A história e os desafios de uma fábrica de pios no interior do Espírito Santo
Com cuidado, o músico Fábio Coelho abre uma caixa de madeira, fechada por um tampo de vidro. A caixa guarda uma coleção de pios, objetos que imitam cantos dos pássaros. “Esse aqui é o som do periquito”, explica Fábio, gerente de uma fábrica que há 120 anos produz pios, herança da família. Hábil, começa a soprar os pios 26 e 32, ambos imitam o canto do periquito. Fora da fábrica, os pássaros respondem com uma orquestra. “Vou começar a piar o do gavião, rapidinho eles param”, brinca. Não deu outra.
A fábrica nasceu em 1903 em Cachoeiro de Itapemirim, no Espírito Santo, sob o comando de Maurílio Coelho. Foi a primeira da América Latina especializada na fabricação de pios. E, ainda hoje, é a mais importante. Mais de um século depois, o lugar leva o nome do patriarca, “Pios Maurílio Coelho”, e a sua memória vive nas palavras de Fábio Coelho de 52 anos, seu bisneto e atual gerente do comércio.
Terra de Roberto Carlos, Cachoeiro se orgulha da veia musical. Não raras vezes, o centro comercial de Cachoeiro é embalado pelas mais clássicas do filho mais amado da cidade. A lista de queridinhos, entretanto, é longa. O Rei divide o amor dos cachoeirenses com outros conterrâneos, o cronista Rubem Braga e, claro, a fábrica de pios.
Fábio conta que a fábrica surgiu da engenhosidade de Maurílio, um inventor caseiro, que construiu uma roda d’água e o maior moinho de fubá de Cachoeiro de sua época. Aproximou-se dos indígenas da etnia puris — habitantes da região no início do século passado — e observou que eles confeccionavam instrumentos de madeira imitando os pios das aves. O instrumento ajudava a atrair as presas para a caça, mas também servia para produzir música. Maurílio aprimorou os objetos e começou a vendê-los como apoio para caçadores. Isso até os anos sessenta, quando a caça foi criminalizada no Brasil.
Apesar disso, Fábio é enfático: “Os pios são, antes de tudo, um instrumento musical”. Músico multi-instrumentista, Fábio se lembra do disco “Urubu” (1976), de Tom Jobim, e da paixão do maestro pelos pios — instrumentalizada nessa obra. E diz que “Lança Perfume” (1980), sucesso de Rita Lee, também tem um toque do instrumento logo no refrão.
O uso de sons imitando o canto dos pássaros também ajuda na musicoterapia. Biólogos utilizam as peças no dia a dia das pesquisas. Segundo Fábio, os pios Maurílio Coelho são exportados para documentários das gigantes americanas National Geographic e Animal Planet. “Os pios, a princípio, têm a função de reproduzir o canto dos pássaros para gerar interatividade.”
Segundo o gerente, a fábrica preserva alguns princípios. “Apito é apito, pio é pio!” — repete Fábio, em tom de brincadeira, mas deixando explícito que o pio é bem mais que um apito e possui uma finalidade musical. O processo de produção se mantém como no passado, com “pouquíssimas mutações”. “Cada peça é feita é torneada a mão, não existe uma máquina que copia a peça. Maurílio fez um modelo de fabricação artesanal que atravessou o século e se mantém no mercado, competindo com máquinas automatizadas”, conta Fábio.
Os primeiros pios eram feitos a partir do contato direto de Maurílio com os pássaros. O inventor guardava o canto na memória e nos primeiros moldes de pios, cunhados ainda na mata. Depois, esses pios eram aprimorados em tornos também elaborados por Maurílio, tendo como matéria-prima, principalmente, madeira de lei. A proximidade entre os sons reproduzidos e o canto real dos pássaros fez a fama dos pios de Cachoeiro. Mais de um século depois, o propósito, segundo Fábio, permanece o mesmo.
Atualmente a fábrica apresenta 45 modelos de pios disponíveis, com preços que podem variar de R$50 a R$400. O valor das coleções também é relativo: tem algumas de R$1.000 e outras de R$7.000. O tipo de madeira também influencia no valor. De acordo com Fábio, a fábrica só usa madeira oriunda de extração legal, desde madeiras exóticas as mais populares, como as da linha jatobá. Também há pios fabricados com madeira reciclada. “Tem madeira que tem mais de 50 anos que está aqui na fábrica [...] Nós produzimos, produzimos, e não acaba nunca”, acrescenta Fábio, lembrando que os pios são instrumentos que não passam de poucos centímetros.
A fábrica de pios foi tombada como Patrimônio Cultural Municipal em 2003. Ao lado da Casa de Cultura Roberto Carlos e da Casa dos Braga, onde viveu o cronista Rubem Braga, forma o tripé de museus da cidade, parada obrigatória para os turistas e rota certa das visitas organizadas pelas escolas públicas e privadas.
Apesar disso, Fábio reclama da falta de políticas públicas para manter o negócio, como incentivo fiscal nos âmbitos municipal e estadual. Como a fábrica é legalmente uma indústria — embora funcione também como museu e centro cultural — está impedida de pleitear recursos com base nas leis de incentivo à cultura. Fábio já recebeu convite para se mudar para outro município, mas recusou. “Ficar aqui é uma forma de a gente reiterar que aquilo que é nosso, que nasceu aqui, é muito importante sim.”
Outra preocupação é com os imitadores. “Eu não sei como que os Tigres Asiáticos ainda não chegaram aqui”, brinca. A dificuldade em patentear cada uma das peças ainda se soma às muitas cópias vendidas no comércio virtual. Nesse cenário, uma alternativa que tem mantido a fábrica funcionando é a exportação internacional, feita sob encomenda. O comércio local já não sustenta a produção de pios, que agora também estão disponíveis para compra, em todo Brasil, pelo site da fábrica.
Na contramão do mercado, a escolha de Fábio é preferencialmente pela produção industrial nos moldes artesanais, mantendo uma tradição familiar que já rompe a quarta geração. O assunto, apesar de motivo de orgulho, toca em um lugar sensível. A ferida é a sucessão da fábrica: “Eu penso nisso a cada segundo da minha vida.” O antigo gestor, irmão de Fábio, apostou as fichas em um dos herdeiros desde o nascimento: o menino ganhou o nome do tataravô, Maurílio. Apesar disso, o rapaz se mudou para a capital, Vitória, e, pelo menos até o momento, não se sabe quem ficará no lugar de Fábio no futuro.
Hoje, Fábio conta com a colaboração de dois funcionários e, a depender da demanda, três ou mais profissionais também auxiliam no trabalho. No interior da fábrica, a produção dos pios divide espaço com alguns cajons, instrumentos de percussão elaborados por Fábio. A fábrica, além das visitas turísticas, abriga projetos culturais diversos, como trabalho com menores em processo de liberdade assistida (encerrado logo depois da pandemia) e a “Canja do Coelho”, um evento musical que reúne artistas na fábrica. Com seus 120 anos, a fábrica de pios continua misturando tradição familiar com a história da cidade. Sobre desafios futuros, o gerente resume: “O maior desafio é continuar trabalhando”.
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