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De patas dadas com a saúde: cães se transformam em terapeutas para ajudar pacientes

  • Foto do escritor: Rampas
    Rampas
  • 17 de set.
  • 7 min de leitura

Terapia Assistida por Animais une ciência e afeto para reinventar práticas de cuidado no Hospital Universitário da Uerj


Por Mariana Chermaut e Thaísa de Souza


Steve posa com funcionária do hospital e diretor do Centro Biomédico do Hupe, Prof. Mario Fritsch. - Foto: TEAcolhe
Steve posa com funcionária do hospital e diretor do Centro Biomédico do Hupe, Prof. Mario Fritsch. - Foto: TEAcolhe

Dois terapeutas se acomodam confortavelmente na portaria do Hospital Universitário Pedro Ernesto (Hupe), após o horário de almoço, enquanto aguardam sua próxima consulta. Eles são Pipa, uma golden retriever já veterana, e Steve, um buldogue francês em sua segunda visita. Logo depois chega Johnny Bravo, um lulu-da-pomerânia e o mais novo integrante da equipe. O “grupinho animal” faz parte do projeto TEAcolhe, projeto idealizado por Alexandre Bello, de 61 anos, professor associado da Faculdade de Ciências Médicas da Uerj. A iniciativa busca melhorar o bem-estar emocional e físico dos pacientes do Hupe por meio da interação com cães treinados.


Naquela tarde de 25 de junho, a visita começou por volta das 14h e duraria até as 17h — com um pequeno e compreensível atraso, especialmente considerando a estreia de Johnny Bravo, que chegou sendo guiado por seu tutor e adestrador, Henrique Silva. “Que gracinha, meu Deus!”, exclamou alguém assim que os três cãezinhos entraram. Outra pessoa brincou: “Já fiz minha ‘cãoterapia’ de hoje”. Pipa é conhecida entre os corredores do hospital e querida por muitos dos pequenos pacientes. Steve, apesar de mais novo no projeto, já conquistou muitos corações — inclusive na psiquiatria, onde a equipe não permite filmagens, gravações nem entrevistas. Lá, um jovem paciente se encantou por ele.


A primeira parada dos cães foi na ala infantil. Em meio a um ambiente hospitalar normalmente marcado por dor e tensão, os rostos das crianças se transformavam ao verem os cãezinhos. Sophia, de apenas dois anos e meio, chorava e chamava por Steve. Shangella, de um ano e meio, fez carinho tanto em Pipa quanto em Steve. Bello contou que um dos casos que mais emocionou, tanto a equipe do TEAcolhe quanto os enfermeiros, foi o de Bryan: uma criança de dois anos e oito meses que nunca havia deixado o hospital desde que nasceu. Bryan vive com uma grave deformidade intestinal e depende do uso de sonda. Ele formou um laço com outra integrante do projeto, a golden retriever Lua. O vínculo foi essencial para sua recuperação.


Steve e Johnny Bravo interagem com pacientes da ala infantil e da ala adolescente, respectivamente (Fotos: TEAcolhe)
Steve e Johnny Bravo interagem com pacientes da ala infantil e da ala adolescente, respectivamente (Fotos: TEAcolhe)

Em seguida, os cães passaram pela ala dos adolescentes. O clima ali era diferente: mais reservado, com privacidade respeitada. Nem todos os leitos puderam ser visitados. Ainda assim, houve momentos tocantes, como o carinho de Marlon, de 14 anos, internado desde o dia 4 de junho. Ao ver Steve, Marlon imediatamente se iluminou. “Steve, vamos lá no Igor? O Igor pediu pra se despedir”, disse uma das enfermeiras. Muitos dos adolescentes já conheciam os cachorros e pediam ativamente por eles. Manu, uma pré-adolescente, tem medo de cachorros — exceto de Pipa, sua amiga. Com apoio de uma técnica de enfermagem, Manu criou coragem e acariciou Johnny, estreitando um novo laço.


Na psiquiatria, a visita aconteceu de forma mais contida. As alas têm estrutura de pequenas casas, com suítes modestas. A presença dos cães ali foi breve, mas impactante. Segundo os organizadores, os animais causam efeito calmante até mesmo em pacientes em crise e, claro, tudo é feito respeitando todos os protocolos de segurança e privacidade.


Quem trabalha no hospital também é contagiado pela onda de alegria e amor associada aos animais. Isadora Vanzeler, enfermeira, contou que estava no Hupe em uma tarde comum de trabalho quando conheceu o TEAcolhe. “Era ao mesmo tempo lindo e improvável”, disse. No dia, estavam Frida — uma cadela de raça indefinida — e mais uma gatinha. Quando elas passaram pelo posto de enfermagem, a equipe não conseguiu resistir. “Fizemos carinhos, seguramos, trocamos mais do que olhares… Foi troca de energia! Deu para notar que depois da visita, tudo ficou mais leve.” Depois disso, passaram a aguardar o retorno dos bichinhos toda semana. “Cheguei a levar minha própria filha uma vez, autista nível 1, e esperamos juntas a visita. Ela amou, pela primeira vez tocou e abraçou um cachorro. Foi maravilhoso!”, lembrou.


A experiência também é transformadora para os tutores:  “É uma coisa que muda o meu dia, muda a minha vida. Vem me trazendo tanta alegria, tanta emoção, distribuir amor e ver a Pipa ali, mudando o astral do lugar”, afirma Daniela Canto, tutora de Pipa, que está há um ano no projeto.


Além dos integrantes do TEAcolhe, a visita contou com a presença de estudantes e voluntários. Entre eles, o grupo Ação Cosplay, que leva alegria aos hospitais com fantasias e personagens. Um dos membros, Licinio Froes — fantasiado de Batman —, de 62 anos, contou que já esteve internado: “Você ficar num hospital e olhar para o lado, só ter aparelho, médico, remédio, não ter uma televisão… Você fica sem contato com as pessoas. Quando chega alguém com uma roupa dessa, você começa a se divertir, dançar, conversar com pessoas que dizem ‘daqui a pouco você está saindo daqui, tenha fé. (...) Peça aquilo que você acredita que te tire o mais rápido daqui. Porque isso é uma fase ruim, mas ela é passageira. Se você acredita em Deus ou em uma energia maior, essa energia, ela existe e nós fazemos parte dela. E se você tiver na sua cabeça a positividade de que vai sair dali e melhorar, e tiver fé em alguma coisa, você sai.”


Alexandre Bello, coordenador do projeto TEAcolhe, diz que a humanização no ambiente hospitalar faz parte dos principais motivos que tornam a prática tão importante: “É um ambiente tido, geralmente, como muito frio, desumano, muito associado ao sofrimento e à dor. Isso quebra uma série dessas barreiras. O vínculo que se estabelece, a interação homem-animal, é muito mais rápido e efetivo do que uma interação homem-homem. A mudança comportamental que eles estimulam, a nível de afeto, a nível de resiliência, até sensação dolorosa, entre outras, melhora a pressão arterial.”


A intervenção com animais também pode trazer diversas vantagens para os seres humanos, inclusive para a saúde física. Segundo estudos do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) e do Instituto Nacional de Saúde (NIH), dos Estados Unidos, o benefício da interação homem-animal pode contribuir para a prevenção de doenças cardiovasculares, atuando na redução da pressão sanguínea, do colesterol e dos níveis de triglicérides — um tipo de gordura presente no organismo e que, quando há grande acúmulo, pode aumentar o risco de desenvolver uma doença cardíaca e outros problemas de saúde.


É importante ressaltar que, apesar dos cães terapeutas auxiliarem no aspecto físico e mental, eles se diferem do cão de assistência e do cão de suporte emocional. Os cães de assistência são treinados para realizar tarefas específicas com o intuito de ajudar pessoas com deficiências físicas ou limitações funcionais, por exemplo, os cães-guias. Já os de suporte emocional, embora também tenham a finalidade de proporcionar conforto, alívio, apoio e segurança, são mais direcionados para indivíduos com problemas de saúde mental, como ansiedade, depressão e transtorno de estresse pós-traumático. Ambos costumam atuar com foco em um tutor específico. Os cães de terapia assistida, como é o caso dos mencionados nesta reportagem, são voltados e treinados para interagir com indivíduos ou grupos, sob supervisão. Seu objetivo é melhorar o bem-estar emocional, mental e físico das pessoas, atuando em diversos ambientes.


Paciente adolescente abraça Johnny Bravo (Foto: TeAcolhe)
Paciente adolescente abraça Johnny Bravo (Foto: TeAcolhe)

Os chamados serviços assistidos por animais têm ganhado espaço em hospitais, escolas e instituições de todo o país. No Rio, um desses serviços é o Programa Alice Terapia Animal Educacional (Patae), uma academia especializada em formar duplas humano-cão para atuar em intervenções com foco em saúde, educação e inclusão. “A base do nosso projeto é educação, amor e respeito — tanto aos humanos quanto aos animais”, explica Juliana Amorim, que tem 44 anos e é responsável pela parte comercial do Patae. Fundada em 2022 pela especialista em intervenção educacional assistida por cães Emi Parente,  a instituição reúne mais de 140 voluntários certificados e realiza cerca de 3 mil atendimentos por ano, em locais como o INCA, a Casa Ronald McDonald e o Hospital da Aeronáutica.


As visitas buscam humanizar o ambiente hospitalar e reforçar o reconhecimento dos animais como seres capazes de sentir. O bem-estar animal também está em jogo: “No programa Alice são [utilizados] apenas cães, porque as intervenções com animais no Brasil ainda são algo muito novo. Existe pouco protocolo, e a maioria das pessoas não são certificadas. Não é somente [sobre] bem-estar animal, é proteção animal de leis contra maus-tratos”, completa Emi. Para garantir isso, a academia desenvolveu um modelo próprio de formação, com base em protocolos internacionais e apoio de instituições como a Universidade de Oxford e a Comissão de Direito Animal da ABA (Associação Brasileira dos Advogados).


Como surgiram os projetos?


O TEAcolhe teve origem quando o filho autista de Alexandre Bello estava sendo atendido na Apae Tijuca — Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais — e, em um momento de espera durante as terapias, os outros pais  perguntaram se eles frequentavam a terapia com pôneis nos jardins do Hospital Federal da Lagoa. “No dia seguinte, já estava em contato com eles e rapidamente estabeleci um vínculo. Fiz o aprendizado com pôneis lá”, disse Alexandre.


Foi esse aprendizado que o motivou a desenvolver o projeto na Uerj. Porém, não tinha como usar cavalos. “Providencialmente, nesse momento, a Apae começou, ou recomeçou, um trabalho com cães da Guarda Municipal do Rio de Janeiro. Acompanhei esse trabalho e, inclusive, o veterinário de lá se tornou amigo do projeto, também se inseriu nele, e a própria Guarda Municipal passou a trazer os cães para nós realizarmos oficinas no campus da Uerj Maracanã. A partir daí, foi crescendo um projeto junto com a Guarda Municipal”, contou Alexandre.


Já o Patae surgiu na pandemia, quando a idealizadora do projeto, Emi Parente, teve sua carreira profissional no mundo de negócios abalada. “Falei: agora acho que está na hora de criar algo meu, mas com propósito. Eu já estava havia muito tempo sem os meus cachorros. Eu sempre tive cachorro a vida inteira e eles faleceram de idade. E depois eu não peguei mais porque eu viajava muito. E aí eu falei ‘está na hora de eu ter meus focinhos de volta.’ Eu não conseguia mais ficar longe”, conta Emi. Foi nessa época que começou a pensar nas intervenções com cães na área educacional.


“Meu filho estudava numa escola bilíngue, e eu via essa dificuldade de crianças com necessidades especiais de se expressar, de se comunicar, de interagir. Então eu falei: às vezes a gente fazendo essa ponte consegue um maior resultado”, explicou. A partir daí, ela voltou a estudar e a trabalhar nisso com uma forma de modelo de negócio. “Então hoje eu validei essa metodologia e a trouxe para o Brasil. (...) Hoje, a gente é o maior programa de intervenção animal com cães no Brasil”. Apesar da origem voltada para o meio educacional, atualmente o Patae também realiza visitas em hospitais e se tornou uma academia onde as pessoas interessadas podem buscar certificação na área de serviços assistidos por animais.




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