Autismo em sala de aula: um longo caminho dos direitos à realidade
- Davi Guedes
- 23 de jun.
- 5 min de leitura
Entre o que a lei prevê e o que é oferecido, falta muito para o Brasil alcançar inclusão real
Por Davi Guedes

Somente entre os anos de 2023 e de 2024, o número de alunos com autismo matriculados nas escolas brasileiras subiu 44,4%, mostram os dados do último Censo Escolar da Educação Básica. Isso significa mais 286.675 estudantes que necessitam de atenção especial - o que exige das escolas a utilização dos mecanismos previstos em lei para tratar de maneira inclusiva esses estudantes. A realidade em sala de aula, porém, é diferente: menos da metade das escolas opera a partir de planos de ensino especializados, os chamados AEE.
“O preconceito me deu trabalho, meu filho não”. É assim que Regina Meletti, arquiteta e mãe de Lucca, um jovem de 22 anos com autismo, resume a luta para acompanhar a trajetória escolar do filho. O garoto se formou no ensino médio em 2022 após passar por quatro colégios, nos quais viveu muitas experiências.
Ao receber o diagnóstico referente ao autismo do filho, Regina conta que passou por um complicado processo de compreensão e de pesquisa quanto à condição de Lucca. Sua busca por uma escola não foi fácil porque, embora muitas alegassem ser inclusivas, na prática, o processo de inserção não acompanhava o discurso. Regina menciona já ter ouvido de uma coordenadora de ensino que não aceitaria seu filho na turma devido ao autismo. Com a exceção da última instituição de ensino em que o Lucca estudou, em todas as outras houve a necessidade de pagar uma quantia extra para que o garoto fosse acompanhado por um mediador. Conforme expõe a Lei Brasileira de Inclusão, a presença de mediadores para alunos com autismo deve ser assegurada em escolas públicas e em instituições privadas não deve haver qualquer acréscimo nas mensalidades.
Regina conta que, no início do ensino fundamental, Lucca foi vítima de bullying por parte não somente de alunos, mas também do corpo técnico de um dos colégios em que estudou. Essa experiência a levou a tirar o filho da instituição e colocá-lo em outra escola, onde permaneceu até o nono ano. Nela, seu filho pode amadurecer bastante e ampliar seu ciclo de convivências, embora no início também tivesse que lidar com o preconceito de colegas. O problema perdurou até o colégio conseguir conter a situação, por meio da mediação e do diálogo com a turma. Foi nesse intervalo de tempo que Lucca conheceu Leo, que viria a se tornar seu amigo. Juntos, eles faziam trabalhos em grupos e estudavam para as avaliações. Regina aponta que essa amizade escolar foi muito importante para o filho, uma vez que ele não tem irmãos ou primos de sua faixa etária para compartilhar de atividades ou gostos similares.
Lucca ingressou no ensino médio, agora em uma nova escola, em 2020, ano em que teve início a pandemia de Covid-19. Lucca teve de lidar com uma rotina totalmente atípica. Apesar dos desafios, obteve êxito acadêmico, e, segundo expõe a sua mãe, aguardou ansiosamente a hora de voltar presencialmente às salas de aula.
No segundo e terceiro anos do ensino médio, Lucca conseguiu frequentar o ensino presencial, conheceu novos colegas e se adaptou à nova rotina. Seu objetivo não era realizar o ENEM ou outros vestibulares, mas vivenciar os últimos anos escolares. Lucca participou da formatura e acompanhou atentamente todas as sete horas do evento, sem se exaurir, o que surpreendeu até mesmo sua mãe, acostumada com a usual indisposição do filho para eventos sociais desse tipo.

Deveres da rede de ensino
A psicóloga Neuma Camargo atuou como mediadora de Lucca nos anos de ensino médio. A partir de sua experiência e formação, ela diz que, para acompanhar alunos que estejam no TEA (Transtorno do Espectro Autista), é impossível pensar num método universal de integração, que funcione para todos os estudantes no espectro: “Trazer uma abordagem universal é impossível”. A instituição precisa informar aos profissionais sobre cada aluno e, baseado em cada caso, entender e construir a melhor abordagem”.
Com relação ao processo de convívio, Neuma afirma que é fundamental construir uma ponte para a integração do estudante com autismo e seus colegas de turma, algo fundamental para o amadurecimento e para o empenho acadêmico do jovem. Na sua avaliação, esse convívio não só é importante por ser fundamental ao estudante com o transtorno, mas também por enriquecer o desenvolvimento de todos os outros alunos que convivem com ele.
Fora os aspectos de convivência, Neuma destaca a importância de a escola dispor de uma infraestrutura básica, a fim de trazer mais conforto e acessibilidade ao aluno autista. Algumas dessas necessidades são mais facilmente remediáveis, como, por exemplo, utilizar formas de comunicação mais visuais em dinâmicas pedagógicas e abandonar o uso de dispositivos sonoros mais intensos e agudos, como sinos e apitos. Outras, porém, são mais custosas e demandam maiores esforços, como a garantia da presença de salas de silêncio, espaços especiais isolados acusticamente, cuja finalidade é servir de área apartada para estudantes com autismo em eventuais situações de estresse, ansiedade ou desgastes sociais.
Neuma conclui ressaltando a importância de se ter paciência e flexibilidade nas abordagens com alunos autistas, pois é natural que o processo de adaptação seja gradual e que decisões iniciais não sejam particularmente eficazes. Para ela, o mais importante é a informação e o cuidado, pois ser capaz de, nessa fase inicial da vida, oferecer um bom convívio escolar é imprescindível para as suas formações humanas. “Às vezes, a escola é o único centro de envolvimento pessoal, por isso ela é muito importante [...] aqui, é onde o aluno vai desenvolver a empatia, o autoconhecimento, trabalhar suas frustrações e tantas outras coisas importantes”, completa.
Quais são os direitos do aluno com autismo
O aluno que se enquadre no TEA tem os mesmos direitos de pessoas com deficiências. Dentre as legislações que vigoram sobre o tema, destacam-se a PNEE - Política Nacional de Ensino Especial, a LBI - Lei Brasileira de Inclusão e a Lei Berenice Paiva.
Essas leis devem ser seguidas por todas as instituições de ensino e não somente colégios especiais destinados a estudantes com autismo. Para todos os efeitos práticos, os principais pontos a serem destacados são:
todas as escolas devem dispor de um mediador para o estudante com TEA que dele precisar;
a instituição deverá seguir o AEE -Atendimento Educacional Especializado - , que visa a constituir um plano de ensino especializado ao aluno necessitado;
nenhuma escola - no caso da rede privada - pode cobrar qualquer valor a mais na oferta de qualquer um desses serviços.
Pelos dados do Censo Escolar, realizado pelo Inep, em números absolutos, o número de alunos com algum grau de autismo subiu de 632.202 matriculados em 2023 contra 918.877 em 2024. Desse total, 90% estão em classes regulares. Dentre esses, 53,1% estudam em turmas que não seguem o AEE. O número, porém, apresentou uma queda total de 2,9 pontos percentuais desde 2020.

A pesquisadora Annie Redig, do Departamento de Estudos da Educação Inclusiva e Continuada da Uerj, ressalta que, apesar da importância das legislações sobre os colégios, a formação pedagógica dos professores também é um ponto importante para auxiliar na formação dos estudantes.
Atualmente, as formações em licenciatura contemplam uma disciplina obrigatória sobre ensino especial. Na opinião da pesquisadora, a melhor abordagem para o profissional seria seguir uma formação continuada e em serviço. Por meio dela, o professor conseguiria aprender com a prática e a vivência da sua profissão e poderia se manter antenado com discussões mais atualizadas sobre o tema da inclusão.
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