problema e forneçam um local de escuta e acolhimento direcionando essa mãe para uma ajuda profissional, quando necessário. É importante que a família ajude na rotina diária e evite cobranças exageradas, julgamentos e críticas em relação ao que essa mulher está realizando”.
Esperança por dias melhores
Apesar das dificuldades e da rotina pesada, a psicóloga explica que é essencial que essas mães busquem criar estratégias para cuidar de si e lidar com a sobrecarga.“É importante entender que elas não têm que dar conta de tudo e que aprendam a estabelecer limites consigo e com o outro. Elas podem adotar uma alimentação saudável, realizar exercícios físicos, tirar um tempo para se divertir e também recorrer à terapia”, explica a psicóloga.
É o que Letícia tenta fazer. A estudante realiza atividades físicas todos os dias e faz a sua própria marmita com alimentos mais saudáveis para levar para a faculdade: “É a única coisa que eu consigo fazer atualmente para ficar minimamente saudável. Gostaria de fazer mais coisas, como terapia? Sim. Mas por enquanto é isso que me tem sustentado”, explica ela.
Olhando para o futuro, as três mães ouvidas na reportagem tentam ter pensamentos positivos. Letícia afirma que, embora existam desafios, desistir não é uma opção: “Seja forte e fique firme. É uma fase que vai passar. Estar em uma universidade é um orgulho. Imagina o quanto de orgulho o seu filho vai sentir por essa jornada que você percorreu. Mas nós precisamos de apoio, de amigos, de família. É sempre bom pedir ajuda, porque nós somos mulheres normais, que ficam cansadas e chateadas. Essa é a vida”.
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