Plataformas que exibem desfiles de escolas de samba digitais são celeiro de talentos para a maior festa popular do Brasil
Pouca gente sabe, mas a magia dos desfiles das escolas de samba não se restringe às avenidas como a Marquês de Sapucaí. Há mais de 20 anos, o carnaval também acontece de modo virtual, com escolas de samba, carnavalescos, ilustradores, intérpretes, compositores e diversos profissionais do setor. A diferença é que o campeonato só pode ser visto na tela do computador e costuma acontecer no segundo semestre do ano.
As escolas virtuais também têm samba-enredo, alegorias, comissão de frente e muitas fantasias. A diferença é que tanto as pessoas de carne e osso como os tecidos e a estrutura são substituídos por imagens, que podem ser estáticas ou animadas, exibidas ao som do samba escolhido pela escola e cantado pelo intérprete. Essa modalidade, apesar de ter começado como algo incerto, ao longo dos anos se revelou um ambiente de treinamento artístico e um berço de profissionais. Hoje grandes nomes do carnaval real, inclusive campeões de agremiações tradicionais, trazem o carnaval virtual no currículo.
Como tudo começou
Miguel Paul, carioca apaixonado por carnaval desde que assistiu seu primeiro desfile na Sapucaí aos 3 anos de idade, é um dos grandes nomes por trás da criação dessa manifestação cultural virtual. Já na adolescência, Miguel participava de fóruns online sobre desfiles de escolas de samba. Foi também neste período que passou a se interessar por computação e jogos de videogame como o Football Manager, no qual é possível simular a criação de times de futebol. A união dessas duas paixões deu samba. “Eu juntei o meu perfil nerd, a minha paixão por carnaval e meu conhecimento em computação para criar um Futebol Manager do carnaval. Aí criei o carnaval virtual.”, declarou ele ao Rampas.
Miguel fundou, em 2003, a Liga Independente das Escolas de Samba Virtuais (LIESV), primeira iniciativa do gênero. Em outubro do mesmo ano, aconteceu o primeiro desfile totalmente digital. De acordo com ele, desde a criação, já houve uma grande aderência de pessoas interessadas que ficaram sabendo pelo boca a boca iniciado. Ao longo dos anos seguintes, o evento cresceu, foi ganhando mais adeptos e foi se desenvolvendo, tendo sido feito um site da liga, um regulamento oficial com as regras das escolas virtuais e dos desfiles e um aprimoramento no uso de lives para a transmissão.
Miguel Paul ficou à frente da LIESV até 2006, quando decidiu trocar o carnaval virtual pelo real. Desde então, ele é diretor da GRES Estácio de Sá, e a liga cibernética seguiu com outros dirigentes.
Com esse pontapé inicial, novas ligas surgiram, algumas formadas por membros dissidentes da LIESV. Esse é o caso da Carnaval Virtual, fundada em 2015 por um grupo de escolas que saíram da liga original. Hoje, conta ao todo com 49 escolas de samba virtuais, o que faz dela atualmente a maior liga de carnaval virtual do Brasil. Essas escolas virtuais existem em diversas cidades brasileiras, mas a maior parte delas está no Rio de Janeiro, com 11 escolas ligadas à liga.
O processo do carnaval virtual - da criação da escola à apuração do desfile
O presidente da liga Carnaval Virtual, Diego Araújo, explicou ao Rampas como funcionam todas as etapas de uma escola de samba virtual, desde sua criação, passando pela preparação, chegando ao desfile e todo o processo posterior para se definir as notas e a classificação das escolas na competição.
Para participar do desfile, é preciso criar uma escola, com nome, um pavilhão, ou seja, um símbolo para representar a escola, como uma bandeira, e um presidente. Com apenas isso já é possível ter sua escola inscrita na Carnaval Virtual. Assim como nas ligas de escolas de samba tradicionais, a folia digital tem uma estrutura dividida em grupos: Especial, Acesso 1 e Acesso 2. Uma vez inscrita a escola, ela fará parte do Grupo de Acesso 2, onde irá competir por uma vaga no Grupo de Acesso 1 e então competir para subir para o Grupo Especial.
Além do presidente, o carnavalesco e o intérprete são funções essenciais para a candidatura da agremiação na competição. O carnavalesco desenvolve o enredo, o tema que a escola irá apresentar na avenida. Além disso, desenha todas as fantasias dos componentes das alas, da comissão de frente, do mestre-sala e porta-bandeira e irá desenhar as alegorias (carros). Já o intérprete irá cantar o samba-enredo escolhido pela escola. Algumas agremiações, como a GRESV Império Iguaçuano, escola virtual de Nova Iguaçu, trazem também em suas equipes enredistas, rainha de carnaval, musa, mestre de bateria e diretora de baianas.
Assim como no carnaval real, as escolas podem encomendar o samba ou podem fazer competição entre compositores. Algumas escolas virtuais chegam a ter dez canções competindo pelo posto de samba-enredo , o que supera em número algumas escolas reais. Após a definição desta parte musical, é gravado em estúdio um álbum com os intérpretes de cada escola. Essas gravações, feitas com verba própria de cada escola, vão para as plataformas digitais e podem ser ouvidas por todas as pessoas.
Os desfiles oficiais ocorrem em lives no youtube. O Grupo de Acesso 2 é o primeiro a entrar na avenida virtual , seguido do Acesso 1 e do Especial. Cada grupo tem o seu dia para desfilar. O Regulamento Oficial da Liga determina o tempo que cada escola dispõe para se apresentar. No Grupo Especial, por exemplo, é entre 25 e 30 minutos, sofrendo penalidade caso encerre antes ou depois do determinado. Isso faz com que as transmissões cheguem a ter mais de 8 horas, pela quantidade de escolas. O evento conta com narradores e comentaristas que participam da transmissão voluntariamente falando com o público sobre os desfiles ao vivo.
Apesar de o desfile em si se tratar de um vídeo em que vão passando as alas e as alegorias desenhadas ao som do samba, hoje em dia é comum que as escolas tragam animações dos componentes se movendo, da comissão de frente dançando e do mestre-sala e porta-bandeira girando.
Após todos os desfiles, há a apuração feita pelos jurados que irão dar as notas em cada quesito. No carnaval virtual, existem cinco quesitos que serão avaliados: enredo, fantasias, alegorias, conjunto e samba. Ao todo, são 70 voluntários , entre aderecistas, compositores e outros profissionais ligados ao carnaval que se disponibilizam para esse trabalho a cada ano. Definidas as notas e a classificação das escolas, as quatro últimas colocadas são rebaixadas para os grupos imediatamente inferiores. Já as quatro campeãs sobem para o grupo acima. Dessa forma, de acordo com o presidente Diego, há uma rotatividade maior entre as escolas, o que impede qualquer tipo de acomodação e promove a competição para se manter ou subir de grupo.
Todos os cargos e funções dentro da liga, como presidente e diretor administrativo, são voluntários. Gastos eventuais, como hospedagem e o domínio do site, são cobertos pela própria equipe ou adquiridos através de doações. Algumas parcerias com portais sobre carnaval e outras ligas virtuais ocorrem por meio de permuta de serviços de divulgação.
Nascido no Rio de Janeiro, Araújo trabalha há anos no carnaval como enredista e ressalta que a liga não tem fins lucrativos e que a folia na web é movida principalmente pelo lúdico da arte do carnaval. “A gente bota na tela o sonho de muita gente”, declara. Além disso, o carnaval virtual funciona também como preparação e uma vitrine para novos profissionais mostrarem o seu trabalho. Esse caráter formador foi o que ao longo dos anos fez com que a prática deixasse de ser vista como uma simples brincadeira para ser encarada com mais credibilidade, inclusive pelos profissionais do carnaval do mundo real.
Carnaval virtual: um celeiro de bambas
O Rampas conversou com quatro artistas com experiência como carnavalescos de escolas digitais para compreender as suas variadas experiências com o carnaval virtual e como eles enxergam esse processo com relação ao carnaval real.
Fagner Pessoa, 43 anos, nascido e criado em Niterói, é atualmente carnavalesco da GRESV Sociedade da Águia Real. Ele conta que seu interesse pelo carnaval vem de família, sendo uma cultura que ele aprendeu a valorizar em casa. Esse interesse o levou, em 1997, a trabalhar em barracões de algumas escolas como aderecista e decorador de alegorias, até que em 2012, teve que abandonar esse trabalho para focar em sua carreira empresarial. Esse desligamento foi o que o levou para o carnaval virtual. “Comecei no carnaval real e fui para o virtual. Pelo estresse do trabalho, eu precisava fazer alguma coisa de arte.” Assim, em 2019, ele assinou o primeiro desfile virtual. Em 2022, foi campeão no grupo especial com o enredo “Oyá Messã Orum - A Mãe do Entardecer”.
Desenhos de Fagner Pessoa para o carnaval virtual. Ilustrações: acervo pessoal
Márcio Ronald, 27 anos, criado em São de Meriti, começou a gostar de carnaval assistindo aos desfiles pela televisão. Com a escassez de vagas para novos profissionais em barracões, ele entrou no carnaval de maquete, uma outra modalidade e, posteriormente, entrou para o carnaval virtual. “Como eu queria muito trabalhar com carnaval real, não via isso como um hobby, embora fosse. Eu via como um objetivo de vida.” Seu primeiro desfile virtual foi em 2019 com um enredo sobre o Mussum, mas foi a partir do segundo que Márcio começou a fazer da atividade seu portfólio e recebeu um convite para trabalhar como desenhista no carnaval real, onde está até hoje. Para ver o desfile de Márcio Ronald na GRESV União da Gávea de 2022, clique aqui.
Desenhos de Márcio Ronald para o carnaval virtual. Ilustrações: acervo pessoal
Jorge Machado, de 43 anos, nascido em Caxias, se apaixonou pelo carnaval ainda criança assistindo ao campeonato da GRES Imperatriz Leopoldinense na televisão, em 1989. Com o tempo foi se aproximando mais do universo. Em 2018, depois de ter feito uma pós-graduação sobre carnaval, conheceu através de uma amiga a existência do carnaval virtual. Demonstrando interesse e recebendo o convite de uma escola que precisava de carnavalesco, Jorge iniciou a jornada como carnavalesco da GRESV Pau no Burro. “Mergulhei no carnaval virtual para ver se eu sou visto, se me enxergam. Eu tenho o carnaval virtual hoje como uma vitrine do trabalho que eu quero exercer futuramente. Eu quero chegar no carnaval real”, disse o carnavalesco, que revelou que a modalidade o levou a fazer figurinos para teatro e até a trabalhar em um desfile de escolas de samba em Florianópolis. Seu último enredo na GRESV Pau no Burro se chamou “Convenção das Bruxas” e pode ser visto completo clicando aqui.
Desenhos do carnavalesco Jorge Machado para o desfile da GRESV Pau no Burro de 2022. Ilustrações: Reprodução/ Site Carnaval Virtual
Por fim, Marcus Ferreira, de 40 anos, atual carnavalesco da União da Ilha, já era adepto do carnaval virtual desde a criação da modalidade. Participou como carnavalesco do primeiro desfile de todos, em 2003, a convite do fundador da LIESV, Miguel Paul e conquistou o primeiro título da história do carnaval virtual. Esse interesse no universo carnavalesco vem de berço. “Sempre fui incentivado a olhar para a cultura popular e o Carnaval estava inserido nisso por eu ser carioca.” Ao todo, participou de três desfiles virtuais, até que em 2009 assinou seu primeiro desfile para uma escola real, que naquele ano subiu para o grupo especial. Depois disso, foi carnavalesco de diversas escolas, como Estácio, Rocinha e Império Serrano. Até que em 2020, foi convidado para assinar o desfile da GRES Unidos do Viradouro. Esse desfile, feito em parceria com o carnavalesco Tarcísio Zanon, ganhou o campeonato na Sapucaí daquele ano. Sendo campeão dos desfiles do Rio de Janeiro, Marcus afirma que o carnaval virtual funciona como um ambiente de treinamento e que começou a desenvolver sua identidade artística nesses primeiros desfiles na LIESV.
O enredo que saiu das telas e foi para a avenida
Embora muitos profissionais tenham migrado do carnaval virtual para o real ao longo dos anos, há poucos casos de enredos que fizeram o mesmo caminho . Um dos mais lembrados, tendo sido a primeira vez que isso aconteceu, foi o desfile de 2018 da São Clemente, em que o carnavalesco Jorge Silveira levou para a Sapucaí o enredo “Academicamente Popular”. Esse enredo, que faz uma homenagem à Escola de Belas Artes da UFRJ, já havia sido feito para a escola virtual GRESV Mocidade Imperiana pelo próprio Jorge, em 2012, quando ele ainda era carnavalesco virtual.
À esquerda, a logo do enredo de 2012 da escola virtual Mocidade Imperiana e à direita a logo do mesmo enredo, reeditado em 2018 na São Clemente. Ilustrações: Reprodução / Blog Jorge Luiz Silveira
“Quando a São Clemente, em 2017, me convidou para ser seu carnavalesco, o presidente propôs que eu fizesse aquele enredo que ele havia visto no carnaval virtual. Que eu transformasse aquele conteúdo em um enredo para o desfile da São Clemente. Meu desafio foi pegar aquele conteúdo para transformá-lo em um desfile potente para o grupo especial do Rio de Janeiro”, declarou o carnavalesco ao Rampas.
À esquerda, o carro abre-alas do desfile virtual de 2012 e à direita o projeto de abre-alas de 2018. Ilustrações: Reprodução / Blog Jorge Luiz Silveira.
Parabéns pela excelente matéria. Valorizar artista e a cultura da arte é uma forma de expandir sabedoria e conhecimento conjunto. Obrigado e mais uma vez, parabéns pela iniciativa, espaço e inteligência .. ..