Projeto Camp Mangueira funciona há 30 anos e já capacitou mais de 20 mil jovens para o mercado de trabalho
Nascido e criado no morro da Mangueira, vindo de uma das famílias fundadoras da comunidade, o professor e advogado Marco Aurélio Claudino viu de perto as transformações na comunidade da escola de samba verde-e-rosa. Em 1995, entrou como estagiário na 17ª turma no Camp Mangueira, projeto social mantido pela escola. Anos depois, conseguiu se formar em Letras na Uerj e passou a dar aulas no projeto. E até hoje diz que o Camp foi uma porta aberta para o começo de sua carreira profissional.
Ele acompanhou a transformação na vida de muitos alunos, mas também presenciou histórias trágicas de moradores que desistiram da educação e entraram para o mundo do crime. “Já perdi vários alunos para o tráfico. Se todas as comunidades ou se a maioria delas tivessem um Camp, uma instituição que inserisse os jovens no mercado de trabalho, tenho certeza de que a violência do Rio de Janeiro não estaria nesse patamar”, aponta.
Conhecido como escola da cidadania, o Camp Mangueira - Círculo de Amigos do Menino Patrulheiro da Mangueira foi fundado em 1988 por Alice de Jesus Gomes Coelho, moradora do morro, com o suporte financeiro da empresa Xerox Brasil. Construído após a fundação da Vila Olímpica da Mangueira, uma iniciativa também de Alice de Jesus, o Camp nasceu com o objetivo principal de possibilitar que jovens moradores da comunidade da Mangueira e também de outras localidades conseguissem acesso à educação e ao mercado de trabalho.
Maria Elisa Araújo, assistente de comunicação do Camp Mangueira, afirma que o projeto social tem dois programas, o Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV) e o Projeto de Integração ao Mundo do Trabalho (PIMT). O SCFV é vinculado aos CRAS da região, que atende adolescentes entre 15 e 17 anos moradores dos arredores oferecendo atividades extracurriculares às terças e quintas. Já o PIMT (Programa de Integração ao mundo do trabalho) tem duração de um mês. Nesse período, o aluno recebe todas as instruções necessárias para ser encaminhado ao mercado de trabalho, com aulas e oficinas sobre como participar dos processos seletivos, fazer um currículo e se portar em uma entrevista de trabalho. O objetivo é qualificar jovens de 17 a 24 anos para o mercado de trabalho.
De acordo com um relatório realizado pelo Camp Mangueira em 2023, 817 jovens foram encaminhados para processos seletivos. Ainda de acordo com a pesquisa, 18% dos jovens do projeto foram efetivados pelas empresas e 51% finalizaram o período de vínculo empregatício com a empresa. Desde o seu lançamento em 1988, o projeto já encaminhou mais de 20 mil jovens para o mercado de trabalho. De acordo com Maria Elisa Araújo, mais de 600 jovens serão capacitados ainda este ano.
“Mais de mil alunos passam por nossas turmas anualmente. No momento, temos mais de 800 jovens aprendizes atuando em empresas parceiras, sendo 60 alunos por mês no PIMT. A previsão é que possamos não só manter os 800 aprendizes, como ampliar as vagas, passando de mil aprendizes atuando em empresas parceiras”, aponta Maria Elisa.
Lua Bastos, que hoje trabalha na área administrativa, foi aluna do Camp Mangueira e diz que o programa mudou sua vida pessoal e profissional. “Participar do Camp foi uma experiência transformadora e enriquecedora. Como mulher trans, senti um acolhimento excepcional, com um cuidado e carinho fundamentais para o meu desenvolvimento. O suporte e a inclusão promovidos pelo Camp me permitiram adquirir conhecimentos e habilidades que me tornaram a profissional que sou hoje”, destaca.
Há trinta e dois anos no programa, Antonio Carlos Ferreira atua como administrador e diretor voluntário no Camp Mangueira. Antes funcionário da empresa Xerox Brasil, Ferreira, como é conhecido pelos funcionários, foi convidado para fazer parte do projeto.
Ele explica como funciona a parceria do Camp com as empresas, depois que os jovens passam pelo PIMT: “Uma empresa que tenha comércio pode procurar o Camp, e encaminhamos para elaum aprendiz com a formação de comércio de varejo”.
O administrador ressaltou que o programa é uma unidade com profissionais completos, com psicólogos, assistentes sociais, pedagogia e equipe administrativa, e que está apto para dar assistência aos alunos em todos os aspectos.
O outro lado do Brasil
Nem todos os brasileiros têm acesso a uma educação como a oferecida no Camp. A Pesquisa Nacional Por Amostra de Domicílios Contínua de 2023 (Pnad-Contínua), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostra que mais de nove milhões de pessoas entre 15 a 29 anos não estudam nem trabalham no Brasil. Os chamados nem-nem equivalem a 19,8% dos jovens brasileiros, contra 22,3% em relação a 2022. É uma queda de 20% em relação a 2022.
Ainda de acordo com a pesquisa, o número de jovens que trabalham e estudam é de 15,3%. Os que apenas trabalham são 39,4%, e 25,5% apenas estudam. A Pnad mostra ainda que mulheres e pessoas pretas e pardas são maioria da população nem-nem.
Dados do IBGE mostram que a proporção de nem-nem varia de acordo com a raça. Segundo a Pnad-Contínua, o número de jovens pretos e pardos que não trabalham e nem estudam é de 22,3%, enquanto a taxa de jovens brancos que não estão ocupados e nem estudam é de 15,8%. Ainda com os resultados da pesquisa, a taxa de jovens pretos e pardos que estudam e trabalham é de 13,2%; entre brancos, são 18,4%.
Segundo a psicóloga Raquel Leite de Souza, há uma série de acontecimentos desde a infância que podem influenciar negativamente no desenvolvimento de habilidades mentais dos indivíduos. “De acordo com a minha vivência em clínica, percebo que a grande parte dos jovens da categoria nem-nem apresenta alguma dificuldade de aprendizagem, baixa autoestima, crises familiares e ansiedade. Muitos vêm de famílias desestruturadas e adoecidas, com pouco ou nenhum contato no desenvolvimento das crianças para trazerem referências saudáveis. Os jovens não conseguem desenvolver a capacidade de elaboração de opiniões e têm dificuldades para pensar em resolução de problemas. Muitos desistem facilmente da escola ou do trabalho, pois há uma exigência de esforço emocional e psicológico para o qual não foram preparados”, explica a psicóloga.
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