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A chuva cai, a rua inunda, a vida para

Moradores do Rio vivem a rotina de lidar com as perdas das enchentes enquanto se preparam para novas tempestades


Por Paula Freitas



Eletrodomésticos, cama e objetos pessoais: a casa de Evelyn Estrada ficou debaixo d 'água.                                   Foto: Evelyn Brisson Duque Estrada / Acervo Pessoal
Eletrodomésticos, cama e objetos pessoais: a casa de Evelyn Estrada ficou debaixo d 'água.  Foto: Evelyn Brisson Duque Estrada / Acervo Pessoal

De tão antigo, o histórico de chuvas no Rio de Janeiro não escapou à perspicácia de Machado de Assis. Numa crônica de 1878, o fundador da ABL relata a já então secular batalha do carioca com as enchentes: “Se remontares ainda uns 60 anos, terás o dilúvio de 1756, que uniu a cidade ao mar e durou três longos dias de 24 horas. Mais que em 1811, as canoas serviram aos habitantes, e o perigo ensinou a estes a navegação". Bradou: “Não esperes ouvir de mim senão que foi e vai querendo ser o maior de todos os dilúvios".


Era de se esperar que o passar dos séculos e da tecnologia trouxesse soluções. Mas a realidade ainda é de desalento. Mais de 590 mil domicílios da cidade estão em áreas de alta vulnerabilidade a inundações e deslizamentos, mostraram dados  de abril do Índice de Vulnerabilidade a Chuvas Extremas na cidade do Rio de Janeiro (IVCE-RJ). Isso significa um quinto das moradias cariocas. O alto risco de alagamentos afeta 530 mil residências, dentre as quais 132 mil enfrentam um cenário ainda mais grave.



Áreas de vulnerabilidade no Rio de Janeiro. Foto: Índice de Vulnerabilidade a Chuvas Extremas na cidade do Rio de Janeiro (IVCE-RJ)
Áreas de vulnerabilidade no Rio de Janeiro. Foto: Índice de Vulnerabilidade a Chuvas Extremas na cidade do Rio de Janeiro (IVCE-RJ)

E os números têm rostos. Em janeiro de 2024, fortes chuvas atingiram mais de 20 mil casas nos bairros de Acari, Pavuna e Irajá, na Zona Norte, que tornaram-se retratos do caos climático que assola o Rio. Mais de 450 dias depois, famílias de Acari e Fazenda Botafogo, bairro ao lado, ainda aguardam o recebimento do Cartão Recomeçar, um benefício de R$ 3 mil prometido pelo governo do Estado do Rio de Janeiro aos atingidos pelas enchentes. Outras permanecem à mercê da chuva, já que cerca de 31 mil residências dos três bairros estão situadas em áreas de alta vulnerabilidade. Sem ajuda do governo e sem perspectivas, famílias se deparam com duas alternativas: deixar para trás suas casas e tudo o que construíram; ou ficar, na falta de ter para onde ir. O Rampas conversou com duas famílias que escolheram rotas diferentes para lidar com o futuro incerto diante dos extremos climáticos.


Evelyn: trauma e encruzilhada


Era para ser só uma noite de chuva. Evelyn Estrada, 39 anos, acompanhava a previsão do tempo, sem imaginar o que viria. Depois do trabalho, foi a uma festa em Santa Cruz. Enquanto isso, em Fazenda Botafogo, sua família alertava: a água subia, e o Rio Acari ameaçava transbordar. Ao chegar na rua de casa, seguiu a técnica de costume: acompanhou  um galho, que descia ao seguir o fluxo da água. Ela, aliviada, pensou que a enchente seguiria o mesmo caminho, não subiria e não chegaria na sua residência.


“Mas a chuva não parava. A água que estava indo embora começou a subir de novo. Entrou no meu quintal, mesmo a minha casa sendo alta. Mandamos as crianças para a vizinha, que tem segundo andar. Sempre que acontece isso, vamos para lá”, conta. “Tínhamos dois cachorros, pegamos no colo e fomos para a vizinha, com a água na cintura.”




Antes disso, a assistente administrativa tentou conter os danos. Colocou objetos de valor no alto, mas esqueceu para trás um Xbox, que era presente para o filho e havia pago apenas duas prestações. O marido tentou salvá-lo ao atravessar a água, arriscando levar um choque, mas o videogame estava completamente encharcado. “A água chegou no meu pescoço, enquanto meu marido tentava carregar, nadando, minha sogra e minha cunhada. No final, estava batendo no teto”, afirma. 



Roupas e pertences pessoais que sobraram da inundação. Foto: Evelyn Brisson Duque Estrada / Acervo Pessoal
Roupas e pertences pessoais que sobraram da inundação. Foto: Evelyn Brisson Duque Estrada / Acervo Pessoal

“Perdi tudo. Não tinha mais cama, televisão da sala, microondas. Perdi os dois sofás. Minha geladeira funcionou só por um mês, depois pifou. Tive que comprar outra e ainda fiquei sem trabalhar porque não tinha como sair de casa. Os meus colegas de trabalho que me ajudaram, fizeram uma vaquinha. Agradeço muito a eles”, desabafa. “Não espero mais nada do governo.”


Agora, os planos são tentar juntar dinheiro para construir um segundo andar. Assim, a família conseguirá se proteger, ainda que aquém do ideal, sem precisar fugir para os vizinhos. “Sempre que acontece alguma coisa agora, nós temos medo. Mas, como a casa é própria, não temos para onde ir. Não vou sair daqui para pagar aluguel, não tenho condições. O que dá para salvar, nós salvamos”, conclui. 


Daniel e uma dura decisão


Enquanto Evelyn corria para lidar com os prejuízos, Daniel Goés, 41 anos, se via diante do impensável: uma enxurrada de água, que beirava tomar conta de toda a sua casa. Criado em Acari, o estudante de Jornalismo e editor de Educação do Rampas estava acostumado a lidar com os percalços provocados pela chuva. Quando criança, era certo que, caso chovesse muito, as casas das ruas de um a três – como são chamadas por lá – pagariam o pato pelo aumento do volume de água no Rio Acari. Mas a situação no ano passado foi mais grave. A enchente chegou até a rua sete, mais do que o dobro do que o testemunhado no passado. “A minha casa enchia até a altura do joelho, da cintura. Nessa última vez, faltaram três degraus para chegar no meu segundo andar”, relembra Goés, pai de um menino de 11 anos. 



Corrida contra o tempo: Daniel imerso na água enquanto tenta salvar alguns de seus perfeitos.                                  Foto: Acervo Pessoal / Daniel Goés
Corrida contra o tempo: Daniel imerso na água enquanto tenta salvar alguns de seus perfeitos.  Foto: Acervo Pessoal / Daniel Goés

Assim como a casa de Goés, 20 mil edifícios foram afetados pela tempestade. Trata-se de uma série de ingredientes que, misturados no caldeirão, geram problemas graves. A ocupação irregular das margens do rio, falta de coleta do lixo, despejo irregular, assoreamento e políticas públicas ineficazes levam ao alagamento generalizado. É uma receita conhecida, embora frequentemente ignorada pelo poder público – que monitora, como mostra o Sistema Alerta Rio da prefeitura, mas não toma o próximo passo em busca de soluções. 



Vista da rua da casa de Daniel: Altura da água mostra gravidade da enchente.                                                 Foto: Acervo Pessoal / Daniel Goés
Vista da rua da casa de Daniel: Altura da água mostra gravidade da enchente. Foto: Acervo Pessoal / Daniel Goés

Em janeiro, o Executivo municipal lançou o “alerta extremo”, enviado aos celulares da população que se encontrava em localidades com maior risco de desastres naturais, de deslizamentos a inundações. O som do aviso, comparado a sirenes, pegou os cariocas de surpresa. No entanto, o alerta sozinho não representa uma solução. Como sair da área se não há para onde ir? Como abandonar sua casa só com a roupa do corpo? Apesar do aperto no peito, Goés tomou a dura decisão de trocar de bairro, deixando para trás as ruas que corria quando era garoto. “Foi aí que a gente deu o ultimato mesmo e se mudou. E dessa vez, se Deus quiser, é em definitivo, sem precisar voltar”, diz. 









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