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Foto do escritorGiulia Costa

Fernando Sabino, o caçador de palavras

Atualizado: 13 de abr.

Para lembrar o centésimo aniversário do escritor mineiro, seu filho Bernardo Sabino relembra a carreira e a personalidade do pai


Fernando e Bernardo, com seis anos, em seu colo. Foto: Bernardo Sabino

Rio de Janeiro, abril de 2023: “Quero falar com o senhor sobre Fernando, pessoa”, sinalizou essa repórter. “É Fernando Sabino!”, corrigiu Bernardo Sabino, meio desconcertado. A essa altura, ele lembrava do poeta português, enquanto eu tentava explicar que queria relatos da intimidade do meu personagem mineiro. Desfeita a confusão, nos cem anos de Fernando Sabino, seu filho Bernardo, 60, é o guardião da trajetória e da memória do escritor. Também faz questão de mencionar uma relação que “não era de filho para escritor, mas de filho para pai.”


Começa contando outra conversa, no Rio de Janeiro, madrugada de 1975: Toca o telefone. “Alô, filho? Sabe o que é?”.

Bernardo tinha certeza da natureza da conversa. Ligação fora de hora, mas nada incomum. Essa era mais uma das tantas chamadas que o pai realizava à procura de palavras. Principalmente daquelas que pareciam perfeitas para suas histórias — mas que, não raramente, escapavam de sua memória.


A relação difícil com a literatura não era segredo para ninguém, nem para os leitores. Sabino se queixava ora da máquina de escrever — que parecia longe demais — ora das pessoas que teriam inventado que ele era escritor. Ele queria mesmo era ser baterista de jazz. Bernardo confirma: "[ele] sofria muito para escrever e se divertia muito tocando jazz.” Apesar disso, as mais de 500 mil cópias vendidas de sua obra mais importante, o romance de formação “O Encontro Marcado” (1967), já na sua centésima edição, deixam claro que o sucesso veio mesmo do trabalho mais difícil.



Homem lendo um jornal
Fernando Sabino lendo jornal francês. Foto: Bernardo Sabino

As condecorações também: o Jabuti, por “O Grande Mentecapto” (1976) e o Prêmio Machado de Assis, da ABL (Academia Brasileira de Letras). Bernardo adianta que, mesmo assim, o conflito vocacional permaneceu: “Ele era muito inquieto”. Foi cronista, nadador, músico, cineasta e editor. Das duas últimas ocupações, Bernardo fala com carinho e um quê de ressentimento com a pouca visibilidade dos trabalhos do pai nessa área. Os filmes foram dez. Já a Editora do Autor, depois chamada Editora Sabiá, ficou com o pioneirismo na publicação de autores consagrados: Pablo Neruda, Gabriel García Márquez e Che Guevara. Entre os brasileiros, estavam os mais relevantes do século XX. No conteúdo, o momento de ouro da crônica ganhava destaque.


Sobre aquelas escritas pelo pai, Bernardo é enfático: “Eram muito simples, mas ninguém diria tão rapidamente o que ele disse em quatro, cinco palavras”. A que ele mais lembra era “Reunião de Mães”, que começava assim: “Na Reunião de Pais, só havia mães.” Nela, assim como em muitas outras, Sabino usa uma linguagem simples e direta.


Rafael Fava Belúzio, cronista mineiro e doutorando em Literatura Brasileira, enxerga a simplicidade do texto de Sabino como um fenômeno também ligado ao seu momento histórico de produção: “Fazer um texto grandioso talvez seja um pouco estranho a algumas vertentes literárias do século XX”. Pós-Doutorando do CNPq, Belúzio explica que, em certa tradição, a crônica “quer ser menor. Esse gesto menor dela é proposital. Ela entendeu que nessa consciência crítica da minoridade há uma força enorme.”


De fato, Sabino preferia períodos curtos e cenas cotidianas em seus textos. Apesar disso — ou talvez por isso — Sabino era um Caxias da língua portuguesa. Ou um “técnico”, como apelidou Bernardo. O escritor acreditava em uma literatura que parecesse menos densa. A preocupação constante era despreocupar o leitor, menciona Bernardo. Belúzio confirma: “Essa linguagem simples é um simples sofisticado. É uma simplicidade construída de propósito para o leitor gostar.” O estilo, segundo Belúzio, também vinha na rebarba da “tensão entre a complexidade de elaboração e a rapidez de publicação.” Esse ritmo acelerado da produção nos jornais, entretanto, para Belúzio, não sustenta a ideia de um Sabino escrevendo sempre “a toque de caixa”. Para ele, “às vezes, a crônica é um texto maduro, que demorou para ser feito, mas que sai em um momento pontual”.


A hipótese da mecânica de escrita, aceita ou rejeitada, não escondia o tom pessoal dos trabalhos de Sabino. Nos personagens autobiográficos, Geraldo Viramundo, Eduardo e o menino Fernando, o mineiro escreveu os seus principais protagonistas e boa parte de sua própria história. Essas obras se equilibravam entre a natureza simplista do texto e o convite introspectivo do autor — que também percorria um caminho emocional com as suas histórias. E o jogo de concessões não parou por aí. Belúzio destaca uma peculiaridade da literatura de Sabino: “Uma coisa que eu acho curiosa é como o cronista Sabino não tem tanto a sombra dos romances [...] Como leitor, eu não o vejo subordinando tanto um gênero ao outro. Sabino, o cronista, tem uma vitalidade muito interessante”. No diálogo entre os tipos textuais, "é como se com Sabino essas coisas se equilibrassem um pouco mais.”


Segundo Belúzio, a fluidez entre os estilos expressa um trânsito entre o gabinete e as ruas, possível herança literária de João do Rio, cronista carioca. No dia a dia, que vez ou outra virava mesmo história, a coisa não parecia ser diferente. Bernardo lembra os jornaleiros de rua que sempre recebiam visitas do pai, àquela altura, já esperadas. Nas conversas, o escritor fazia questão de saber da vida. Se estava tudo bem ou se faltava alguma coisa.


Com os filhos, era a mesma coisa. Bernardo descreve um Sabino entregue aos afetos. Presente na vida dos sete filhos, o escritor foi um pai carinhoso e preocupado. Nas trocas de conversa, procurava “o bem de todos” e, não esquecia da clássica: e os namoradinhos? Essas conversas informais tinham um lugar na vida familiar, uma herança iniciada com o patriarca dos Sabinos, Domingos, pai de Fernando e avô de Bernardo. Não raramente, a casa da família era rodeada por longas filas de desconhecidos ansiosos por conselhos. Entre eles, teve até governador, não se sabe se nas filas, mas certamente interessado em alguns minutos do patriarca. O relato foi feito pelo próprio Fernando Sabino, em entrevista ao Roda Vida, em dezembro de 1989. Anos mais tarde, ele é quem assumiria o legado: “era o dom dele, 99% os conselhos eram certos; eram conscientes e certos”, confirma Bernardo, tantas vezes aconselhado pelo pai.

Homem com seus filhos
Fernando Sabino e quatro dos seus sete filhos Foto: Bernardo Sabino

O orador de sucesso, vez ou outra, ficava sem palavras. Pelo menos as faladas. Questionado sobre ser mineiro, não titubeava: “Ser mineiro é não tocar nesse assunto”. A respeito de Minas Gerais, ele preferia escrever. E outros conterrâneos também, como sugere Bernardo: “Os mineiros criaram uma fantasia em cima de Minas quando levaram Minas para fora.” Belúzio prefere chamar de “mitologia”: “As Minas são Gerais”, brinca, suavizando, com o trocadilho, a tendência de unificação do discurso sobre a “mineiridade.” A fala única, entretanto, indica um problema apontado por Belúzio, “o relativo silenciamento dos cronistas do interior do Brasil, em prol da valorização das grandes cidades.” Certo cânone brasileiro “foi muito cruel com o interior do país e continua sendo.” Apesar disso, Belúzio faz questão de lembrar: “Sabino tem um lugar de muito privilégio, especialmente em Minas Gerais”.


Em Minas, o escritor é reconhecido e homenageado muitas e muitas vezes, seja no Espaço Acadêmico Cultural Fernando Sabino, da UFV (Universidade Federal de Viçosa), seja na estátua na praça da Liberdade, zona central e histórica de Belo Horizonte, onde quatro estátuas homenageiam os escritores mineiros que ficaram conhecidos como “Os quatro cavaleiros do apocalipse”: Sabino, Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos e Hélio Pellegrino. Essa amizade durou mesmo a vida inteira, pontua Bernardo. Muitas outras também.


Homens conversando
Fernando Sabino, Hélio Pellegrino, Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos. Foto: Bernardo Sabino

Com Vinicius de Moraes, foi regada a “boemia”. Com Clarice Lispector, imortalizada em muitas cartas. Em uma delas, Sabino garante: “Tenho tido muita vontade de brincar.” O desejo tem a ver com uma aspiração ainda maior. Sabino foi, antes e principalmente, homem querendo ser menino. Da infância, ele perseguia a mágica de ver tudo como se fosse a primeira vez, “com os olhos lavados de pureza”, como costumava dizer. Com o tempo, a fantasia virou de bordão a plano de fundo literário.


Mas Bernardo logo argumenta: “Não era só filosofia, ou fala para poder fazer texto, era a alma dele.” Alma que segue viva no Instituto Fernando Sabino, administrado por Bernardo desde 2014. O instituto tem um projeto com várias escolas mineiras e por todo o Brasil.


No centenário de Fernando Sabino, Bernardo visita as memórias de Fernando, pessoa. Lembra-se do pai carinhoso, do ser humano humilde. Do apartamento de 50 metros quadrados em Ipanema. Dos meninos pobres que foram ajudados secretamente pelo pai. Das histórias dos jornaleiros pelas quais Sabino tanto se interessava. E das próprias histórias do escritor. E resume: “As coisas aconteciam com ele”.


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