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Aos alunos, com carinho

Atualizado: 9 de abr.

Histórias de violência e superação ouvidas por professor de jovens e adultos numa escola noturna no Rio de Janeiro


Por Luciano Alves




“Pensem em algo que acontece em seu quintal e que poderia virar pauta jornalística”. Foi assim que a professora Fernanda da Escóssia, do curso de jornalismo da Uerj, me fez pensar neste tema. Eu me chamo Luciano Alves e, além de estudante de Jornalismo, sou professor de química da rede estadual do Rio de Janeiro. Leciono na Nova Educação de jovens e adultos, conhecida como NEJA. E aqui conto um pouco do que vivi nesses 25 anos como professor.


Quando comecei minha carreira no magistério público, recém-formado e com pouco mais de 20 anos de idade, muitos acharam que eu não passaria do primeiro mês. Realmente o impacto inicial foi enorme para um jovem que vivia numa bolha da Universidade e da sua casa e que, de repente, se vê na realidade sem filtros de uma sala de aula do ensino médio noturno e público da cidade do Rio.


Os alunos, na sua maioria, viviam numa comunidade próxima, muito violenta. Reagiram com hostilidade ao ver como professor alguém que fugia dos padrões que eles respeitavam como autoridade. Eu representava tudo aquilo que oprimia e era negado a eles: um jovem branco de classe média que estudou em boas escolas e se formou sem precisar trabalhar para ajudar no sustento da família. Lembro que nas primeiras semanas escutei uma aluna dizer: “O que esta criança vai ensinar para a gente?”.


Passado o susto, comecei a perceber coisas que me surpreenderam positivamente. Primeiro, que eu era um pouco camaleão e conseguia me adaptar a diversas situações. E que, ao contrário do que eu pensava, era mais fácil se adaptar num ambiente popular com pessoas simples do que num ambiente formal com pessoas elitizadas. Segundo, fui descobrindo que tratar as pessoas com empatia, educação e afeto funciona em qualquer lugar e tem o poder de superar hostilidades. E assim consegui seguir.


Aos poucos o cotidiano da escola foi se misturando com minha vida. Em pouco tempo estava completamente ambientado, convencido de que tinha feito a escolha certa. Percebi que a melhor maneira de conquistar o aluno era aliar o respeito pela pessoa que estava ali e que merecia o melhor que eu podia dar, com a vontade de aumentar a sua autoestima, mostrando a ele que tinha condições de aprender qualquer conteúdo, independente de suas limitações.


Vi que precisava adaptar o conteúdo da minha disciplina, química, para que ela pudesse chegar até meu aluno de uma maneira suave. Adaptar seria explicar química como quem senta na sala de casa deles e conversa de maneira calma, com a linguagem deles e explorando o universo que eles conhecem. Era preciso usar a técnica do camaleão outra vez. E deu certo. Ganhei amigos, admiração, festas de aniversário e demonstrações de gratidão tão fortes que comecei a achar que não conseguiria dar conta da responsabilidade por tudo que cativei.


A minha sala de aula era a mais diversa possível, pois o ensino médio noturno era procurado por toda sorte de pessoas. Tinha desde a dona de casa que, após criação dos filhos, resolvia voltar a estudar, até adultos que precisavam conciliar os estudos com a rotina diurna de trabalho, incluindo os adolescentes que recorreriam ao ensino noturno por motivos de ordem familiar. As diferenças conviviam bem na sala de aula. Para o professor, isso era estimulante e desafiador.


Até 2011, qualquer pessoa podia se matricular no ensino médio regular noturno, independentemente da idade, e cursar os três anos desta modalidade como todo aluno da rede. O que acontecia, porém, era que os alunos da noite, nas avaliações de desempenho, acabavam baixando os índices da rede, colocando o Rio entre os últimos do ranking nacional no quesito educação.


Nos governos de Garotinho/Rosinha foi criado um conceito para avaliar cada escola do estado. Este conceito se transformava num adicional de 500 a 100 reais para o professor, conforme o índice obtido fosse de ”A” até “E”. As escolas noturnas ficavam com os piores índices, e toda a comunidade da escola era punida duas vezes: primeiro, pela dificuldade do estudo noturno após um dia inteiro de trabalho; e segundo, por ser desmerecida com um conceito baixo que também punia o professor, diminuindo seus ganhos.


Era uma injustiça, mas não foi pensando nisso que o governo resolveu mudar a fórmula. A fim de aumentar os índices do Rio no cenário nacional, os alunos da noite foram direcionados para uma nova modalidade de ensino médio, o NEJA. Nesta modalidade, os alunos completariam o ensino médio em quatro módulos semestrais, ou seja, dois anos.


Os alunos com mais de 18 anos que procurassem matrícula no ensino médio não poderiam mais cursar o regular, deveriam ser direcionados para o NEJA. O ensino e o conteúdo que eram oferecidos em três anos seriam reduzidos para dois, com a excitante promessa de acelerar a formação de alunos supostamente “atrasados” e corrigir a distorção entre série e idade. A minha disciplina seria oferecida nos módulos 2 e 4 - eu teria de sintetizar três anos em dois semestres. 


Minha experiência no NEJA, que já dura dez anos, exigiu novas habilidades frente a novos desafios. Já não bastavam didáticas diferenciadas com foco na realidade dos alunos. Além disso, era necessário garantir a própria permanência do aluno na escola.


Mas o que fazer quando o aluno me diz que não consegue mais ir porque o patrão impõe uma jornada cruel e punitiva, e a pessoa depende daquele salário para sobreviver? O que dizer quando alguém diz que não vai mais porque recebeu o diagnóstico de doença grave sua ou de seu filho e tem que dar prioridade ao tratamento? Como reagir quando ele diz que não vê mais condição de ir porque perdeu tudo e até a própria casa numa enchente ou desabamento?


Problemas ocorrem todos os dias. E um dia percebi que meu aluno Alexsandro, muito assíduo e participativo, começou a faltar. Não precisei perguntar o motivo. Ele veio falar comigo e desabafou dizendo que estava com depressão e ansiedade, tomando remédios controlados. Dias depois fiquei sabendo pelo professor de matemática que Alexsandro havia engravidado uma aluna da escola.


A menos de 2 meses de concluir o último módulo, não o vejo mais há semanas. Na última vez que veio à escola, admitiu para mim que ia ser pai e que aquilo tinha mudado sua vida. Senti que a relutância em me contar era o medo de me decepcionar. Espero que ele compareça nem que seja para prestar as provas finais.


Outra aluna, Milena, não poderá fazer nem mesmo as provas finais. Assim que se matriculou no primeiro módulo descobriu que estava grávida. Frequentou as aulas até bem pouco tempo. Às vezes eu tinha a impressão que a criança ia nascer ali na sala, e já tínhamos combinado até um plano de ação conjunta para o caso. 


Um dia, um colega de sala pediu para que eu corresse até o seu celular para atender a chamada de vídeo da nova mamãe. Ela quis me telefonar direto do quarto do hospital, já pronta para ter o bebê.  Milena não poderá mais frequentar as aulas, muito menos prestar as provas finais. O estado lhe assegura o direito de fazer as tarefas em casa - desde que tenha alguém disposto a levar e trazer as avaliações enquanto Milena está de licença maternidade, cuidando de Alana.


Desfecho não tão feliz tem a história da Paloma, que ainda no Neja 2 me trouxe um diagnóstico complicado, junto com um laudo médico. Uma pesquisa na internet me mostrou que era uma doença degenerativa autoimune que poderia ficar adormecida, mas que também poderia progredir rapidamente, levando minha aluna perder os movimentos.


Isso me fez repensar a vida ao descobrir que por trás do sorriso aberto e da gentileza constante de Paloma havia dores insuportáveis que ela sentia e não deixava transparecer. Passei a abonar suas faltas, permitir que fizesse avaliações em casa, e, o mais difícil, lutar para que outros professores fizessem o mesmo até a formatura - que felizmente aconteceu.


A formatura poderia ser um sonho desfeito para Wesley quando, há menos de dois meses de concluir o último módulo, sua casa desabou. Um amigo dele veio avisar que ele ficaria ausente das aulas ou até nem voltaria. O amigo contou que a casa balançava sempre, mas eles não saíam porque não tinham para onde ir.


O que faz um professor ao receber essa notícia? Minha primeira preocupação era saber o estado de saúde física e mental do meu aluno. Seu amigo respondeu que tinha se salvado porque estava na laje da casa, mas que não tinha sequer roupa para comparecer à escola, além de ter perdido familiares.


Cada um colaborou com uma peça e calçados, além do material escolar. Wesley conseguiu seu diploma. Mesma sorte não tiveram aqueles alunos que perdi para o serviço militar, as drogas, a violência doméstica e ou cansaço físico de quem até tentou, mas não suportou a carga de conciliar os estudos com jornadas exaustivas e abusivas de trabalho.


A sensação de impotência é tão grande que todas as outras questões parecem menores. Até os tiroteios antes, durante e depois das aulas, que abalam nosso foco nos estudos. Diante disto tudo, o que mais pode funcionar é a formação de uma rede de apoio. Essa é a esperança. Esta rede de apoio é a formação de um ambiente solidário, onde todos estejam comprometidos com todos, desde a tia do refeitório até a equipe gestora, passando pelos alunos e professores.


Na pandemia, observei que menos de 10% dos alunos conseguiam acessar as plataformas oferecidas pelo governo para acompanhar os estudos. Decidi, extraoficialmente, disponibilizar meu whatsapp pessoal para todos, e foi por ali que tudo começou a funcionar.

Eu atendia praticamente 24 horas por dia, todos os dias, tirando dúvidas, dando explicações, explicando e recebendo atividades. Consegui resgatar a maioria dos alunos, imprimi os trabalhos que me entregavam por ali, para ficar caracterizado algo oficial. Muitos disseram que, se não fosse essa oportunidade, teriam desistido, até pelos problemas sérios que todos enfrentavam.


Vejo o resultado do meu trabalho no filho do meu ex-aluno Adriano, que se chama Luciano, numa homenagem a este professor e agora repórter. Ou então nos suspiros da Dona Maria, também ex-aluna, que, mesmo depois de formada, toda sexta-feira faz questão de me levar os doces de que tanto gosto.  “O senhor nunca vai encontrar outro igual”, me diz. De fato nunca encontrei.


Nas festas de formatura, quando sou homenageado pelos meus alunos, costumo dizer que a educação e o que aprendemos é o nosso bem mais precioso. É algo que ninguém pode nos tirar. Repeti isso por muitos anos, parecia discurso pronto. Agora, vou além. Digo que a única coisa que ninguém pode nos tirar, mesmo quando já não estivermos mais vivos, é a diferença que fazemos na vida de outras pessoas.


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