Capital do Livro, Rio de Janeiro oferece acesso desigual a bibliotecas
- Rampas

- 13 de out.
- 7 min de leitura
Atualizado: 14 de out.
Centro e Zona Sul concentram estabelecimentos, enquanto periferias enfrentam escassez de espaços destinados à leitura
Por Letícia Ribeiro, Livia Bronzato e Rafaella Fonseca
Nomeado Capital Mundial do Livro em 2025 pela UNESCO, o Rio de Janeiro sofre com a distribuição desigual de bibliotecas em seu território. Mapeamento feito pelo Rampas identificou 74 bibliotecas em toda a cidade, metade concentrada na região Central da cidade. A área tem 37 bibliotecas, enquanto a Zona Sul tem 12, a Zona Oeste, 11, a Zona Norte, 11, e a recém-criada Zona Sudoeste, apenas 3. Os números mostram que o acesso aos livros permanece como um privilégio geograficamente concentrado, destoando da imagem que o Rio tenta projetar como Capital Mundial do Livro e exemplo de democratização cultural.
Na comparação entre o número de bibliotecas e a população de cada região, a situação fica ainda mais grave. A Zona Central do Rio, com suas 37 bibliotecas, conta com uma estabelecimento para cada 7 mil habitantes. Em seguida, aparece a Zona Sul, com uma biblioteca para cada 48.571 moradores. A disparidade se acentua nas demais regiões: na Zona Oeste, há uma biblioteca para cada 167.320 habitantes; na Zona Norte, uma para cada 238 mil; e, na recém-delimitada Zona Sudoeste, o cenário é ainda mais crítico, com apenas uma biblioteca para cada 368.540 pessoas. Os resultados foram obtidos pelo Rampas cruzando informações da ferramenta Google Maps, do site da Secretaria Municipal de Cultura e do site xxx, para os dados sobre população.

Gestora da Biblioteca Manuel Ignácio da Silva Alvarenga, em Campo Grande, Zona Oeste, Pituka Nirobe relata a falta de suporte da Prefeitura com as bibliotecas municipais. “Se tivéssemos recursos, poderíamos melhorar nosso acervo, colocar de acordo com a procura dos leitores.” Pituka diz que, como contadora de histórias, trabalha diariamente com crianças, mas não tem o material necessário para desenvolver atividades. “Muitas vezes, a gente tem que fazer vaquinha para comprar o básico, porque a Prefeitura não dá esse suporte.”

Para a professora Márcia Lisboa, do Departamento de Letras da Faculdade de Formação de Professores da Uerj, a desigualdade na oferta de bibliotecas é um sintoma da disparidade de acesso à cultura nos territórios urbanos do Rio. “Está articulada à exclusão das populações mais vulneráveis em termos socioeconômicos e ao racismo estrutural,” explica. Ela lembra que a existência de bibliotecas é fundamental para garantir a democratização do acesso aos livros.
Segundo a 6ª edição da “Retratos da Leitura no Brasil” (2024), realizada pelo Instituto Pró-Livro e pelo Ministério da Cultura, 53% dos entrevistados não leram nenhum livro, ou mesmo parte dele, sem distinção de gênero, nos três meses anteriores ao levantamento. “Se considerarmos somente livros inteiros lidos no mesmo período, o percentual de leitores é ainda menor, de 27% dos brasileiros,” afirma a pesquisa. O Rio, por sua vez, apresentou um percentual de somente 48% de leitores em 2024. Esse número é produto da falta de investimento e da má distribuição das bibliotecas pelo território carioca. Os impedimentos tendem a piorar o acesso da população aos livros.
Moradora de Laranjeiras, na Zona Sul do Rio, a estudante de 41 anos Flávia Neves conta que precisou seguir uma rotina penosa para escrever sua tese de doutorado em um lugar silencioso e com acesso a livros. Para chegar até a sala de leitura da biblioteca do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), preparava uma mochila pesada para passar o dia, além de lanches para economizar dinheiro. “Escrevi grande parte da minha tese de doutorado aqui graças à infraestrutura da biblioteca e ao fato dela funcionar para além dos dias de semana, já que precisamos trabalhar e às vezes só sobra tempo para estudar sábado ou domingo,” contou. Até chegar ao CCBB, Flávia pesquisou bibliotecas mais próximas de casa, mas acabou se deparando com locais pequenos, sem silêncio e/ou precarizados.

Assim como ela, diversas pessoas são atraídas até a Zona Central para usufruir do ambiente, que conta com um vasto acervo e uma sala de leitura estruturada, muito utilizada pelos frequentadores. “O fluxo é bem contínuo, são as mesmas pessoas que vêm até a biblioteca, geralmente durante os finais de semana. Muitos estão estudando para concursos públicos ou faculdade e passam o dia inteiro aqui”, relatou Guilherme Luan, auxiliar de biblioteca do CCBB.

Uma das bibliotecas listadas como uma das mais bonitas do mundo, título dado pela revista Time em 2021, fica no Centro do Rio. O Real Gabinete Português de Leitura está em funcionamento desde 1900. O gabinete tem o maior acervo de obras de autores portugueses fora de Portugal, com mais de 350 mil exemplares, incluindo edições raras do escritor Camilo Castelo Branco.

Visitante regular da biblioteca desde a época do mestrado e atual pesquisador da casa, Eduardo Cruz, professor do curso de Letras da Uerj, escolheu o gabinete como sua fonte de estudos pelo acervo considerável do século XIX de livros, revistas e jornais. “Eu venho pesquisar aqui porque muito desse material não é digitalizado. Esse tipo de material só encontro aqui ou na Biblioteca Nacional,” contou. O professor diz que as bibliotecas são importantes não só para a formação acadêmica, mas também para a formação do indivíduo. Ele destaca que tais espaços vão além do armazenamento de livros; são polos culturais, onde acontecem eventos, leituras dramatizadas e discussões sobre obras. “No Centro tem muita oferta de biblioteca, com acervos variados a depender do interesse de leitura de cada um. Mas é o Centro da cidade. Na Zona Oeste, Zona Norte, Baixada, ou lugares mais distantes, a oferta é menor. Mas é importante, deveria ter, não só pelo acesso aos livros, mas também como esses polos culturais que as bibliotecas são,” afirma.

Apesar dos usuários que utilizam o espaço para estudos, funcionários relatam a redução na procura pelas obras. Bibliotecária no Real Gabinete há 30 anos, Vera Lúcia de Almeida conta que a busca por livros tornou-se turismo. “Lamentavelmente, essas pessoas não vêm para usufruir da biblioteca. Da pandemia para cá, começamos a pedir que as pessoas façam agendamento para a leitura, mas o fluxo é bem baixo. Hoje em dia, o pessoal vem mais para turismo, para tirar fotos.”
O vozerio de sotaques e idiomas diferentes se faz presente todos os dias no gabinete. Com a entrada gratuita, turistas do mundo todo visitam a biblioteca para tirar fotos. Os moradores da cidade, no entanto, sofrem com a distância para chegar ao local, seja para “turistar” ou para usufruir do acervo.
Já a Zona Norte, uma das regiões mais prejudicadas quanto à oferta de bibliotecas, enfrenta uma situação alarmante. Com apenas 11 bibliotecas em toda a região, estudantes e moradores precisam se desdobrar para conseguirem acessar a cultura, conhecimento e espaços próprios para o estudo.
A bibliotecária Tânia de Melo, de 49 anos, trabalha desde 2015 na Biblioteca Central do Centro Federal de Educação Tecnológica (Cefet) Celso Suckow da Fonseca, no Maracanã. Durante esse período, ela observou uma redução drástica na quantidade de alunos do próprio Cefet que visitam o acervo. “Antes da pandemia, era lotada, muito cheia. Ficava gente do lado de fora esperando esvaziar para conseguir entrar,” conta.


Visitando pela primeira vez a Biblioteca Municipal Marques Rebelo, no bairro da Tijuca, Paulo Roberto Borges, aposentado, reflete sobre a falta de acervo nas bibliotecas disponíveis mais próximas de sua casa. Aos 66 anos, o morador do Flamengo, na Zona Sul, conta que constantemente precisa se deslocar para locais muito distantes para encontrar um livro. Ele e sua esposa Lindalva Borges, 67, costumam ligar para as bibliotecas públicas espalhadas pelo Rio na tentativa de achar a obra desejada, e já precisaram percorrer de Manguinhos a Niterói, passando também pela Tijuca, Centro e Botafogo.
O relato de Paulo exemplifica a dificuldade do acesso à leitura por meio de acervos que sejam ricos em variedade e de fácil acesso ao público. Ele acrescenta que, como educador, observa a falta de incentivo à leitura no Brasil, destacando que parece articulada propositalmente a falta de divulgação das bibliotecas estaduais e municipais.

Outros frequentadores da Marques Rebelo se queixam das mesmas dificuldades. Anderson Maurício, morador da Tijuca há dois anos, disse que muitos de seus conhecidos e moradores do bairro não conhecem o local devido à falta de divulgação. Anderson é formado em engenharia elétrica e atualmente atua como professor na área para universitários e vestibulandos.
O docente frequenta o ambiente a fim de revisar os conteúdos que ensina em aula, mas necessita levar livros de casa por conta da escassa oferta de livros da biblioteca tijucana. “O acervo é bem pequeno, já explorei todos os livros de exatas que estão aqui, ocupam apenas uma prateleira ali no canto”, contou. Ele acrescentou que alguns desses alunos, apesar da dificuldade de acesso aos livros, buscam de outras maneiras adquirir conhecimento e praticar seus estudos.
Apesar dos problemas, existem projetos que buscam melhorar o acesso à leitura. Um deles é o Favelivro, movimento sem financiamento que já instalou 50 bibliotecas em comunidades pelo Rio de Janeiro, sendo 17 na Zona Norte. O projeto nasceu da união dos amigos Demezio Batista, livreiro, e Verônica Marcílio, professora de língua portuguesa. Seu funcionamento se dá da seguinte forma: geralmente, a própria comunidade reivindica uma biblioteca e sugere um local para sua instalação. Depois, o Favelivro monta o local com ao menos 500 exemplares de livros, todos frutos de doações. Os espaços são batizados com nomes de personalidades, como artistas ou jornalistas, que se tornam padrinhos do espaço, dando visibilidade à iniciativa.

Contudo, Verônica ressaltou a dificuldade de localizar as bibliotecas comunitárias. “Geralmente elas não têm nem endereço porque são em becos ou em ruas que somem ou mudam de nome. Para quem tiver interesse em visitar os ambientes, o ideal é procurar a associação de moradores para receber a localização correta,” contou.
Na Zona Sudoeste, também há a tentativa de suprir a falta de oferta: moradores criaram pontos gratuitos para a troca de livros, que podem ser levados e repostos pelos interessados. Dois desses pontos estão localizados na Península, sub-bairro da Barra da Tijuca, e fazem parte da organização sem fins lucrativos Little Free Library; são como “caixas de correios” especiais para abrigar os livros. No Recreio dos Bandeirantes foi criada uma iniciativa similar, a Biblioteca Péricles da Silva Oliveira, um pequeno contêiner com prateleiras para armazenar as obras, na Praça Barra Bonita.
Apesar das iniciativas, esses pontos não podem ser considerados bibliotecas por não possuírem um acervo e um espaço físico que possibilite o proveito coletivo da leitura. Além disso, são insuficientes para suprir a lacuna cultural existente nas regiões com menor oferta de bibliotecas.
O Rampas procurou a Secretaria Municipal de Cultura no Rio de Janeiro pelo telefone de contato e pelo e-mail disponibilizado no site para saber se há algum projeto para ampliar o acesso a bibliotecas na cidade. Não houve resposta até o fechamento desta reportagem. O espaço segue aberto.
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