Entre o cansaço acumulado e a falta de tempo, trabalhadores enfrentam desafios para equilibrar a vida pessoal em uma rotina que nunca desacelera
“É uma vida extremamente desgastante, eu nunca consigo estar 100% presente em nada, você abre mão de tudo.” Para Juliana, de 27 anos, a semana de trabalho parece nunca acabar. “Quando chega meu único dia de folga, não posso realmente curtir o tempo, porque no dia seguinte eu já vou estar de pé cedo", desabafa a vendedora de acessórios e estudante de pedagogia, que segue a escala 6x1. Como ela, milhões de brasileiros convivem com essa rotina desgastante, enfrentando consequências que vão além do cansaço físico.
Conforme previsto na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), o documento que regulamenta o trabalho formal no país e define regras sobre como devem funcionar as relações trabalhistas, o esquema de trabalho 6x1, com jornada de seis dias de trabalho para um de descanso, é mais comum em setores como comércio, bares, restaurantes, hotéis e administrativo. A escala pode impactar a qualidade de vida do trabalhador, tendo consequências significativas na saúde física e mental, elevando assim as chances de acidentes no ambiente laboral. O desgaste pode levar ao desenvolvimento de doenças ocupacionais e problemas como estresse, ansiedade, depressão e síndrome de burnout. Além disso, essa rotina dificulta as atividades de lazer e a participação em momentos familiares, festas e até tempo com os filhos, por exemplo.
Embora legalmente estabelecida, a escala é alvo de muitas críticas, devido às consequências no bem-estar dos trabalhadores submetidos a jornadas extensas e extenuantes de trabalho. Segundo Wladimir Ferreira de Souza, professor do Instituto de Psicologia da Uerj e especialista em Saúde do Trabalhador, os sintomas desse esgotamento podem aparecer de várias formas. “Os principais são aqueles relacionados ao esgotamento físico e emocional, à ansiedade e à depressão, como, por exemplo, irritabilidade, privação do sono, fadiga, tristeza, desinteresse pelo trabalho e por pessoas, apatia, angústia, tremores e inquietação, ou até mesmo o uso excessivo de substâncias psicoativas como o álcool, medicamentos e outros tipos de drogas”, afirma Wladimir.
Essa jornada, além de intensificar o esgotamento físico e mental, dificulta a construção de uma rotina que favoreça o bem-estar desses trabalhadores. Como resultado, atividades essenciais como consultas médicas, momentos de convivência com família e amigos, e até a manutenção de uma alimentação adequada, são prejudicadas. “Eu durmo menos de 6 horas por noite geralmente, isso sendo otimista, né? Chego em casa e nem tem como cuidar da saúde direito, porque às vezes você tá tão esgotado que não dá tempo nem de fazer uma comida um pouco mais saudável”, relata Juliana.
A sensação de não ter tempo para fazer nada e sentir que nunca pode se dedicar inteiramente a alguma atividade social ou de lazer é também uma das maiores queixas relatadas. Juliana também conta que sempre acaba precisando deixar de ir a eventos especiais, por conta do seu horário de trabalho: “Os que eu consigo ir eu sou sempre a última a chegar e a primeira a sair e ainda assim vou muito feliz por ter oportunidade de ficar poucas horas ali, aproveitando com as pessoas que eu amo”, lamenta.
Além disso, a falta de disponibilidade faz com que os trabalhadores, ao enfrentarem uma enfermidade ou a necessidade de realizar exames de rotina, tenham dificuldades para arranjar tempo disponível em suas agendas para solicitar atendimento em uma clínica de saúde. Essa limitação compromete a realização de tratamentos preventivos, agravando a negligência em relação à saúde física. Renato Bergallo, médico e professor da Faculdade de Ciências Médicas no Departamento de Medicina Integral Familiar e Comunitária da UERJ, relata as dificuldades de alguns pacientes que não conseguem tempo para cuidar regularmente da saúde, já que o horário de trabalho acontece na mesma escala de funcionamento das clínicas. “Se surgir uma queixa para alguma dor, por exemplo, ou houver a necessidade de fazer um acompanhamento preventivo, como acompanhamento de doenças crônicas, como uma hipertensão ou diabetes, não vai conseguir marcar uma consulta no horário que possa por conta do trabalho”, ressalta Renato.
Para muitos, a jornada oficial de 8 horas diárias, prevista pela legislação, é apenas parte da realidade. Uma grande parcela dos trabalhadores ainda acabam enfrentando uma carga adicional de 2 a 3 horas diárias em deslocamentos entre casa e trabalho. Essa sobrecarga não apenas reduz o tempo disponível para momentos de manutenção do bem-estar humano, mas também cria um ciclo contínuo de cansaço. A situação é ainda mais complicada para indivíduos que, assim como Juliana, precisam ainda encaixar os estudos em suas rotinas. “Além do trabalho da faculdade de pedagogia eu também faço iniciação científica, então a rotina é bem corrida. Antes, eu até estava conseguindo fazer academia e conseguindo conciliar um pouco com a minha religião, mas era muito exaustivo, não consigo mais.”
Para além dos prejuízos já citados, os empregos com jornada excessiva também são responsáveis por mais acidentes de trabalho. Um levantamento feito pelo site Repórter Brasil, com dados do governo federal, revelou que das 20 ocupações com mais notificações de acidentes de trabalho, 12 delas aparecem com o maior número de contratos semanais, com 41 horas ou mais. Segundo a reportagem, a categoria com mais profissionais nessas condições é a de vendedores de lojas, com 3,7 milhões de trabalhadores. Desse total, mais de 153 mil têm no contrato mais de 45 horas semanais, com 6.600 acidentes registrados em 2022.
Reprodução: Repórter Brasil
Recentemente, a discussão sobre a escala de seis dias de trabalho tem ganhado destaque nas grandes mídias. Uma mobilização nas redes sociais a favor do fim da escala motivou um debate sobre a possibilidade de alteração dos direitos trabalhistas previstos na Constituição. Internautas têm realizado campanhas para que deputados apoiem uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) apresentada pela deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP). A proposta visa reduzir a jornada de trabalho legal no Brasil para 8 horas diárias, sendo 36 horas semanais,passando a valer a escala 4×3. Atualmente, a Constituição prevê uma jornada de até 8 horas diárias e 44 horas semanais.
Como resultado da pressão popular, a deputada anunciou, no dia 13/11, que conseguiu reunir 231 assinaturas, superando as 171 necessárias para protocolar a PEC. Embora já tenha conseguido o número mínimo de assinaturas para ser formalmente apresentada, antes de se tornar realidade, a PEC ainda precisa passar por várias etapas no processo legislativo. O próximo passo, após a coleta das assinaturas, é sua apresentação oficial, seguida da análise pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), que avaliará a proposta.
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