Autora irlandesa Sally Rooney virou sucesso de crítica e público ao transformar em literatura angústias da juventude atual
Uma das cem figuras mais influentes de 2022 pela revista Time, 32 anos, fenômeno literário… a irlandesa Sally Rooney é tudo isso, e mesmo assim não é a autora que você imagina. De franja e cabelos castanhos, com um mestrado em Literatura Americana e três livros de sucesso publicados, na ordem, ‘Conversas Entre Amigos’, ‘Pessoas Normais’ e ‘Belo Mundo, Onde Você Está?’, ela coleciona indicações a prêmios, elogios da crítica e alcunhas bem-humoradas e hiperbólicas da imprensa, como “Sallinger da geração Snapchat”.
Sally Rooney, entretanto, não é um mero êxito comercial incompreensível. Suas narrativas brincam com as expectativas de seu público. Seus protagonistas, que vão dos 20 e poucos aos 30 e muitos anos, vivem entre choques de interesses, visões de mundo e valores conflitantes, nos cenários de uma Irlanda pós-crise de 2008.
“Ela traz o papel dessa ambivalência que é viver”, analisa Bárbara Bom Angelo, jornalista e mestranda em Teoria Literária pela USP. “Podemos ter nossas bandeiras políticas, mas a vivência é diferente e complexa. Você tem que tratar disso na complexidade da vida.” Para a jornalista, o tratamento da escrita objetiva, seca, sem muitos floreios acompanha a forma como as angústias moldam os protagonistas. “É como se não tivesse um trabalho literário ali, mas, na minha visão, existe porque a simplicidade, às vezes, é mais difícil do que rebuscar o texto”, afirma.
A crítica literária e tradutora Isadora Sinay avista um cenário parecido para o trabalho da irlandesa. “Existe uma escrita que é muito precisa, e isso também é um virtuosismo”, comenta. Para Isadora, é um mal-entendido considerar como boa escrita a redação rebuscada e trabalhada em figuras de linguagem. Em sua visão, Rooney possui pleno domínio dos elementos de uma narrativa e é isso que constrói o nível da identificação, fator de forte apelo e apreciação do público. “A Sally Rooney, de fato, no nível das palavras, da construção frasal, não é essa pessoa [com prosa floreada], mas os personagens dela são muito vivos. Eles têm uma vida interior muito complexa. Você entende uma série de camadas do que eles pensam, sentem, e como se relacionam. Isso tudo é qualidade da obra, qualidade da escrita, qualidade da criação do universo”, completa.
A vida interior dos personagens é um dos fatores de sintonia mais nítidos com os leitores e fãs. A estudante de Letras da Uerj Maria Eduarda Luporini que o diga: “Me identifico com vários dilemas e dinâmicas. Os conflitos da Frances com a faculdade e o futuro em ‘Conversas Entre Amigos’, algo que também tinha em ‘Pessoas Normais’ com o Connell; a apreensão de pensar se as coisas vão dar certo no final; a procura de aceitação, de querer sempre ser bem-visto aos olhos dos outros, mas ao mesmo tempo buscar ser autossuficiente…”, enumera.
‘Conversas Entre Amigos’, obra de estreia de Rooney, narra o envolvimento de dois casais, a dupla de amigas e antigas namoradas Bobbi e Frances, e os cônjuges Melissa e Nick. Melissa é escritora e se envolve platonicamente com Bobbi, a versão mais extrovertida da dupla de universitárias, enquanto Nick é ator e se encanta por Frances, a jovem é uma introvertida com quem começa uma relação extraconjugal. Já em ‘Pessoas Normais’, a premissa é mais simples ainda: Connell é o rapaz pobre, reservado e popular; Marianne é a menina rica, sagaz e solitária; os dois estudam na mesma escola, se esbarram constantemente na casa de Marianne, onde a mãe de Connell trabalha como faxineira, começam uma amizade e se apaixonam. O resto é história. Literalmente.
A simplicidade acompanha o projeto literário de Rooney, que de banal não tem nada. “Ela não é condescendente com o leitor do tipo ‘eu vou te dar o que você quer’. [Na verdade,] vou te dar o que acho interessante para a história’”, comenta Bárbara. A jornalista menciona as cenas de intimidade, a abordagem das relações de amizade e a conduta ambígua dos personagens como expressões interessantes dessa subversão da autora e como outro fator de conexão. “Por muitas décadas e séculos, tivemos a narrativa do sexo dominada pelos homens. E começamos nos últimos anos a discutir o olhar da mulher diante desse tema, e acho que a Sally Rooney executa isso muito bem”, assegura. “As cenas de sexo são sempre muito sensíveis. São explícitas, mas também são só indicativas de algo, insinuam certos gestos. Algumas coisas ficam no seu imaginário”.
Outro exemplo seriam os relacionamentos de Frances e Bobbi, e de Connell e Marianne, que mantêm aspectos platônicos misturados com o amor romântico. “São esses amigos que, às vezes, falam verdades e fazem perguntas que incomodam”, descreve Bárbara. “É uma amizade que pode nem sempre ser acolhedora. É um tanto turbulenta, de algumas ausências e falhas de comunicação. Pensamos se ela é abusiva, se é legal ou não, mas ela te empurra e estimula, te joga para frente. Então, assim, a irritação e o incômodo também fazem a gente crescer. Acho que isso é um mérito dela [da Sally Rooney], já que não são amizades sem contraste”.
Nessa equação, ainda surgem as diferenças de classe e o desequilíbrio do poder econômico e social que surge dessas relações de desigualdade. “Ela não abre mão desse embate e dos constrangimentos dessa vida com mais dinheiro e os questionamentos que isso levanta”, indica a jornalista. Em livros diferentes, Frances e Connell vivem tentando conciliar a angústia diante da falta do dinheiro com os afastamentos (e os tipos de aproximação) sociais e emocionais que essa carência proporciona. “Uma das coisas que, para mim, mais definem a Sally Rooney é que ela gosta de botar essas pessoas que vêm de lugares e formações diferentes para se relacionar e ver o que sai disso. O que significa você ser uma pessoa de classe mais baixa se relacionando com uma pessoa de classe mais alta? Como vocês vão se afetar? Como esse fator da classe social afeta o afeto?”, sustenta Bárbara.
“Talvez, se a Sally Rooney escrevesse sob o plano de fundo de questões políticas ou culturais que só pessoas relacionadas à Irlanda conseguissem se identificar, ela não tivesse se tornado um sucesso literário”, afirma Maria Eduarda. “Acontece que feminismo, LGBT+, debates de raça e classe não são exclusividade de um país, mas do mundo”, completa.
Esse elemento transcultural presente na escrita de Rooney é mencionado também por Bárbara. Segundo a jornalista, apesar das especificidades culturais e políticas da Irlanda, o impacto extenso das obras nasce, justamente, dessa identificação com experiências que são conhecidas pela própria autora e por seus leitores vorazes, logo, extrapolam as questões nacionais. “Ela tem feito muito sucesso na China, por exemplo. Tem sido lido por chinesas como uma ferramenta feminista, em grupos clandestinos feministas”, comenta Bárbara. “Então, vemos qual é o apelo que a escrita dela tem para outras culturas diferentes”
Diante de um caldo cultural e uma geopolítica em mudanças, a autora escava a psique de uma geração que, de acordo com Bárbara Bom Angelo e Isadora Sinay, vive agora numa zona sem nome e forma. Tanto do ponto de vista afetivo – “Essa coisa de ‘eu tenho alguma coisa com essa pessoa, mas eu não sei muito bem o que é ou para onde vai’”, descreve Isadora – quanto do ponto de vista profissional – “Nós não somos nossos pais, já que não fomos feitos, por exemplo, para aguentar o trabalho calados. Fomos incentivados a procurar trabalhos dos quais gostássemos e que pagassem bem. E nós também não somos essa geração mais nova, que tem desapego em relação ao trabalho e à carreira”, menciona Bárbara.
Precarização do trabalho, inadequação diante do mundo, desejos incomunicáveis, relações afetivas fluidas. Tudo isso sob o verniz das políticas de classe e das hierarquias de gênero. Tudo isso aparece de modo decisivo na obra de Rooney - que é perpassada, claro, pela presença digital. Não existe nada mais contemporâneo que “acordar, pegar o celular e subir a linha do tempo do Instagram por duas horas pensando na destruição mundial", brinca Isadora Sinay. O terceiro eixo da obra de Rooney é a certeza de que estamos vivendo em um mundo em colapso. E a questão que apresenta ao leitor é: “Como é que você, ao mesmo tempo que tem plena consciência disso [da falência mundial], continua vivendo sua vida cotidiana?”, comenta Isadora. Responda quem puder.
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