Bairro mais distante do Centro do Rio, Santa Cruz oferece história e passeio turístico
- Kauhan Fiaux
- 29 de mai.
- 7 min de leitura
Projeto valoriza turismo em região retratada por Debret e que em 2022 ganhou o título de Bairro Imperial
Por Kauhan Fiaux

Às 10h de um sábado, um grupo de pessoas se reúne no Largo do Bodegão, em Santa Cruz, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, e começa um passeio turístico pelo bairro mais distante do centro da cidade. O movimento chama atenção dos moradores e de quem passa por lá. A técnica em guia de turismo Andressa Lobo, responsável pelo passeio, é conhecida por muitos moradores que a ajudam a contar a história do lugar. Andressa luta pela inclusão de Santa Cruz no mapa do turismo da cidade e foi responsável pelo título de Bairro Imperial, recebido em 2022.
Foi vendo a curiosidade de turistas franceses pelo bairro que a guia resolveu largar locais como Petrópolis e Copacabana e fazer passeios turísticos no extremo oeste da cidade. “Eu pegava o ônibus em Santa Cruz às 3h30 para trabalhar em Copacabana. Eu era responsável por levar os turistas que falavam francês de lá para Petrópolis. Quando chegavam lá, eles diziam: ‘Não é isso que eu estou procurando, eu estou procurando o palácio que era uma antiga igreja com torre sineira’. E eu tinha que responder que eles não encontrariam por lá”, explicou ao Rampas.
O palácio a que os turistas se referiam é a antiga casa de veraneio da família real em Santa Cruz, atual sede do Batalhão da Escola de Engenharia do exército. A familiaridade dos franceses com Santa Cruz se deve ao trabalho de Jean-Baptiste Debret, que integrou a Missão Artística Francesa na década de 1820 e pintou muitos locais do bairro.

Com o isolamento social por conta da pandemia de Covid-19, Andressa passou a estudar curiosidades do próprio bairro e a importância que Santa Cruz teve para a história do Brasil. Em 2021, criou o Descubra Santa Cruz, projeto que realiza trilhas históricas no bairro, passando pelos principais edifícios e atrações do bairro, e viu uma oportunidade de trabalhar mais perto de casa. O projeto é a principal fonte de renda de Andressa.
A ideia não chama somente atenção de quem vem de fora do bairro. Muitos moradores de Santa Cruz e da Zona Oeste aproveitam para saber a história não contada do local. É o caso do funcionário público Marcos Faria, morador de Paciência, que fez o passeio turístico para saciar a curiosidade pela história do bairro vizinho ao que vive: “É sempre bom buscar conhecer o lugar onde você nasceu e cresceu. Às vezes, você passa por aqui e não sabe que é um local histórico. Só descobre quando chega em uma faculdade de história ou quando sente a curiosidade.”

Projeto realiza dois trajetos por Santa Cruz
Os passeios turísticos reúnem até 40 participantes, duram cerca de três horas e custam R$ 40 por pessoa. O primeiro roteiro, chamado “Santa Cruz que alimenta toda a Capital Nacional”, tem como ponto de partida o antigo Matadouro Imperial — responsável pela produção da carne bovina que alimentava todo o Sudeste.
O trajeto começa no Largo do Bodegão, passando pelas instalações do Matadouro de Santa Cruz, onde atualmente funciona a Fundação de Apoio à Escola Técnica (Faetec) de Santa Cruz. Lá está exposto um dos primeiros geradores de energia do Brasil.
Segundo a guia, o gerador viraria sucata e seria vendido em um ferro-velho, mas conseguiu ser resgatado. Desde então, a peça histórica está exposta na escola, mas com poucas obras de restauração.

O passeio segue para o Palacete Princesa Isabel, que foi sede do Matadouro Imperial. Após o encerramento do matadouro, o local se tornou uma escola. Atualmente, é um palacete multiúso e serve como espaço cultural e sede do Núcleo de Orientação e Pesquisa Histórica de Santa Cruz (Noph) e da Subprefeitura da Zona Oeste III. Apesar de ter sofrido dois incêndios por conta da má preservação, o estilo antigo da construção neoclássica foi parcialmente mantido.

O trajeto termina no Mirante da Boa vista, onde é possível avistar o Hangar do Zepelim, local que foi o primeiro aeroporto internacional do Brasil e recebia dirigíveis que vinham de Frankfurt, na Alemanha. Tombada pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico), a estrutura é um dos únicos hangares do tipo totalmente preservados no mundo. O mirante era onde se reuniam crianças que queriam ver a chegada dos enormes zepelins, o que se tornava um evento festivo no bairro.
O segundo roteiro começa na antiga Sede da Fazenda Imperial de Santa Cruz — primeira casa de veraneio da família imperial e atual Batalhão de Escola de Engenharia do Exército. Ali, a guia Andressa apresenta as estruturas da região. O passeio segue por outros pontos históricos, como a Fonte Wallace, doada ao Brasil pelo inglês Sir Charles Wallace. Depois, o trajeto cruza o Marco imperial XI e termina no centro de Santa Cruz.
Confira no mapa interativo os locais visitados nos dois trajetos:
Andressa destaca que fazer turismo em Santa Cruz é um desafio, mas também vê muitas vantagens: “É um desafio maravilhoso. Primeiro é mostrar para aquelas pessoas que sempre falavam que Santa Cruz não tem nada que elas só não estavam tendo a perspectiva certa do bairro. É um desafio ao ter cariocas com um preconceito em relação à Santa Cruz. Em contrapartida, tem estrangeiros doidos para vir até aqui e conhecer esse lugar.”
Além de Andressa, outras 10 pessoas atuam no projeto. Com os desafios de manter o Descubra Santa Cruz com poucos recursos, a guia destaca que o objetivo é ampliar o projeto: “Eu poderia garantir minhas contas pagas se executasse o projeto sozinha, mas isso não ampliaria a atuação do Descubra Santa Cruz. Temos trocas importantes e somos uma equipe multiprofissional, sem eles, eu não teria pernas para ir tão longe.”
Mesmo com algumas dificuldades, o projeto realiza, de forma voluntária, passeios com escolas da região. Andressa descreve a ação como um “trabalho de formiguinha’ e busca estimular as crianças do bairro a cuidarem do território e, no futuro, atuarem para a melhoria de Santa Cruz.
Em 2025, o Descubra Santa Cruz foi contemplado com um edital da Secretaria Municipal de Cultura e lançará uma websérie sobre a história do bairro. “Infelizmente, ainda não somos bem vistos por investidores, então, o desenvolvimento não está tão rápido como gostaríamos. Mas estamos felizes por chegar cada vez mais longe”, explica Andressa.
Moradores preservam lugares históricos
O passeio não mostra apenas a velha Santa Cruz. É possível ver também como os pontos históricos da região resistem. Muitos, inclusive, por conta das ações dos próprios moradores. É o caso da Vila Operária do Matadouro, construída para ser moradia dos trabalhadores no século XIX. O local, com 38 casas, não passou por obras recentes de restauração, e os moradores pagaram para criar um portão que restringe o acesso, além de cuidarem da grama que se alastrava pelo espaço e por parte da estrutura do matadouro.

Marcus Dezemone, professor do departamento de história da Uerj, explica a importância dos monumentos históricos do bairro, que atravessam a história do Brasil: “Dialoga com muitos momentos diferentes da história. Cada um dos três períodos mais importantes do Brasil (Colonial, Imperial e Republicano) tem uma representação de destaque em Santa Cruz.”
O professor também ressalta a importância que projetos como o Descubra Santa Cruz têm para a preservação e conhecimento do patrimônio histórico em áreas mais negligenciadas: “Apesar de toda essa importância histórica, o bairro de Santa Cruz ainda não é reconhecido dentro do circuito turístico da cidade. A segurança e distância das principais zonas turísticas impactam nisso. Uma estratégia interessante que se mostra eficaz em várias partes do mundo é a exploração do turismo. É preciso utilizar esses instrumentos para dar ciência da riqueza que existe em Santa Cruz, sempre dialogando com a população e com articulação.”
Santa Cruz tem título de Bairro Imperial
Com tanta história guardada em Santa Cruz, Andressa Lobo também lutou para que a região ganhasse o título de Bairro Imperial. Em 2021, durante uma audiência pública no Palacete Princesa Isabel, cobrou que políticos da região se mobilizassem pela ideia. Em 2022, o bairro recebeu finalmente o título.
“A gente está falando do bairro que recebeu um dos primeiros geradores de energia do Brasil, que recebeu a primeira entrega dos correios numa residência e foi pioneiro em várias coisas. Mas houve um apagamento desse período aqui e Santa Cruz saiu dos mapas e da história”, explica Andressa.
Na criação dos roteiros turísticos por Santa Cruz, a guia se inspirou em São Cristóvão — que recebeu o título de Bairro Imperial em 2007 e recebeu muitas mudanças de lá para cá. “O bairro passou a ter investimento em infraestrutura, ganhou mais iluminação na rua e ônibus com mais frequência. Tinha inclusive um ônibus que saía da estação de São Cristóvão e fazia um tour pelos museus do bairro. Imagina se tivesse isso em Santa Cruz?”
Três anos após o recebimento do título, são notáveis as mudanças nos pontos históricos de Santa Cruz. A ponte dos Jesuítas, terceira construção histórica da região tombada pelo IPHAN, ficou abandonada por muitos anos, com o mato praticamente cobrindo metade da estrutura. Em 2022, o local passou por restaurações e virou uma praça, onde moradores fazem atividades de lazer.

Originalmente chamada de Ponte do Guandu, a estrutura foi construída pelos jesuítas em 1752 e era responsável por regular o volume das águas do rio Guandu em dias de cheias, desviando-a para canais e preservando as plantações de arroz e as casas da região. Além disso, fazia parte da estrada que ligava o bairro a São Cristóvão.
Por mais que algumas mudanças sejam notadas, Andressa destaca que a questão da mobilidade urbana ainda é um problema para o bairro, pois há poucas opções de transporte passando pelos pontos históricos: “Na questão da mobilidade, São Cristóvão melhorou muito, e a gente continua tendo essa dificuldade. No Matadouro, inclusive, havia um período em que não havia ônibus nem para atender os alunos da Faetec. Tem que melhorar essa questão.”
Hoje, apenas três bairros do Rio de Janeiro são considerados imperiais: São Cristóvão (desde 2007), Santa Cruz (desde 2022) e Centro (desde 2024). O título ajuda a preservar os monumentos históricos dos locais.
O Descubra Santa Cruz RJ realiza passeios periodicamente, além das atividades com instituições públicas — realizadas de forma voluntária por Andressa. A Appai (Associação Beneficente Professores Públicos) tem uma parceria com o projeto e os professores associados podem ir aos passeios gratuitamente. Para o restante do público, é possível adquirir ingressos para os passeios, que custam R$ 40.
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