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Pequena África, um refúgio de tradição e identidade no centro do Rio

Atualizado: 3 de jul.

Luta pela preservação da herança africana amplia opções de cultura e lazer na região, mas ainda esbarra em problemas como insegurança e coleta de lixo irregular


Por Juliana Nascimento e Larissa Mafra

Escultura de Mercedes Baptista (1921-2014), primeira bailarina negra do Theatro Municipal e criadora do balé afro-bra­sileiro / Largo de São Francisco da Prainha. Foto: Larissa Mafra

Símbolos da cultura africana enchem o espaço do restaurante: artesanatos intrincados, retratos de artistas negros, quadros de orixás e outros elementos religiosos de matriz africana. Aquele não é apenas um lugar para comer, é também um espaço onde a identidade negra é reconhecida e celebrada em cada detalhe. Essas palavras traduzem o sentimento de Luis Felipe Ferreira, de 29 anos, ao visitar pela primeira vez o restaurante G&G Gourmet, um dos quase 40 empreendimentos que fazem parte do circuito Pequena África, localizado na Zona Portuária do Rio de Janeiro. 


O negócio é comandado por Georgia Gomes, de 47 anos, uma simpática chefe de cozinha que, antes da gastronomia, foi passista da escola de samba Unidos da Tijuca e dedicou 34 anos da sua vida ao Carnaval. Especializado em releituras da culinária baiana, o restaurante está na região desde 2021 oferecendo uma comida afetiva, que conecta os visitantes à ancestralidade e à cultura afro-brasileira. Georgia conta que é comum visitantes se emocionarem ao conhecer o local ou ao experimentar um prato que desperta memórias nostálgicas de familiares e entes queridos. "Ela [uma cliente] entrou e foi andando devagarzinho pelo restaurante, olhando cada detalhe. Seus olhos se encheram de lágrimas e disse: ‘Menina, eu tô aqui, mas tenho uma sensação de que tô na minha casa, parece que voltei para casa'. E eu respondi: 'Mas essa é a coisa da ancestralidade. Esse lugar é todo ancestral’”, recordou a chefe.


Herança africana que pulsa no Centro do Rio


Pequena África é o apelido que o sambista Heitor dos Prazeres deu à área que abrange os bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo, na Zona Portuária. A história dessa região, até hoje habitada principalmente pela população negra, está intimamente ligada ao tráfico transatlântico de pessoas escravizadas. Em seu artigo “Por onde os africanos chegaram” (2015), a antropóloga e professora Simone Vassallo, da Universidade Federal Fluminense (UFF), descreve a região como um local que vive e sobrevive a partir do patrimônio cultural imaterial gerado pela comunidade afro-brasileira que lá habita. “É esta comunidade que leva adiante a tradição do samba, das religiões de matriz africana, da gastronomia, do artesanato e outras manifestações culturais e populares ligadas à diáspora africana”, afirma Simone.


Achados arqueológicos, descobertos desde 1996 até o final das obras do Porto Maravilha, deram origem ao Sítio Arqueológico Cemitério dos Pretos Novos, que ajuda na compreensão do processo da diáspora africana e da formação da sociedade brasileira. O decreto municipal 34.803 prevê a criação do circuito histórico e arqueológico de celebração da herança africana e o grupo de trabalho curatorial urbanístico, arquitetônico e museológico do projeto. Embora o Instituto dos Pretos Novos (IPN) promova oficinas, passeios e aulas de forma gratuita, em termos de políticas públicas, muito pouco foi feito para valorizar o potencial histórico e turístico da região portuária. “A questão é que os órgãos públicos não se preocupam muito com quem está fazendo a região acontecer, a não ser que você vá entrar num edital”, salienta Leila Leão, dona e chefe da Casa Omolokum, localizada no bairro da Saúde.


Lançado há 15 anos, o Porto Maravilha é o maior projeto de revitalização urbana da cidade do Rio, criado com o objetivo de preparar a capital para a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016. A recuperação da infraestrutura urbana, dos transportes, do meio ambiente e do patrimônio histórico cultural da região portuária, prevista no projeto, atraiu mais pessoas para a Pequena África, mas trouxe também desafios. “A dor e a delícia no Porto Maravilha. A delícia é a gente ter hoje em dia um público imensamente maior, ter visibilidade, muitos grupos de turista. E a dor é que a gente não tem coisas mínimas como, por exemplo, na Pedra do Sal, não tem uma lixeira aqui em cima, coisa muito básica”, aponta Leila Leão. 


A chefe também destaca outros problemas estruturais na Pedra do Sal, local recheado de bares e restaurantes que atraem amantes de samba, petiscos e agito noturno, porém onde o serviço de limpeza urbana é feito de forma parcial. “A Comlurb vem e lava a pedra, limpa lá embaixo, mas aqui para cima fica muito a desejar”, avalia. Além disso, a quantidade de banheiros é insuficiente para atender a demanda crescente dos frequentadores: “Lá embaixo os banheiros são pagos, então as pessoas fazem xixi na rua.”


Outro transtorno é a insegurança. Na mesma semana de março, a Casa da Tia Ciata, espaço cultural dedicado a preservar a memória da matriarca do samba, foi alvo de dois assaltos. Nas redes sociais, o perfil do empreendimento publicou um alerta: “A Pequena África tem sofrido com violências variadas, que vão de furtos e assaltos a invasões. Precisamos que o poder público olhe para esse território de potência com o cuidado necessário”. A Casa da Tia Ciata promove oficinas de jongo, capoeira com maculelê, tambor, dança afro e é um dos pontos do circuito cultural e gastronômico que celebra a herança africana no Rio de Janeiro.


A especialista em afroturismo na Pequena África Larissa Mariana Santos frequentemente guia grupos de turistas pela região e destaca sua importância histórica: “Tudo que comemos, dançamos, cantamos ou falamos provém do continente africano. E nada mais consciente para a cidade mais famosa do país aceitar isso, pois se beneficia todos os anos com Carnaval e eventos gastronômicos. Sem ela, não tem rodinha de samba, não tem pagode, não tem funk, não tem bar, não tem trabalho, ou seja, ela é a base que sustenta o todo.”


O projeto de reurbanização da região portuária busca melhorar as condições habitacionais para atrair novos moradores e grandes empresas, estimulando o crescimento populacional e econômico. No entanto, Larissa alerta para a necessidade de frear o processo de gentrificação a fim de preservar a identidade cultural da Pequena África: “Quando um local começa a ter um tipo de inflação, pessoas que não conseguem mais pagar se mudam, expulsando famílias que estão ali por gerações”. Projeções de adensamento demográfico para o Porto Maravilha indicam que a população da região pode saltar dos atuais 32 mil para 100 mil habitantes na próxima década, abrangendo bairros como Santo Cristo, Gamboa, Saúde e trechos do Centro, Caju, Cidade Nova e São Cristóvão.


O Rampas entrou em contato com a Subprefeitura do Centro, para obter informações sobre projetos de intensificação da segurança na região Portuária, e com a Comlurb, para esclarecimentos acerca da ausência de lixeiras na parte alta da Pedra do Sal, mas até o fechamento da reportagem não obteve respostas.


Nas ‘casas pretas’ tem afeto e resistência 


Juliana Nascimento, estudante de jornalismo, entrevistando Georgia Gomes no restaurante G&G Gourmet Pequena África. Fotos: Larissa Mafra

Os estabelecimentos também enfrentam muitos desafios para se manter na região. Georgia Gomes, proprietária do restaurante G&G Gourmet Pequena África, explica que as “casas pretas” passam por mais dificuldades: “A gente não é herdeiro de nada, não tem dinheiro guardado, vende almoço pra comer a janta. Então é na garra, segurando o touro com a unha”. A Casa Omolokum, há 10 anos na Pedra do Sal, também resiste, conectada à história de Leila Leão, que cresceu em uma casa de Umbanda e é iniciada no Candomblé: “Cresci em volta de mulheres nordestinas, com uma mesa gigante em casa, todo mundo sentado em volta. Foi sempre natural lidar com a espiritualidade, todo mundo em volta da mesa confraternizando com a comida.”


Leila, responsável pela cozinha religiosa da Casa Omolokum, explica que o objetivo da Casa sempre foi acolher o público e proporcionar experiências gastronômicas e socioculturais: “Através dessa comida, atuamos quebrando as barreiras de intolerância religiosa e de todos os tipos de preconceito, pois, este lugar, como uma casa religiosa, é agregador. Aqui, apoiamos e abrigamos todas as minorias, sejam elas religiosas, raciais ou de gênero." E finaliza: "Essa comida faz parte da resistência e da existência de um povo que foi tão forte que até hoje a gente continua aqui, ó, botando fio de ponta, botando turbante, fazendo comida de dendê, tocando tambor. É a existência de todo um povo e a gente continua mantendo um legado e reivindicando esse espaço."


A Casa Omolokum cheira a dendê, tem paredes e corredores repletos de obras de artistas de axé e emana sons de tambores e música de orixá. No cardápio, os pratos são releituras de comidas de terreiro. “Cada semana eu faço uma homenagem a um orixá. Eu conto a história desse orixá através da comida. Por exemplo, esse final de semana a gente está fazendo o casal do dendê: Xangô e Iansã”, conta Leila.


À esquerda, a proprietária da Casa Omolokum, Leila Leão, com uma das funcionárias do local. Foto: Larissa Mafra

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