Cinema para (quase) todos
- Beatriz Araujo

- 19 de jun.
- 7 min de leitura
Atualizado: 2 de jul.
Mesmo com leis em vigor, pessoas com deficiência visual e auditiva ainda enfrentam dificuldades para acessar sessões de cinema no Brasil
Por Beatriz Araujo
Desde 2021, a Lei 14.009/20 determina que todas as salas de cinema brasileiras devem garantir sessões com acessibilidade para pessoas com deficiência auditiva e/ou visual. Hoje, o Brasil possui 3.511 salas em funcionamento, todas oficialmente aptas a oferecer recursos de acessibilidade por meio de aplicativos como Greta, M Load, Movie Reading e PingPlay. Apesar de cumprirem a exigência legal, esses apps não suprem as necessidades práticas de todo o público.

Ing Lee (30) é surda oralizada, tem deficiência auditiva de grau severo a moderado e usa a língua falada e a leitura labial para se comunicar. Para ela, assistir um filme numa rede de cinemas é uma atividade repleta de dificuldades, especialmente quando se trata de produções brasileiras. “Quase todas as sessões de cinema nacional não têm legendas. Para eu aproveitar 100% do filme, ele precisa ser legendado, independentemente da língua. Sem legenda, eu não consigo acompanhar”, explica.
Experiências como a de Ing levaram a Agência Nacional do Cinema (Ancine) a determinar em 2016 que os distribuidores e exibidores de filme deveriam proporcionar recursos de acessibilidade às pessoas com deficiência visual e auditiva, incluindo audiodescrição, legendagem descritiva e Libras. Em 2022, essa regulamentação foi atualizada com a Instrução Normativa no 165/2022 que prevê penalidades e multas a exibidores e distribuidores de filmes caso se identifique algo que dificulte ou impeça o acesso da pessoa com deficiência a essas tecnologias.
Atualmente, os recursos de acessibilidade podem ser solicitados na bilheteria das redes de cinema ao adquirir o ingresso. Em alguns casos, há a possibilidade de utilizar um dispositivo oferecido pelo cinema ou instalar um aplicativo no celular que disponibiliza a tradução automática, descrição de áudio, janela de libras e legendas sincronizadas com o filme. Os usuários reclamam dessa prática por acharem os usos limitados, desconfortáveis e excluir uma parcela da população, como pessoas com dificuldades financeiras, idosos com limitações no uso de tecnologia e outros grupos vulneráveis.
“Os filmes tem em média uma hora e meia ou duas horas de duração. Imagina você ficar segurando o celular o tempo inteiro e ficar tentando acompanhar as duas telas ao mesmo tempo? Eu não acho que isso seja uma medida que funciona”, reflete Ing Lee.
Manoel Negraes, consultor em audiodescrição e palestrante sobre direitos humanos e acessibilidade cultural diz que, apesar dos aplicativos contemplarem a audiodescrição, eles não devem ser a única solução ou substituir outros equipamentos. “Nem todo filme está disponível nos aplicativos. As salas precisam investir em equipamentos. E não podemos colocar a responsabilidade da oferta da tecnologia no usuário, que pode não ter celular e pode também não querer usá-lo para ouvir a audiodescrição”, destaca.
Um olhar para o futuro
Para Elissandra Perse, coordenadora do Setor de Libras do Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (ILE-Uerj), há diversos fatores que travam o avanço da acessibilidade nos cinemas. “Ainda há muita desinformação e escassez de recursos, além de resistência a mudanças. Também falta formação adequada dos profissionais da indústria cinematográfica para lidar com essas demandas”, afirma. Ela defende que essa formação deve ocorrer ainda na universidade com a exposição dos futuros profissionais ao público com deficiência, incluindo-os também na avaliação e aplicação desses recursos para garantir um padrão de qualidade.
A recém-inaugurada Licenciatura em Cinema e Audiovisual da Faculdade de Educação da Baixada Fluminense (FEBF/UERJ) tem como proposta formar profissionais que considerem a acessibilidade como parte integrante da criação audiovisual, e não apenas como um recurso suplementar adicionado ao final do processo.
Coordenado pela professora Liliane Leroux, o curso foi idealizado ao longo de oito anos. Segundo Leroux, a licenciatura busca preencher uma lacuna na formação de docentes em uma área em que o exercício profissional não exige diploma. “Isso inclui entender como se realiza uma obra audiovisual quando não se tem visão ou audição, por exemplo, e também em como se experiencia uma sala de cinema a partir de diferentes corpos e sensibilidades.”, afirma.
Liliane também destaca o papel das universidades públicas na promoção de um cenário mais inclusivo. “Em um país tão desigual como o nosso, a universidade precisa ser espaço de transformação e de escuta ativa das demandas sociais”, conta a professora.
Da necessidade, surgem iniciativas para ampliar a inclusão
Pensando em criar espaços de protagonismo para a comunidade surda, o diretor Ricardo Cioni Garcia lançou, em 2022, o projeto Surdos Fazem Cinema, que em 2025 chega à sua terceira edição.
A iniciativa nasceu após a produção do curta-metragem “Amei Te Ver”, que contou com personagens interpretados por um ator surdo e uma atriz cega. Inspirado por essa experiência, Ricardo identificou a importância de oferecer oportunidades para que pessoas surdas possam se expressar artisticamente no universo audiovisual. “A proposta é incluir a comunidade surda tanto na frente quanto atrás das câmeras para que eles realizem manifestações artísticas que só eles podem trazer porque são específicas da vivência deles no mundo.”, afirma o diretor e idealizador do projeto.

Com apoio de um edital da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, o projeto oferece capacitação gratuita para pessoas surdas em todas as etapas da produção cinematográfica. Na primeira edição, em 2022, o projeto promoveu a “1ª Mostra Surdos Fazem Cinema”, apresentando três curtas-metragens produzidos por estudantes do 7º e 8º ano do Centro Educacional Unificado São Rafael, em São Paulo. “Muitas escolas e até o MAM (Museu de Arte Moderna) ficaram sabendo do projeto e se interessaram em exibir, muito disso devido à repercussão nas redes sociais”, relembra o diretor.
Segundo Ricardo, o acolhimento das instituições tem sido positivo: “Há uma abertura interessante para essa pauta, as instituições costumam ser bem parceiras nesse processo. Para o futuro, o que realmente ajudaria o projeto é ter mais apoio em salas de exibição e a continuidade das leis de incentivo.”
O projeto “Mãos À Obra”, idealizado por Bella Nogueira e realizado pela Nogueira Produções, também tem como objetivo fomentar a inclusão da comunidade surda no meio cultural. A proposta é promover experiências culturais no audiovisual com foco no público surdo brasileiro – estimado em mais de 10 milhões de pessoas, cerca de 5% da população do país.
Para Bella, a luta da comunidade surda não deve ser uma luta exclusiva, e que pessoas ouvintes também devem exercer seu papel. “Não precisamos ser negros para não tolerar o racismo. Não precisamos ser LGBTQIAPN+ para lutarmos contra a homofobia. Da mesma forma, não precisamos ser surdos para entender que não é justo que os ouvintes possam acessar o mundo como e quando quiserem, mas os surdos não”, afirma.
Viabilizado com recursos do Funcultura, da Secretaria de Cultura do Espírito Santo (Secult-ES), do Ministério da Cultura e do Governo Federal, o projeto se desdobra em diferentes ações. Uma delas é a série “Música Acessível”, que lançou sua segunda temporada em 2024. Os vídeos da série apresentam composições musicais interpretadas por profissionais de Libras que aparecem em primeiro plano, no centro da tela, e não em um canto, que costuma ser o padrão encontrado na maioria das produções audiovisuais. Os episódios produzidos são disponibilizados gratuitamente no canal do projeto no YouTube.
Além das produções audiovisuais, o projeto também reúne a comunidade surda, intérpretes de Libras e ouvintes em eventos, realizados em cinemas, salas de projeção e outros espaços similares, para promover trocas e experiências. O curso “Com acesso, com afeto!”, ministrado por Bella Nogueira e Karina Zonzini, intérprete do projeto, é voltado para artistas, produtores e gestores culturais. A formação tem como foco apresentar as especificidades do público surdo e aproximar os participantes dos profissionais tradutores e intérpretes de Libras, com o intuito de estimular a criação de obras e eventos verdadeiramente acessíveis.

Apesar dos avanços, para conseguir manter as produções ativas, o projeto depende exclusivamente de recursos advindos de leis de incentivo à cultura. Bella conta que a falta de conhecimento do público ouvinte sobre o assunto ainda é um empecilho. “Para aprovar os projetos, dependemos da empatia e do mínimo conhecimento em torno do tema por parte dos avaliadores, que, muitas vezes, ‘torcem o nariz’ ou não demonstram compreender com afinco os valores e motivações da produção.”
Campanha cobra legenda em filmes brasileiros
Em 2024, Ing Lee usou suas redes sociais para relatar as dificuldades para acessar o filme “Ainda Estou Aqui”, ganhador do Oscar de Melhor Filme Internacional. Mas, mesmo com o nível de popularidade da obra, a discussão sobre a questão da acessibilidade não ganhou amplitude. “Quando eu falo sobre isso eu tenho um feedback legal de pessoas que me conhecem ou também tem algum problema auditivo, mas nunca fura essa bolha, sabe? Nunca chega nas pessoas que tem que chegar.”
Para ampliar o debate e a conscientização sobre o assunto, Marcelo Pedrosa criou em 2004 a campanha Legenda Nacional. Com o slogan “legenda para quem não ouve, mas se emociona”, a iniciativa propõe mobilizar a população, por meio de campanhas e petições, para que os filmes nacionais (brasileiros) sejam legendados, tornando-os mais acessíveis ao público surdo. “O engajamento do público ouvinte não é só solidariedade, mas um passo necessário para construirmos um cinema verdadeiramente inclusivo.” conta Pedrosa. No Instagram, a campanha produz conteúdo colaborativo e informativo sobre os desafios e avanços do setor audiovisual com a acessibilidade.
Entre as ações, o Legenda Nacional divulga também um abaixo-assinado que visa a adoção obrigatória de sessões regulares com legendas na tela e já conta com mais de 14 mil assinaturas verificadas.

Para o consultor Manoel Negraes, incentivar as discussões sobre adoção de recursos efetivos e que abrangem todos é uma das formas encontradas por essas comunidades para conscientizar órgãos governamentais e também a população. “Devemos romper com ações assistencialistas, caritativas, que segregam e trazem comoção. Temos que vencer pela reflexão, não pela emoção.”
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