Ascensão das apostas online impulsiona epidemia de dependência em jogos, afetando a saúde financeira e mental de milhões de brasileiros
“Depois de perder 2 mil reais em um único dia de aposta, eu não tinha mais o que fazer da minha vida. Eu não queria mais comer, eu não queria fazer mais nada. Eu fiquei pensando por que eu fiz aquilo e se teria como reverter de alguma forma”. Assim, L., jovem de 19 anos, desempregado, resume sua relação com o mundo das apostas - que já dura quatro anos e que lhe causou uma forte depressão.
Para L., a maior dificuldade foi parar de apostar não quando ganhava, mas quando perdia. Ele queria apostar novamente, para recuperar o prejuízo. Virou uma compulsão. “Geralmente, quando eu aposto e perco um dinheiro, eu sempre quero colocar mais, geralmente o dobro, para poder recuperar o que eu perdi. Eu acho que todos os apostadores que estão no meu nível, pensam desse jeito. E aí, quando chega num limite, onde eu não tenho mais dinheiro, eu começo a buscar outras formas de conseguir esse dinheiro, pegando empréstimo no cartão, no banco ou até mesmo pegando dinheiro dos meus familiares”, conta o rapaz, que ainda não buscou apoio profissional para lidar com sua compulsão.
A promessa de ganhos fáceis, combinada com a acessibilidade das plataformas de apostas, virou uma armadilha para gente que, como L., transformou as apostas em um círculo vicioso de comportamento compulsivo. O que começa como entretenimento evolui rapidamente para um quadro de compulsão, acarretando graves consequências financeiras e psicológicas.
Irritabilidade, ansiedade excessiva, isolamento social e comprometimento da rotina são alguns dos sinais que indicam um caso mais grave de compulsão. Nesse transtorno, o indivíduo se torna dependente do jogo, demonstrando irritação e angústia quando não pode participar da atividade. É uma dependência semelhante à provocada por álcool ou drogas, pois ativa um sistema de recompensa do cérebro, o que contribui para a dificuldade em controlar os impulsos.
Não há números exatos sobre dependência de brasileiros em jogos, mas os dados existentes mostram que o problema cresce. Segundo estudos do Departamento de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP), a estimativa para esse tipo de problema é que ele atinja até 1% da população, o que, no Brasil, daria 2 milhões de brasileiros dependentes de jogos de azar. Pesquisa do Datafolha realizada em dezembro de 2023 mostra que 15% dos entrevistados fazem ou já fizeram apostas on line. O fenômeno é maior entre jovens e homens - na faixa etária de 16 a 24 anos, por exemplo, 30% dos entrevistados já fizeram jogos on line. O Datafolha fez 2.004 entrevistas presenciais com brasileiros de mais de 16 anos, em 135 municípios brasileiros de todas as regiões brasileiras.
Desde 1980, a Organização Mundial da Saúde já reconhece a dependência em jogos como uma patologia, classificada como “transtorno de jogo". Atualmente, estima-se que aproximadamente 2,3% da população brasileira seja afetada por esse transtorno, também conhecido como ludopatia. O ciclo de dependência se manifesta quando um jogador casual começa a apostar para recuperar perdas, investindo cada vez mais dinheiro.
O sistema de recompensa cerebral é a região responsável pelas vontades e pela tomada de decisões. Esse sistema é composto pelo córtex pré-frontal, pelo núcleo accumbens e pela área tegmentar, que desempenham papéis fundamentais nas sensações de prazer e satisfação. A ativação desse sistema ocorre em resposta a estímulos ambientais. Assim, quando há a perspectiva de uma recompensa, os níveis de dopamina aumentam. Entretanto, quando um indivíduo recebe um incentivo excessivo, ocorre um desequilíbrio no sistema, levando-o a buscar continuamente esse estímulo, mesmo diante de consequências negativas.
Em determinado momento, o indivíduo pode começar a apostar não apenas dinheiro, mas também bens de valor, o que pode resultar em conflitos familiares, especialmente ao utilizar posses de terceiros ou ao gerar graves problemas financeiros para o lar.
As consequências psicológicas da dependência em jogos de azar também são alarmantes. Indivíduos que desenvolvem essa condição tendem a criar hábitos nocivos, resultando em perda de memória, dificuldade de concentração, problemas de visão e dores musculares. No pior dos casos, podem desenvolver transtornos como ansiedade e depressão.
Uma pesquisa realizada pelo Banco Central (BC) revelou que os brasileiros movimentam até R$ 21 bilhões por mês em apostas online, exclusivamente por meio do sistema Pix. Segundo o mesmo estudo, em agosto de 2024, cerca de 5 milhões de beneficiários do Bolsa Família destinaram R$ 3 bilhões a casas de apostas, com uma mediana de R$ 100 por pessoa. Esse dado gerou preocupações no governo, acelerando a implementação de um bloqueio que proíbe o uso do cartão do Bolsa Família em apostas esportivas. A medida foi anunciada pelo ministro do Desenvolvimento, Assistência Social e Combate à Fome, Wellington Dias, após uma reunião com o ministro da Fazenda, Fernando Haddad. A iniciativa visa garantir que os recursos do programa sejam utilizados exclusivamente para atender às necessidades básicas das famílias.
Além disso, em agosto de 2023, o deputado federal Ricardo Ayres, do Republicanos, propôs o Projeto de Lei nº 3915/2023, que visa proibir a divulgação, promoção ou endosso de empresas de apostas, cassinos e jogos de azar por influenciadores digitais e artistas. O projeto foi aprovado em dezembro de 2023 pela Comissão de Comunicação e aguarda análise das comissões de Finanças e Tributação e de Constituição e Justiça da Câmara, antes de seguir para votação no Plenário.
“Para discernir o jogador casual de uma pessoa com problema de compulsão, a linha divisória é justamente o quanto isso prejudica a vida dela. Se começa a prejudicar e a pessoa não consegue parar, é dependência. Se a pessoa consegue jogar, perdeu, não conseguiu e consegue parar, dar um freio, esperar e voltar a jogar em outro momento, ainda é um jogador casual. O problema é quando começa a compulsão, a pessoa não consegue se controlar e isso vai destruindo a vida dela”, afirmou ao Rampas o psiquiatra Maurício Junqueira, que tem atendido em seu consultório pacientes que desenvolveram a dependência em jogos.
O médico afirma ainda, que a partir do momento em que o jogo deixa de ser algo recreativo, as consequências são avassaladoras. “Destruição da vida pessoal e profissional, incapacidade de dar conta da própria rotina, endividamento crescente, isso tudo aumenta o desespero, aumenta a ansiedade e aumenta a compulsão por jogo na expectativa de que vai ganhar alguma coisa. É uma bola de neve que cresce muito rápido e é muito destrutiva.”
O tratamento para o transtorno de jogo é semelhante ao de outras dependências, utilizando a psicoterapia e, em alguns casos, medicamentos. Em casos mais graves, a terapia cognitivo-comportamental e o auxílio de grupos de apoio costumam ser ferramentas valiosas no processo de recuperação.
É importante ressaltar que o transtorno não é uma condição irreversível. Aqueles que buscam ajuda podem recorrer a psicólogos, grupos de apoio ou profissionais da saúde que oferecem suporte especializado no tratamento dessa condição.
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