top of page

A história esquecida do Caio Martins, primeiro estádio-prisão da América Latina

Localizado na área nobre de Niterói, centro esportivo está abandonado; projeto prevê criação de parque, e ativistas lutam por construção de centro de memória sobre a ditadura foi o primeiro estádio-prisão da América Latina


Por Maria Júlia Braga


Entrada do Caio Martins - Foto: Maria Júlia Braga
Entrada do Caio Martins - Foto: Maria Júlia Braga

A barraca de pastel da feira na Rua Lopes Trovão é o ponto mais frequentado aos sábados pelas famílias moradoras de Icaraí, em Niterói. Crianças, adultos e idosos aproveitam a manhã comendo bem e tomando um bom caldo de cana. O cenário de fundo dessa cena é o abandonado estádio Caio Martins, cuja calçada lateral está tomada pelas barracas de frutas, verduras e flores. Alguns até sabem que o estádio foi palco dos tempos de glória do Botafogo na década de 90. Poucos conhecem, porém, outra parte da história: o Caio Martins foi o primeiro estádio-prisão da América Latina durante a ditadura militar brasileira (1964-1985).


Para lá foram transferidos, em abril de 1964, presos detidos no Rio de Janeiro logo após o golpe. De acordo com o relatório da Comissão Municipal da Verdade de Niterói, concluído em 2013, o jornal O Fluminense noticiou, em 23 de abril de 1964, a chegada de presos ao Caio Martins. Na mesma reportagem, o chefe da Divisão de Polícia e Política Social (DPS), major Jairo Lery dos Santos, justificou a transferência dos detidos para o espaço a fim de proporcionar “melhores condições de higiene e conforto” que não poderiam ser concedidos nas prisões superlotadas. Relatos de ex-presos no local falam em mais de mil pessoas confinadas no estádio, porém a documentação encontrada no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (Aperj), órgão que armazena o que foi produzido no DOPS, conseguiu confirmar apenas 339.


Matéria do jornal O Fluminense sobre a ida dos presos ao Caio Martins - Fonte: Relatório da CVN
Matéria do jornal O Fluminense sobre a ida dos presos ao Caio Martins - Fonte: Relatório da CVN

O estádio niteroiense serviu de exemplo para o Estádio Nacional do Chile, caso mais conhecido, onde mais de quarenta mil pessoas foram detidas, torturadas e executadas após o golpe liderado pelo general Augusto Pinochet.  A professora Lívia Magalhães, do Instituto de História da UFF (Universidade Federal Fluminense), explicou que o uso de ginásios como prisões é muito comum entre os regimes autoritários, com exemplos desde os campos de concentração europeus durante a Segunda Guerra Mundial até as ditaduras latinas. “Comparando Madrid (capital da Espanha, país que viveu a ditadura do franquismo), Santiago e Niterói, percebemos que a transferência de presos para complexos esportivos é um momento muito imediato do autoritarismo. Inicia-se um encarceramento em massa e não há lugar para tanta gente. Então, esses espaços projetados para comportar um grande número de pessoas passam a ser apropriados por esses governos”, disse a pesquisadora.


Além de lugar alternativo para aprisionar os perseguidos políticos, o Caio Martins funcionava como um centro de triagem para as unidades prisionais. Os presos eram mantidos no estádio e, caso não fossem soltos, eram levados a três possíveis destinos: o Centro de Armamento da Marinha (CAM  - Ponta da Areia, Niterói), o DOPS-RJ (Av. Amaral Peixoto, Niterói) e ao DOPS-GB (Rua da Relação, Rio de Janeiro). Dos 339 casos oficiais de presos detidos no Caio Martins, 89 estiveram no CAM, 54 no DOPS-RJ e 79 no DOPS-GB - onde muitos foram torturados.


“O caso específico do Caio Martins não tem uma importância grande apenas para as cidades de Niterói e São Gonçalo. Além de ser o primeiro estádio a ser usado como presídio que se tem conhecimento na era moderna, a situação específica de seu uso condensa as características da repressão e perseguições políticas ocorridas após o golpe de 1964. Os presos no estádio, para além de suas filiações político-partidárias, compõem, majoritariamente, setores dos trabalhadores organizados de todo o Estado do Rio”, afirma o relatório da comissão. 


O perfil dos encarcerados era variado. Niterói era a capital do estado do Rio de Janeiro, fazendo com que pessoas de diversos municípios fossem levadas para a cidade. Havia gente de variadas idades e ocupações profissionais, contando com operários navais, advogados, médicos, industriais e até figuras políticas, como o então prefeito de Teresópolis Flávio Bortoluzzi (PTB). Ligia Martins, filha do advogado sindicalista Manoel Martins, detido no estádio, disse ao Rampas que, pelo que se recorda das conversas e visitas ao pai, havia certa hierarquia entre os presos. Manoel Martins e seus amigos do Partido Socialista eram permitidos a usar as beliches dos vestiários por serem de classe média, enquanto o restante era obrigado a dormir no chão duro sem agasalhos. “O Caio Martins estava abarrotado de gente. Meu pai relatou que havia mais de 1600 presos que eram tratados de forma desigual a partir da posição social. Quando o inverno estava chegando, as esposas dos detidos de classe média se mobilizaram para arrecadar cobertores para todos, pois muitos que estavam ali eram pessoas pobres.”


Contagem de profissões dos presos no Caio Martins - Fonte: Relatório da CVN
Contagem de profissões dos presos no Caio Martins - Fonte: Relatório da CVN

Com pouco menos de um mês de funcionamento, o governo militar iniciou um processo de liberação em massa de detidos. O jornal A Tribuna noticia no dia 20 de maio que o secretário de segurança pública do estado do Rio, major Paulo Biar, assinou o alvará de soltura de 46 pessoas que estavam no Caio Martins. Seis dias depois, o DOPS-RJ liberou mais 62 presos que aguardavam inquérito. No dia 2 de junho, o mesmo jornal informou a dispensa diária de mais 10 a 15 pessoas. Por fim, no dia 5 do mesmo mês, o chefe da Polícia Fluminense soltou 110 encarcerados que estavam no estádio havia mais de 50 dias. Estima-se que o encerramento do estádio-prisão tenha sido nos primeiros dias de julho de 1964.


“Um dia, quando fui levar comida para o meu pai, descobri que ele era o único preso restante naquele estádio enorme. Todos tinham sido liberados. Quem me tranquilizou foi uma das assistentes sociais que ficava lá. Ela me disse para não me preocupar que, entre uma ou duas semanas, meu pai seria solto. Depois disso, ele ficou em uma espécie de liberdade vigiada, precisava assinar ponto no DOPS, mas voltou a ser preso”, contou Ligia Martins.


Matéria do jornal A Tribuna sobre a liberação de presos - Fonte: Relatório da CVN
Matéria do jornal A Tribuna sobre a liberação de presos - Fonte: Relatório da CVN

Até a realização da Comissão Municipal da Verdade de Niterói, as Forças Armadas negavam o uso do estádio niteroiense como uma unidade prisional. Porém, através de assinaturas de correspondência oficiais da época, foi possível provar que, na época, militares tratavam o espaço como presídio.


Correspondência endereçada ao diretor do presídio Caio Martins, Capitão Homero Barreto - Fonte: Relatório CVN
Correspondência endereçada ao diretor do presídio Caio Martins, Capitão Homero Barreto - Fonte: Relatório CVN

Projeto do Centro de Memória, Verdade e Justiça


O Caio Martins voltou a ganhar destaque no debate político após o Governo do Estado do Rio de Janeiro o incluir em um Projeto de Lei Complementar (PLC) enviado à Alerj que visava à alienação (venda ou doação para a iniciativa privada) de imóveis para cortar gastos. A Nova Lei Urbanística de 2024 do município determinou que o estádio fosse transformado em parque urbano, impedindo a construção de qualquer prédio ali. Entretanto, com a ameaça do leilão proposto pela PLC, a Prefeitura de Niterói expressou a vontade de municipalizar a parte do gramado, que não recebe um jogo oficial desde 2004, com duas intenções: construir um reservatório contra enchentes, parecido com os feitos na Grande Tijuca, e um parque esportivo para a juventude. 


Estado atual do gramado do Caio Martins - Foto: Maria Júlia Braga
Estado atual do gramado do Caio Martins - Foto: Maria Júlia Braga

A movimentação do prefeito Rodrigo Neves (PDT) chamou a atenção do vereador Professor Túlio Mota (PSOL), que viu a oportunidade de incluir no projeto a criação de um Centro de Memória, Verdade e Justiça para marcar no espaço físico do estádio o seu funcionamento como prisão durante a ditadura. Segundo o parlamentar, a ideia de tentar combater o apagamento dessa lembrança vem desde a coleta de dados feita pela CVN.


O resgate da memória do Caio Martins rompe com a narrativa de que o regime passa a ficar violento apenas a partir do Ato Institucional nº 5, em 1968. Mas, em Niterói, poucos sabem do que aconteceu ali, e o tema se mantém muito restrito às discussões acadêmicas e políticas. A professora da UFF Lívia Magalhães destacou a importância de realizar projetos de extensão de pesquisas sobre o uso de espaços públicos pelos regimes autoritários para a população entender que a questão urbanística — construir um parque para adolescentes e um reservatório — não exclui a carga política — montar um centro de memória. “Quando vou aos colégios, os alunos ficam chocados, falam que passam na porta do estádio quase todo dia e não sabiam. Eu os questiono, ‘por que é importante saber?’, e respondem, ‘porque a gente quer saber’. É esse o ponto, nós queremos ter a informação”, completou a professora.


O projeto do Centro de Memória, Verdade e Justiça, pensado pelo mandato do vereador Professor Túlio em conjunto com pesquisadores da UFF e diversos coletivos ligados a parentes e sobreviventes da ditadura, prevê a criação de murais por todo o parque relembrando a história do Caio Martins em 1964 e homenageando quem esteve preso ali. Além disso, há a intenção de construir o monumento “Arco da maldade” desenhado por Oscar Niemeyer. Os direitos autorais do esboço são do grupo Tortura Nunca Mais, que atua na defesa de vítimas da ditadura e na cobrança por responsabilização. O vereador produziu ainda um vídeo, realizou uma audiência pública e lançou um abaixo-assinado sobre o destino do estádio.


Quando perguntada sobre o que essa iniciativa representa para si,  Ligia Martins respondeu: “Para mim, é não deixar esquecer. Até hoje vivemos uma ameaça de golpe que não se dissipou. Os que pedem a volta da ditadura não fazem ideia do terror que foi. Aquele regime oprimiu, torturou e matou. O que quero é que isso jamais se repita, e, para não repetir, é preciso lembrar. Enquanto estiver viva, não vou deixar que nossa história caia no esquecimento.”





Comentários


O site Rampas é um projeto criado por alunos de jornalismo da Uerj, sob supervisão da professora Fernanda da Escóssia.

©2025 por Rampas.

bottom of page