Especialistas alertam sobre os riscos à saúde mental provocados pelo aumento das horas de trabalho devido ao uso constante de dispositivos
A jornada oficial de João Silva*, de seis horas diárias, é apenas uma parte do tempo que ele realmente passa trabalhando como estagiário de comunicação. Ele se vê imerso no trabalho através do celular, ultrapassando frequentemente seu horário formal. “Eu não consigo estimar quanto tempo trabalho por dia, mas, sem exagero, eu fico ‘online’ o tempo inteiro. Meu celular vibra sem parar. É como se eu estivesse sempre ocupado”, diz.
A realidade de João traz luz ao que muitos trabalhadores enfrentam atualmente, em uma era em que a tecnologia mantém os profissionais sempre acessíveis: o aumento da jornada de trabalho por conta do uso dos aparelhos eletrônicos, em especial dos celulares.
No Brasil, os cidadãos passam, em média, 9 horas e 32 minutos diários em frente às telas, conforme revela um estudo da plataforma britânica Proxyrack. Esse dado coloca o Brasil em segundo lugar no uso diário de internet, superado apenas pela África do Sul, com 9 horas e 38 minutos. As Filipinas seguem em terceiro, com 9 horas e 14 minutos. O estudo comparativo analisou a média de tempo gasto online, o percentual de usuários de internet, a quantidade de plataformas de mídia social usadas mensalmente e o uso de internet via celular nos países avaliados.
Todo esse tempo, no entanto, não vai apenas para entretenimento: um levantamento feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2022 mostra que 7,4 milhões de pessoas estavam no teletrabalho, ou seja, esses trabalhadores estavam exercendo suas funções, ao menos parcialmente, em um local alternativo, com o uso de equipamentos de tecnologia.
A advogada especialista em direito trabalhista Heloisa Schmidt explica que a alta exposição às telas está diretamente ligada ao prolongamento das horas de trabalho. “Graças à pandemia e à tecnologia, o trabalho não se resume mais apenas ao horário comercial, ele agora está dentro das casas dos trabalhadores. Isso piora a qualidade de vida e aumenta a carga de exaustão”, esclarece.
A legislação brasileira não tem regulamentações específicas sobre o uso de celulares ou outros dispositivos eletrônicos após o expediente. No entanto, normas podem ser estabelecidas por meio de acordos e convenções coletivas entre representantes de trabalhadores e empregadores. Adicionalmente, cabe ao empregador o poder de restringir o uso de celulares durante o horário de trabalho por meio de políticas internas.
João diz que não se lembra da última vez que conseguiu se desconectar completamente do celular para relaxar. Ele menciona que raramente consegue ficar sem celular por mais de 30 minutos, pois sempre surgem novas tarefas, muitas vezes fora de sua área de responsabilidade e do horário combinado. "Me sinto constantemente pressionado e ansioso", confessa.
A psicóloga Ingrid Pelajo, especialista em terapia cognitivo comportamental, explica que, a longo prazo, as rotinas de trabalho estão criando em boa parte da população “danos muito sérios à saúde mental”. Ela conta que atende pacientes com problemas causados por estarem se sentindo pressionados por trabalhar demais e fora do horário: “Uma paciente precisou ir ao médico e pedir para ficar afastada do trabalho. Mesmo com o atestado, continuavam surgindo demandas e ela não conseguia sair desse ciclo. Chegou um momento em que ela saiu de maneira definitiva do emprego”.
Marcos Souza*, outro profissional afetado, relata que desenvolveu um quadro de estresse motivado por abusos cometidos por seu empregador em 2022. O jornalista trabalhava de maneira remota e, segundo ele, sempre acabava passando um pouco mais do horário. Em um determinado dia, desligou seus aparelhos assim que cumpriu sua carga horária. Quando ficou online para trabalhar no dia seguinte, foi informado que não fazia mais parte do quadro de funcionários por estar ausente durante uma demanda.
“Já chegaram a me enviar demanda às 21h para ser entregue às 23h. Meu horário, acordado e combinado, era de 9h às 16h, mas isso nunca foi respeitado. Pensei em abandonar a profissão e procurar algo que fosse menos desgastante, mas a necessidade acaba fazendo com que nunca tomemos medidas assim”, desabafa Marcos. O caso corre na Justiça atualmente — ele pede uma indenização por danos morais.
*Os nomes reais foram alterados para preservar a privacidade e a identidade dos envolvidos.
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