Círculos de leitores que se reúnem para discutir obras se fortalecem na pandemia e sobrevivem a ela
De um lado da roda, Prudie, Jocelyn e Bernadette. Do outro, Sylvia, Allegra e Grigg. Reunido numa filial da cafeteria Starbucks em Sacramento, na Califórnia, o grupo decide ler e discutir a obra completa da inglesa Jane Austen. Seis livros, seis encontros. E, a cada reunião, as histórias e os temas de Austen formam paralelos com os dilemas dos personagens. Essa é a premissa do filme O Clube de Leitura de Jane Austen (2007).
Longe da ficção, os clubes de leitura viraram tendência pelo mundo virtual e fora dele – segundo a Betalabs, consultoria de e-commerce, os clubes por assinatura ligados a editoras representam 25% do mercado de clubes. Numa busca atenta pelo bookstagram – comunidade de profissionais, influenciadores e amantes de livros do Instagram, um mar de opções se apresenta ao leitor interessado.
Existem os grandes, os gigantes, os temáticos, os ligados a editoras, os independentes…. Não há uma regra, cada clube constrói sua dinâmica e estipula a periodicidade para a leitura e os encontros. Há mensais, quinzenais, os com e sem metas de leitura, pagos e gratuitos, totalmente online, híbridos ou orgulhosamente presenciais.
Nessa última categoria se encaixa o clube Leia Mulheres – mais especificamente, a sua versão paulistana, a pioneira do projeto. “Eu sou meio xiita com clubes de leitura. Para mim, tem que ser gratuito e uma roda onde todo mundo possa falar”, brinca Juliana Leuenroth, mediadora e co-fundadora do Leia Mulheres. Encabeçado também por Juliana Gomes e Michelle Henriques, o grupo foi criado em 2015, inspirado na iniciativa Read Women 2014 (Leia Mulheres 2014) lançada pela escritora e ilustradora Joanna Walsh no Twitter.
Na campanha, Walsh estipulava que, naquele ano, só leria livros escritos por mulheres – era uma forma de incentivar o trabalho literário feminino e criticar o tratamento editorial dado às autoras. “As autoras são menos publicadas, menos premiadas e menos reconhecidas. Ou quando conseguem ser publicadas, são as que menos têm críticas no jornal e na imprensa, menos investimento”, afirma Juliana. “Às vezes, elas ficam restritas à ideia de literatura de mulherzinha, o chick lit, como chamam no mercado internacional”, complementa.
Comprometidas com as ideias de Walsh, em quebrar parte desses estigmas, e aumentar o número de pessoas em contato com literatura feita por mulheres, as criadoras do Leia Mulheres espalharam o projeto pelo Brasil. De São Paulo, o clube foi parar no Rio de Janeiro e em Curitiba. Mais tarde, após a criação de uma página no Facebook para divulgar fotos e informações, os encontros alcançaram núcleos em todos os estados brasileiros e em cidades do exterior. “Foi uma coisa das pessoas vindo atrás da gente. Nós tivemos que criar um método de como ser mediadora”, brinca Juliana.
O clube funciona assim: como o nome denuncia, todo mês é lida e discutida uma obra escrita por uma mulher – seja ela cis ou trans. A mediação dos encontros é definida sob essa mesma premissa: apenas mulheres (cis ou trans). Cada cidade, por sua vez, tem a liberdade para propor as obras em discussão. “Só pedimos para que não sejam livros esgotados, muito caros ou grandes em volume – pensando que é um por mês, para que todo mundo tenha acesso e possa participar”, diz Juliana. “Aqui em São Paulo, onde posso falar com mais propriedade, sempre pensamos em alternar entre editoras, nacionalidade e etnia das autoras e gênero literário. Fazemos esse jogo de Tetris justamente porque a ideia é mostrar que existem autoras em todo mundo e que elas escrevem sobre tudo”
Um modelo diferente e inovador é realizado pelo Clube Literário Encontros e Leituras, o CLEL, do Rio de Janeiro. Nele, a cada ciclo, é escolhida uma anfitriã, que vai decidir qual o tema ou gênero literário do mês. Durante esse tempo, as integrantes podem ler quantas obras quiserem, desde que a temática seja respeitada. Para cada assunto, são organizados dois encontros: um virtual e outro presencial. Nesse segundo, é realizado um passeio a um local (do Rio de Janeiro, onde o clube está sediado) que remeta ao tema vigente. O clube nasceu em 2019 graças à iniciativa de um grupo de professoras. “Embora a leitura fosse um hábito entre elas, nem todas compartilhavam dos mesmos gostos literários”, conta Lybia de Oliveira, participante do projeto. “Foi então que surgiu a ideia do clube de leitura, como um pretexto para reunir mais apreciadores da literatura e incentivar a leitura de outros gêneros, saindo da zona de conforto e expandindo horizontes.”
Expandir horizontes e incentivar a leitura parecem ser pontos de partida para os clubes. E, graças a eles, uma atividade solitária se transforma em comunitária. Juliana Leuenroth conta sobre os e-mails que recebe de mediadoras de cidades pequenas. “O prefeito as chama para fazer curadoria, coisas assim. O clube de leitura vira um evento que aqui em São Paulo e aí no Rio é um entre milhões que as pessoas têm para fazer num sábado à tarde. Elas [as mediadoras dessas cidades menores] viram agitadores culturais mesmo.”
Outro caso interessante relatado por Juliana fala sobre o papel agregador da leitura. Ela relata que, transformada em mediadora, uma das participantes do grupo de Santo André converteu sua mãe em leitora assídua graças ao clube. “A mãe da Carla via ela lendo e falava ‘menina, o que tanto você lê?’. Mas o que começou a acontecer? Depois que ela [Carla] lia, ela deixava o livro com a mãe. Ler também tem um pouco disto: o outro vê você fazendo e vira algo contagioso”, conclui.
“Eu provo de perspectivas diferentes e consigo enxergar pelos olhos dos outros leitores durante as discussões do grupo”, diz Lybia. E lembra de um momento triste vivido pelo CLEL em 2020. “Quando estamos em um clube, a gente acaba associando pessoas a certos livros e histórias, e com a Rosângela era o Stephen King”, conta. Rosângela de Carvalho foi uma das amigas e participantes do grupo que morreu de Covid. Entusiasta das obras de King, quando foi escolhida como anfitriã, Rosângela tirou todos da zona de conforto selecionando o tema Literatura Fantástica Norte-Americana. “As reuniões foram realizadas com muita saudade e a participação da família dela, o que emocionou todo mundo”, comenta Lybia.
Diante de tantas histórias está a prova de que os clubes e a leitura têm muitas funções. E, no meio de tantas capacidades, Juliana aponta mais uma: a de interpretar o mundo e entender contextos históricos e políticos. Segundo a co-criadora do Leia Mulheres, as obras de Machado de Assis, Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles e, especialmente, Carolina Maria de Jesus são chaves para compreender os universos que cabem dentro do Brasil – e dentro de nós mesmos. E se os clubes contribuem para o acesso dessas e outras obras, então, é bom que eles tenham vindo para ficar.
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