“As vagas de emprego não são pensadas para pessoas trans”
- Rodrigo Lima

- há 16 horas
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Preconceito e falta de políticas inclusivas ainda empurram a população trans para a marginalização social e econômica
Por Rodrigo Lima
“Ser trans é assinar a certidão de óbito em vida.” A frase da ativista Bárbara Aires sintetiza a exclusão estrutural que atravessa a vida de pessoas trans no Brasil — uma realidade que começa nas escolas e se estende ao mercado de trabalho. Apesar dos discursos sobre diversidade, a segregação permanece: currículos com nome social raramente passam da triagem, entrevistas se tornam experiências constrangedoras e, mesmo entre os que concluem os estudos, as oportunidades de emprego formal continuam escassas. Entender essa desigualdade e como é composta a sociedade brasileira é essencial para pensar políticas públicas que garantam dignidade e acesso reais a essa parcela invisibilizada da população.

"Quando apareci para uma seleção de emprego, percebi que o olhar do rectrutador em relação a mim era distinto. Naquele ambiente, havia tanto homens quando mulheres cis, e todos foram aprovados, exceto eu".
Jeany Rosa, 27 anos, moradora do Complexo do Lins na Zona Norte do Rio de Janeiro, é auxiliar de serviços gerais na empresa terceirizada Soll, que presta serviços à Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Mulher trans, ela relata já ter enfrentado episódios de discriminação no mercado de trabalho. Hoje, diz ser tratada com respeito, mas lembra que em empregos anteriores sofreu preconceito: em um supermercado, foi alvo de comentários transfóbicos do gerente; em outro, uma colega de caixa a impediu de usar o banheiro feminino por causa de sua identidade de gênero.
Passo a passo do apagamento
A exclusão de pessoas trans começa cedo. A transfobia nas escolas leva a altas taxas de evasão, impulsionadas por violências diárias — de colegas e, em alguns casos, pela omissão de professores diante do bullying. A recusa em reconhecer o nome social, substituído pelo nome de registro anterior (“nome morto”), expõe estudantes trans a uma situação de grande vulnerabilidade e insegurança.
Sem um ambiente seguro, o acesso da comunidade trans à educação superior e a ocupação de posições de destaque se torna improvável, já que grande porção não consegue finalizar a educação básica. Pesquisas realizadas pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) revelam que menos de 0,3% dessa população está matriculada no ensino superior. Essa estatística demonstra a ausência de políticas educacionais que sejam inclusivas e acolhedoras nas escolas e universidades brasileiras, que muitas vezes se apresentam como locais hostis e excludentes.
Devido à escassez de oportunidades, ao não acesso à educação e à ausência de emprego formal, muitas pessoas trans acabam recorrendo ao trabalho sexual como ganha-pão. De acordo com a pesquisa realizada pela Antra, 90% da população trans no Brasil depende da prostituição como principal meio de sustento e de sobrevivência — realidade mais frequente entre as mulheres trans.
Barreiras ainda persistem

Antonia Luz, 30 anos, atriz e social media, relata suas dificuldades de inserção no mercado de trabalho formal como mulher trans. Ela afirma que em sua vivência na busca de empregos e participações em processos seletivos, sempre enfrentou e continua enfrentando dificuldades. Antonia observa que as oportunidades de emprego geralmente não são projetadas considerando pessoas trans, transvestisgêneres e transmasculinos, e que as chamadas “vagas afirmativas” muitas vezes não vêm acompanhadas de mudanças estruturais nas empresas, sem um plano adequado para a integração desses indivíduos. “Costumo dizer que essas vagas afirmativas são para pessoas cis”, critica. “Existe uma multiplicidade de fatores que nos diferenciam quando a gente se coloca à disposição no mercado de um corpo cisgênero.”
Antonia discute essa carga após conseguir ingressar na universidade. Depois de se qualificar, ela enfrentou várias dificuldades, mas encontrou maneiras de superar um sistema que tenta limitar a presença de pessoas como ela em todos os lugares. O acesso à educação e à informação se tornou mais viável para ela, e, além disso, ela fez uma ampla rede de contatos. Aliados às causas trans lembraram dela para vagas de trabalho, vendo nela algo além de sua identidade. Algumas empresas ofereciam apenas o mínimo de suporte necessário para acolhê-la — às vezes, nem isso —, mas havia um progresso rumo à equidade de gênero. E no que diz respeito a todas as oportunidades que obteve, a atriz enfatiza: “Eu tive muita sorte de ter acessado o ensino superior, de ter acessado a educação formal, de conseguir empregos formais, porque existe um atravessamento racial. Eu, enquanto uma travesti branca, tenho uma outra relação e experiência do que uma travesti negra, retinta e periférica. Acho que os atravessamentos são muito importantes e têm que ser levados em consideração nessa hora — não só isolado o gênero, existem: o gênero, o racial, o socioeconômico, que precisam ser falados sobre também.”
A social media comenta as desigualdades e barreiras enfrentadas por pessoas trans em comparação aos colegas cisgênero. Segundo ela, o acesso a espaços de formação — seja técnica ou superior — é muito mais limitado para pessoas trans, que precisam enfrentar obstáculos estruturais e emocionais para ingressar e se manter nesses ambientes. “Os colegas cis já têm uma sociedade inteira feita por eles, para eles, preparada para recebê-los, estimulá-los e desenvolvê-los. Nós trans estamos nadando contra a maré: existem outros pontos que atravessam nossos corpos que nos causam dificuldades de acessar determinados espaços. Tenho que estar preparada psicologicamente para entrar em uma empresa que não tenha letramento de gênero nem racial. Precisamos buscar mais estrutura emocional para trabalhar, que é o que nós queremos.”
Hoje em dia, Antonia é autônoma, oferecendo serviços como freelancer na área de Marketing Digital e Social Media, resultado do acesso que teve à educação e das experiências profissionais anteriores com a internet, o que permite que ela trabalhe com marcas, indivíduos, serviços e mais. Como chefe de si mesma, ela esclarece que é responsável por estabelecer suas próprias diretrizes formais de diversidade. Ela transforma seu local de trabalho, sua maneira de atuar e suas interações com os outros em um espaço mais acolhedor, afetivo e consciente.
E por ter a liberdade de estabelecer as regras de diversidade em seu próprio trabalho, ela destaca: “Quando eu tenho a oportunidade de terceirizar um trabalho e preciso de uma assistência, de alguém para me acompanhar em alguma diária e em algum projeto, eu considero pessoas trans. Eu acho que o movimento trans, mesmo dentro da comunidade LGBTQIAPN+, é um grupo muito sozinho, né? Nós fazemos por nós mesmas, entendendo as intersecções de masculino, feminino e não-binário; nós nos sustentamos, nos retroalimentamos, nos incentivamos, nos impulsionamos para frente, então, eu enquanto empreendedora, busco ter junto a mim pessoas trans.”
Luz recorda o período em que atuou com marcas sob o regime de CLT. Ela mencionou que passou por algumas empresas que, pelo menos, estavam começando a discutir a inclusão, trazendo pessoas trans para o processo de letramento e com profissionais trans inseridos no mercado de trabalho focado na inclusão. Ela destacou a Farm como exemplo e afirmou que, mesmo sendo algo recente, foi a organização onde viu mais pessoas trans presentes ao longo dos últimos anos. Embora o número ainda fosse bem reduzido naquele ambiente, ela ressalta que a empresa tinha um desejo de enxergá-las além de suas identidades de gênero, reconhecendo seus talentos e conhecimentos que poderiam contribuir para a marca. Segundo ela, foi a única marca em que trabalhou com políticas formais de inclusão, embora isso não seja uma prática comum, mas sim uma exceção.
Antônia observa que o setor da moda apresenta uma abertura maior para mulheres trans, mas ainda com ressalvas, enquanto outras empresas parecem permanecer distantes em relação a essas políticas. “E claro né, existem empresas para cumprir tabela mesmo, porque tem que apresentar um relatório ISG, tem que apresentar sustentabilidade com pessoas e daí faz uma contratação pontual. Em algumas empresas que eu trabalhei, eu era a única [trans]. Era muito comum ser a única do espaço, ser a precursora, ou então a que veio depois da outra que saiu. É muito difícil estar em uma empresa que você não tenha mais de você espelhada. Isso dificulta muito a articulação e causa questões muito perigosas de saúde mental, de assédio, e é muito danoso para nós sermos as únicas de certos ambientes. É muito cansativo e desgastante, é sofrer uma violência sozinha, sem ninguém para se apoiar. Caso tenha pessoas iguais a você em cargos de liderança a quem você possa se dirigir, falar de suas dores, enfim… Em algumas empresas há essas políticas que são afetivas, cuidadosas e pensadas — muito embrionárias, mas existentes, — mas na minha visão, a maioria cumpre tabela.”
Inclusão no mercado de trabalho
Os relatos das mulheres entrevistadas evidenciam a urgência de ampliar políticas de inclusão no emprego formal. Pessoas trans têm direito a trabalhar e viver com dignidade — e, no Rio de Janeiro, diversas iniciativas já buscam romper as barreiras de acesso ao mercado de trabalho:
TIM - Programa Transforma TIM: A operadora de telecomunicações disponibiliza oportunidades em seu call center e em suas lojas (inclusive no Rio de Janeiro) para indivíduos trans, além de oferecer acesso gratuito a cursos à distância para os novos colaboradores.
SENAC RJ - Programa Diversidade Qualificada: Juntamente com a Secretaria Municipal de Governo e Integridade Pública, o Senac RJ proporciona cursos gratuitos para capacitação e orientação de carreira direcionados à comunidade LGBTQIA+, com ênfase na inserção profissional.
Grupo Pão de Açúcar: A empresa recebeu reconhecimento por suas ações inclusivas, ao empregar profissionais trans e integrar-se a programas de capacitação como o #AgoraVai, que proporciona treinamento para o ambiente de trabalho.
educaTRANSforma: Um projeto que liga pessoas transgênero com oportunidades na área de tecnologia e inovação, oferecendo educação e formação profissional.
Capacitrans: Uma incubadora focada em projetos sociais, que prioriza a formação e o crescimento de indivíduos trans no Rio de Janeiro, com ênfase em moda, imagem e empreendedorismo.
Casinha Acolhida: Uma organização não governamental que fornece apoio à comunidade LGBTQIA+ em situação de vulnerabilidade, incluindo assistência em saúde, educação e ocupação.
CasaNem: Uma república que acolhe a comunidade LGBTQIA+ e também oferece cursos e oficinas.
Plataformas de empregabilidade: A rede TransEmpregos é uma das principais plataformas que visam a conectar pessoas trans a oportunidades específicas no mercado de trabalho.
Em casos de transfobia durante processos seletivos ou no ambiente de trabalho, é fundamental denunciar. Transfobia é crime. Disque 100.
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