Refrigeração nos coletivos é obrigatória, mas ainda segue ignorada em algumas linhas; especialista alerta para as consequências do calor excessivo
De segunda a sábado, Liliane Nascimento, de 43 anos, sai de Campo Grande em direção ao Centro da cidade para trabalhar em uma loja de bijuteria. No dia 30 de Abril, o que seria mais um dia comum na rotina de Liliane acabou ficando marcado na memória. A lojista decidiu fazer a viagem diária no ônibus 2236 (expresso) para chegar mais cedo: ‘‘Estava muito abafado e não tinha ar-condicionado, comecei a passar mal e minha pressão abaixou”, conta. Segundo Liliane, uma das passageiras lhe deu suporte para conseguir ajuda: “Precisei sair do ônibus no caminho e minha amiga pôde me socorrer. Fiquei indignada. A passagem custou caro e não tinha ar”.
Em 2023, a aposentada Georgia Goulart, de 58 anos, se viu na mesma situação enquanto ia para Guadalupe: “Quando entrei no ônibus 393 (Candelária x Bangu) e paguei a passagem, senti um calor dos infernos. Perguntei ao motorista e ele me respondeu que o ar-condicionado estava ligado, mas não dava vazão. As janelas eram aquelas lacradas”. Ela preferiu não seguir viagem e pediu ao motorista que a deixasse no ponto seguinte. “Não tive condições de ficar em um ônibus quente daquele, sem conseguir respirar direito. Foi mais seguro descer e pegar outro”, relata.
Nos horários de pico, a alta concentração de pessoas dentro dos coletivos intensifica o transtorno, conta o professor Miguel Souza: “Eu me sinto uma sardinha enlatada dentro de um forno. É um absurdo pagar passagem e passar por isso. Os passageiros merecem um tratamento melhor”.
Segundo a Prefeitura do Rio, foram aplicadas 7,8 mil multas, em 2023, aos consórcios de ônibus, dos quais apenas 910 foram quitados. A Prefeitura afirma ter descontado cerca de R$ 35 milhões do subsídio transferido às empresas. De acordo com a Secretaria Municipal de Transportes (SMTR), em 2023, 4.285 ônibus urbanos circulavam pela cidade, mas 990 não tinham ar-condicionado. O consórcio Transcarioca, que atende a Zona Norte e a Zona Oeste, ocupou o primeiro lugar com cerca de 331 ônibus sem refrigeração.
Para contornar a situação, o SMTR disponibiliza o telefone ‘1746’ para denúncias de irregularidades em transportes públicos. De acordo com a Central de Atendimento, em 2023, foram registradas mais de 53 mil reclamações relacionadas à temperatura dos ônibus no município. O Rampas entrou em contato com a Secretaria, mas obteve respostas.
Para o economista Paulo Moreira, o problema é resultado da tentativa de redução de custos operacionais por parte das empresas. "Manter o ar-condicionado ligado aumenta significativamente o consumo de combustível, que eleva os gastos dos consórcios”, explica. No entanto, segundo Moreira, a redução de custos dessas despesas no presente pode gerar ainda mais gastos no futuro: “Economizar a curto prazo pode resultar em prejuízos tanto em saúde pública quanto na produtividade dos trabalhadores, que enfrentam jornadas de trabalho iniciadas com desconforto e exaustão causados pelo calor”.
O Rampas também pediu o posicionamento da Rio Ônibus em relação à falta de ar-condicionado nos coletivos do Rio de Janeiro, mas até o fechamento desta reportagem não obteve resposta.
Quem dirige também é refém das altas temperaturas
Um dos motoristas da linha 759 (Coelho Neto x Cesarão), que prefere não se identificar, tem dois companheiros diários inseparáveis na profissão: o calor e o estresse. “Eu trabalho nesta linha desde antes da pandemia e conto nos dedos às vezes em que pude dirigir ônibus com ar-condicionado”, lamentou o condutor. Mesmo em meio à dificuldade, o funcionário acredita que a situação possa melhorar nos próximos meses: “Eu percebi que novas linhas voltaram a circular pelo trajeto que faço, espero que nossos ônibus sejam trocados”.
Segundo reportagem do jornal Extra, o assento do motorista, localizado ao lado do motor do ônibus, pode alcançar pelo menos 53 °C em dias de calor intenso. Especialistas afirmam que casos parecidos podem comprometer a saúde dos condutores, que ficam expostos ao risco de desidratação e exaustão térmica.
Outro motorista de ônibus, este da linha 917 (Realengo x Bonsucesso), conta que os veículos que dirige têm ar-condicionado - mas na volta para casa, quando se torna passageiro, é impossível fugir do sofrimento: “Eu pego veículos da Transportes Barra nas linhas 803, 746, 745. Na prática, o ar está ligado, mas eu olho o termômetro do painel e a temperatura está nos 40°C”, revela o homem, que prefere manter o anonimato.
Quando o lazer vira tortura
Em fins de semana de calor, as praias da Zona Sul são o destino escolhido pela estudante de educação física Eduarda Silva, de 21 anos. Para chegar nos cartões-postais da cidade, a jovem utiliza a linha 457 (Abolição x Copacabana): “Me sinto sortuda quando pego um ônibus climatizado, mas quando não consigo, o caminho de ida vira uma tortura. O ônibus fica mais quente do que a própria rua e fico ansiosa para chegar na praia logo.”
O calor é tamanho que ela criou estratégias para reduzir o desconforto. “Prefiro pegar um ônibus que não tenha ar-condicionado, mas no qual eu consiga abrir e fechar as janelas, a tomar um transporte que tenha ar-condicionado ruim e janelas imóveis”, reclama.
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