Nos 60 anos do golpe de 1964, iniciativas da universidade incluem criação de Comissão da Verdade e debates
A Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) confronta sua própria história sobre os 60 anos do golpe militar do Brasil. O ex-aluno morto pela repressão na porta do Hospital Universitário Pedro Ernesto, um prédio que homenageia um reitor que barrou uma homenagem a Che Guevara e um título de Honoris Causa concedido ao general Médici estão entre os elementos que agora estão sob discussão. Esses eventos destacam as reflexões enfrentadas pela instituição acadêmica enquanto revisita seu passado.
Uerj em diálogo com a história
Uma das atividades de destaque nesta abordagem da Uerj foi a mesa redonda realizada em colaboração com a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) como parte da II Jornada Nacional de Jornalismo ABI: 60 anos do golpe de 64, ocorrida no dia 4 de abril. O debate apresentou relatos impactantes dos participantes, histórias marcantes e pontos de vista que evidenciam como o caminho da Uerj se cruzou com o da resistência à ditadura. O encontro reuniu figuras como a atual reitora da Uerj, Gulnar Azevedo e Silva, os jornalistas Chico Otávio e Rejane Nogueira, o médico Luiz Roberto Tenório, preso e torturado pela ditadura, e a historiadora Andréa Queiroz. A mediação ficou a cargo da diretora da Faculdade de Comunicação Social da Uerj, Patrícia Miranda.
Luiz Roberto Tenório, um dos participantes da mesa redonda, enfatizou a importância de recordar e investigar tudo que aconteceu durante a ditadura. E argumenta que só através do total entendimento da história é possível evitar repetir os erros do passado. “É importante entender o que aconteceu nesse período, a importância dos movimentos estudantis e movimentos de resistência como um todo", afirmou Tenório.
O médico, ex-militante do movimento estudantil na Uerj e ligado ao grupo revolucionário Dissidência, lembrou tragédias ocorridas durante a ditadura e reforçou a necessidade de preservar não apenas os acontecimentos, mas também a memória das vítimas: “Na frente do Hospital Universitário Pedro Ernesto, Luiz Paulo da Cruz Nunes, um estudante de Medicina da Uerj, foi morto com um tiro. Em Petrópolis, o Exército promovia tortura em um centro de prisão clandestino". O médico ressaltou a importância de nunca esquecer quem foram os responsáveis por esses atos.
Na época, Luiz Roberto Tenório estava prestes a se formar quando a turma decidiu homenagear Martin Luther King. Contudo, o reitor João Lyra Filho interferiu, insistindo que o homenageado precisava ser um médico. Mesmo após essa negativa, a turma tentou novamente, desta vez escolhendo Che Guevara como homenageado, mas novamente foi barrada pelo reitor. A formatura ocorreu em 11 de dezembro de 1968, dois dias antes da implementação do AI-5. Em seu depoimento na palestra, Luiz não escondeu descontentamento com o nome do prédio da Universidade: "Lamento muito que esse prédio se chame João Lyra Filho".
Vozes resgatadas
Luiz Paulo da Cruz Nunes, então estudante de Medicina na Faculdade de Medicina da Universidade do Estado da Guanabara (UEG), atual Uerj, foi assassinado aos 21 anos. Sua morte ocorreu em 22 de outubro de 1968, durante uma manifestação estudantil na porta do Hospital Universitário Pedro Ernesto. O jovem foi atingido por disparos de arma de fogo em uma ação que envolveu agentes do Estado. A morte do estudante se tornou um símbolo dos confrontos e da repressão política que marcaram aquele período histórico no Brasil.
Assim como Luiz Paulo, diversas outras vozes foram importantes no processo de resistência à opressão militar da época. Rejane Nogueira, também presente na mesa, em sua fala homenageou seu pai, Ailton Benedito de Sousa, que dedicou boa parte de sua vida no combate à ditadura militar: “Meu pai foi preso no AI-5, foi jubilado e não conseguiu se formar por conta da perseguição na época, era militante do PCB e de movimentos estudantis, foi um grande exemplo de resistência à opressão da ditadura militar. Recentemente ele nos deixou, mas seus feitos permanecem.’’
Uma medida concreta: Criação da Comissão da verdade
A Uerj está engajada em rever o papel da instituição durante o golpe que instaurou a ditadura militar no país (1964-1985). Uma dessas importantes ações é a criação da Comissão da Verdade. Essa medida busca preservar a memória da ditadura na trajetória do Brasil.
A Comissão da Memória e da Verdade Luiz Paulo da Cruz Nunes, cujo nome homenageia um estudante vítima de tiros disparados pelos policiais do DOPS-RJ, vai investigar e apurar os atos antidemocráticos dentro da Uerj durante o período da ditadura militar. Esta iniciativa, liderada pela professora Dirce Eleonora Nigro Solis, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, marca um momento histórico, sendo a primeira vez que a universidade institui uma comissão dessa natureza. Essa não é uma ação isolada. Debates e seminários também estão sendo realizados pela universidade. Instituições em todo o Brasil - como a UFRJ e a UFRGS - têm adotado medidas semelhantes, com a intenção de confrontar os eventos do passado autoritário.
Universidade questiona honra a Médici
Além da criação da Comissão da Verdade no início de fevereiro, a Universidade está considerando a revogação do título de Doutor Honoris Causa concedido a Médici, uma das figuras centrais do período da ditadura, presidente brasileiro que governou de 1969 a 1974, durante o auge da ditadura militar, marcado por políticas repressivas e autoritárias. Sobre a medida, a reitora Gulnar Azevedo e Silva afirmou: “É um trabalho de reparação histórica a ser feito pela Universidade, estamos comprometidos com isso’’.
Mais alta honraria concedida pela universidade, o título de Honoris Causa é aprovado em sessão do Conselho Universitário. Costuma ser atribuído a personalidades importantes, tanto nacionais quanto estrangeiras, que se destacaram por suas contribuições às diversas áreas do conhecimento.
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