A chuva cai, a rua inunda, a vida para
- Paula Freitas
- 4 de jun.
- 5 min de leitura
Moradores do Rio vivem a rotina de lidar com as perdas das enchentes enquanto se preparam para novas tempestades
Por Paula Freitas

De tão antigo, o histórico de chuvas no Rio de Janeiro não escapou à perspicácia de Machado de Assis. Numa crônica de 1878, o fundador da ABL relata a já então secular batalha do carioca com as enchentes: “Se remontares ainda uns 60 anos, terás o dilúvio de 1756, que uniu a cidade ao mar e durou três longos dias de 24 horas. Mais que em 1811, as canoas serviram aos habitantes, e o perigo ensinou a estes a navegação". Bradou: “Não esperes ouvir de mim senão que foi e vai querendo ser o maior de todos os dilúvios".
Era de se esperar que o passar dos séculos e da tecnologia trouxesse soluções. Mas a realidade ainda é de desalento. Mais de 590 mil domicílios da cidade estão em áreas de alta vulnerabilidade a inundações e deslizamentos, mostraram dados de abril do Índice de Vulnerabilidade a Chuvas Extremas na cidade do Rio de Janeiro (IVCE-RJ). Isso significa um quinto das moradias cariocas. O alto risco de alagamentos afeta 530 mil residências, dentre as quais 132 mil enfrentam um cenário ainda mais grave.

E os números têm rostos. Em janeiro de 2024, fortes chuvas atingiram mais de 20 mil casas nos bairros de Acari, Pavuna e Irajá, na Zona Norte, que tornaram-se retratos do caos climático que assola o Rio. Mais de 450 dias depois, famílias de Acari e Fazenda Botafogo, bairro ao lado, ainda aguardam o recebimento do Cartão Recomeçar, um benefício de R$ 3 mil prometido pelo governo do Estado do Rio de Janeiro aos atingidos pelas enchentes. Outras permanecem à mercê da chuva, já que cerca de 31 mil residências dos três bairros estão situadas em áreas de alta vulnerabilidade. Sem ajuda do governo e sem perspectivas, famílias se deparam com duas alternativas: deixar para trás suas casas e tudo o que construíram; ou ficar, na falta de ter para onde ir. O Rampas conversou com duas famílias que escolheram rotas diferentes para lidar com o futuro incerto diante dos extremos climáticos.
Evelyn: trauma e encruzilhada
Era para ser só uma noite de chuva. Evelyn Estrada, 39 anos, acompanhava a previsão do tempo, sem imaginar o que viria. Depois do trabalho, foi a uma festa em Santa Cruz. Enquanto isso, em Fazenda Botafogo, sua família alertava: a água subia, e o Rio Acari ameaçava transbordar. Ao chegar na rua de casa, seguiu a técnica de costume: acompanhou um galho, que descia ao seguir o fluxo da água. Ela, aliviada, pensou que a enchente seguiria o mesmo caminho, não subiria e não chegaria na sua residência.
“Mas a chuva não parava. A água que estava indo embora começou a subir de novo. Entrou no meu quintal, mesmo a minha casa sendo alta. Mandamos as crianças para a vizinha, que tem segundo andar. Sempre que acontece isso, vamos para lá”, conta. “Tínhamos dois cachorros, pegamos no colo e fomos para a vizinha, com a água na cintura.”
Antes disso, a assistente administrativa tentou conter os danos. Colocou objetos de valor no alto, mas esqueceu para trás um Xbox, que era presente para o filho e havia pago apenas duas prestações. O marido tentou salvá-lo ao atravessar a água, arriscando levar um choque, mas o videogame estava completamente encharcado. “A água chegou no meu pescoço, enquanto meu marido tentava carregar, nadando, minha sogra e minha cunhada. No final, estava batendo no teto”, afirma.

“Perdi tudo. Não tinha mais cama, televisão da sala, microondas. Perdi os dois sofás. Minha geladeira funcionou só por um mês, depois pifou. Tive que comprar outra e ainda fiquei sem trabalhar porque não tinha como sair de casa. Os meus colegas de trabalho que me ajudaram, fizeram uma vaquinha. Agradeço muito a eles”, desabafa. “Não espero mais nada do governo.”
Agora, os planos são tentar juntar dinheiro para construir um segundo andar. Assim, a família conseguirá se proteger, ainda que aquém do ideal, sem precisar fugir para os vizinhos. “Sempre que acontece alguma coisa agora, nós temos medo. Mas, como a casa é própria, não temos para onde ir. Não vou sair daqui para pagar aluguel, não tenho condições. O que dá para salvar, nós salvamos”, conclui.
Daniel e uma dura decisão
Enquanto Evelyn corria para lidar com os prejuízos, Daniel Goés, 41 anos, se via diante do impensável: uma enxurrada de água, que beirava tomar conta de toda a sua casa. Criado em Acari, o estudante de Jornalismo e editor de Educação do Rampas estava acostumado a lidar com os percalços provocados pela chuva. Quando criança, era certo que, caso chovesse muito, as casas das ruas de um a três – como são chamadas por lá – pagariam o pato pelo aumento do volume de água no Rio Acari. Mas a situação no ano passado foi mais grave. A enchente chegou até a rua sete, mais do que o dobro do que o testemunhado no passado. “A minha casa enchia até a altura do joelho, da cintura. Nessa última vez, faltaram três degraus para chegar no meu segundo andar”, relembra Goés, pai de um menino de 11 anos.

Assim como a casa de Goés, 20 mil edifícios foram afetados pela tempestade. Trata-se de uma série de ingredientes que, misturados no caldeirão, geram problemas graves. A ocupação irregular das margens do rio, falta de coleta do lixo, despejo irregular, assoreamento e políticas públicas ineficazes levam ao alagamento generalizado. É uma receita conhecida, embora frequentemente ignorada pelo poder público – que monitora, como mostra o Sistema Alerta Rio da prefeitura, mas não toma o próximo passo em busca de soluções.

Em janeiro, o Executivo municipal lançou o “alerta extremo”, enviado aos celulares da população que se encontrava em localidades com maior risco de desastres naturais, de deslizamentos a inundações. O som do aviso, comparado a sirenes, pegou os cariocas de surpresa. No entanto, o alerta sozinho não representa uma solução. Como sair da área se não há para onde ir? Como abandonar sua casa só com a roupa do corpo? Apesar do aperto no peito, Goés tomou a dura decisão de trocar de bairro, deixando para trás as ruas que corria quando era garoto. “Foi aí que a gente deu o ultimato mesmo e se mudou. E dessa vez, se Deus quiser, é em definitivo, sem precisar voltar”, diz.
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