Iniciativas buscam qualificar agentes públicos e garantir atendimento especializado a vítimas de intolerância religiosa
Na manhã de 13 de julho de 2024, Mãe Flávia d’Oxum passava pela entrada de seu terreiro de umbanda, o Centro Espírita Axé das Almas, em Maricá. Ao se aproximar, porém, percebeu que o espaço tinha sido invadido. Quando entrou, encontrou oferendas estilhaçadas no chão, imagens destruídas e parte da estrutura da casa quebrada. Depois, viu que uma das salas tinha sido incendiada. Os invasores jogaram gasolina nos atabaques e em outras imagens sagradas e atearam fogo, que destruiu tudo que estava ali, além de ter atingido a fiação elétrica. Com a casa destruída, as giras (rituais em que, segundo a crença, os espíritos se manifestam) tiveram que ficar paradas por mais de 4 meses. O prejuízo financeiro para repor as imagens e reconstruir o local chega a quase 20 mil reais.
Mãe Flávia precisou realizar rifas e vaquinhas online para tentar conseguir parte desse dinheiro - que até o momento desta reportagem, não foi arrecadado. Mesmo com todo o dano material, em entrevista ao Rampas, Mãe Flávia afirma que o dano psicológico é muito maior do que qualquer coisa.
À esquerda, o terreiro incendiado e à direita, várias imagens sagradas destruídas. Foto: acervo pessoal
Enquanto isso, na cidade do Rio, os membros do terreiro de umbanda Templo Caminho da Paz, lidaram, ao longo de 2024, com inúmeros ataques enquanto realizavam suas atividades religiosas na filial Casa do Caboclo Sete Flechas, na Tijuca, Zona Norte do Rio. Das janelas dos prédios ao redor, pessoas atiravam frutas congeladas no espaço da gira. De acordo com a dirigente da casa, Mãe Cristina Ferreira, isso não aconteceu durante meses. As frutas, por serem praticamente pedras de gelo, machucavam as pessoas. O Templo Caminho da Paz já passou por outros bairros até chegar ao atual, em setembro de 2023. Apesar dos primeiros ataques terem sido ainda no segundo semestre do ano passado, o período de 2024 foi marcado pela intensidade e recorrência deles.
Os dois casos de violência foram recebidos com surpresa pelas representantes das casas. Mãe Flávia afirmou que em dez anos de existência do terreiro em Maricá, nunca havia passado por nada parecido antes. Mãe Cristina, da mesma forma, declarou que em 12 anos de funcionamento da filial, nunca havia sofrido nenhum ataque.
Esses episódios não são casos isolados. De acordo com o Painel de Dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, as violações contra a liberdade de religião ou crença têm aumentado a cada ano no estado do Rio. De janeiro a outubro deste ano, foram 664 denúncias, um aumento de 97% com relação ao mesmo período do ano anterior.
Os números mostram um padrão no que diz respeito às vítimas. Em 2024, nos casos cuja religião da vítima é identificada, mais de 50% das violações são contra religiões de matrizes africanas, como umbanda e candomblé. É uma taxa alta diante da representação de praticantes de religiões de matriz africana na população brasileira: apenas 2% da população brasileira se diz praticante desses cultos, mostra pesquisa Datafolha feita em dezembro de 2019.
O inspetor Paulo Aieta, que está na polícia há 22 anos e hoje trabalha na Decradi (Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância), afirma que, em sua experiência, a maioria das vítimas desse tipo de crime é indiscutivelmente de praticantes de religiões de matriz africana. Ele acredita que o aumento nas notificações pode tanto estar ligado a um crescimento da intolerância, principalmente pela maior polarização política dos últimos anos, quanto ao fato de as vítimas estarem denunciando mais e tendo mais acesso aos seus direitos.
Criação de delegacia especializada é grande avanço, mas não resolve tudo
Tanto Flávia quanto Cristina procuraram a polícia após os ataques. Mãe Cristina foi até a delegacia local mais próxima, em Vila Isabel. Porém, no dia seguinte seguiu para a Decradi e transferiu o registro para lá, por acreditar que uma delegacia especializada estaria mais preparada para investigar esse tipo específico de crime. Já Mãe Flávia, por desconhecer a existência de atendimento especializado, fez o registro policial em uma delegacia local de Maricá.
À esquerda, imagem no interior da Decradi e à direita a placa de inauguração da delegacia. Fotos: acervo pessoal
A Decradi investiga três tipos de ocorrências: intolerância religiosa, racismo e violação contra gênero/orientação sexual. Atualmente, conta com 14 policiais que passaram por treinamentos especiais. Na questão da intolerância religiosa, por exemplo, foram levados vários sacerdotes de diferentes cultos para fazer um trabalho de qualificação com esses profissionais e garantir que eles conheçam as culturas dessas práticas para melhor atender as pessoas.
Essa iniciativa não é recente. A lei estadual 5.931/11, proposta pelo deputado Átila Nunes Filho (PSD-RJ) e que estabelecia a criação da Decradi, foi aprovada em 2011. Entretanto, ela só saiu do papel em 2018, durante a intervenção federal na segurança pública do Rio. O inspetor Aieta explica a importância dessa medida, principalmente pelo fato de as delegacias comuns, focadas em crimes como homicídios, tráfico e roubos, muitas vezes não darem a devida atenção a esses delitos, tidos como menores. Aieta afirmou que na Decradi todo registro se torna inquérito, ou seja, é aberta a investigação de toda ocorrência levada até eles. Porém, em outras delegacias, isso não acontece. Mãe Flávia afirmou que, até o dia da entrevista com o Rampas, mais de 4 meses após o ocorrido, o inquérito de seu caso ainda não havia sido aberto em Maricá.
Uma outra razão para a necessidade de um atendimento especializado é que muitas vezes o policial da delegacia comum não está preparado para lidar com esses casos. “Às vezes ele repete até o ponto de vista preconceituoso do autor do fato. A vítima é novamente vitimizada, só que dessa vez dentro da delegacia”, alerta o inspetor.
Apesar de a criação da Decradi ser um grande avanço no combate à intolerância, não é suficiente para solucionar todos os problemas que as vítimas encontram.
Em primeiro lugar, a proposta de funcionar como uma alternativa às delegacias locais não supre a demanda de todo o estado. A Decradi fica no centro da cidade do Rio de Janeiro, então para qualquer pessoa que more nos outros 91 municípios, a distância é grande. Na prática, mesmo que saibam da existência da especializada, muitas vezes essas pessoas fazem o registro nas delegacias próximas às suas casas. Além disso, a Decradi não funciona 24 horas por dia. Seu horário de funcionamento é de 9h às 18h, de segunda a sexta.
De acordo com o inspetor, o governo estadual tem dito que não há margem orçamentária para criar novas delegacias especializadas em crimes raciais. Um plano alternativo que começou a ser implementado em 2024 é a criação dos Nucradis (Núcleos de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância). Essa iniciativa consiste em selecionar alguns policiais já atuantes de delegacias da baixada fluminense e do interior do Rio e treiná-los para lidar da melhor forma com casos de intolerância religiosa, racial e contra a comunidade LGBT+. Em agosto, uma turma com 86 agentes se formou nesse treinamento. Nessa mesma direção, houve a inclusão dessas temáticas de forma mais aprofundada nas academias de polícia, para que os novos profissionais sejam já qualificados para essas situações.
O outro problema que a Decradi não soluciona é que, mesmo garantindo mais apoio às vítimas na investigação, a partir do momento em que o caso sai da delegacia e vai para a promotoria do Ministério Público, é comum que também haja empecilhos.
Após o término da investigação, a delegacia envia um relatório para o promotor de justiça indicando se houve ou não crime. Caso a conclusão seja positiva, o autor desse crime terá sido indiciado. A partir desse momento, o caso está nas mãos do promotor. Entretanto, muitas vezes, esse agente, por não ser uma pessoa preparada para identificar situações de intolerância, pode vir a arquivar o caso, mesmo contra a decisão do delegado. Mesmo que isso não aconteça e o promotor resolva fazer uma denúncia, ou seja, levar o caso para ser julgado por um juiz, esse mesmo problema também pode ocorrer. Muitas vezes, esses crimes são julgados por pessoas que não foram devidamente preparadas e arquivam o caso por não visualizarem crime ou por considerarem de menor gravidade.
O que a legislação determina
Com relação à intolerância religiosa, o advogado Luís de Jàgún explica que não existe uma lei específica para tratar desse tema. “Não existe, capitulado, intolerância religiosa. Na doutrina penalista, é o que a gente chama de norma penal em branco, que a gente não precisa dizer que aquela norma explicitamente se comporta como intolerância, sendo que os efeitos práticos dela no dia a dia são de intolerância.”, ele explica.
Existe uma base jurídica, como por exemplo, na Constituição de 88, artigo 5, inciso IV, que garante a liberdade religiosa da população. Também no Código Penal, há o artigo 208, que dispõe sobre crimes de ultraje a culto religioso, ou seja, interrupção de cerimônias religiosas. Também há o artigo 140 que trata de atos de injúria contra vários grupos, como idosos, pessoas com deficiência e também por motivos de crença.
A lei base utilizada para lidar com intolerância religiosa é a 7.716/89, também conhecida como Lei Caó, em homenagem ao advogado, jornalista e ex-deputado federal Carlos Alberto Oliveira dos Santos, que a criou. Essa lei dispõe de casos onde há injúria, ou seja, ofensas diretas a um indivíduo por motivos relacionados à raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Quando há ofensa a um grupo de pessoas baseado em algum desses motivos, é um crime mais abrangente de preconceito.
Nas situações em que há outro delito envolvido, como agressão ou dano de patrimônio, é feito o que se chama de costura de crimes: as violações cometidas são combinadas e as penas são somadas.
Preconceito contra religiões de matriz africana, para além de questão criminal, é um sintoma social, histórico e político
O professor e babalorixá Márcio de Jagun, coordenador de Diversidade Religiosa da prefeitura do Rio, afirma que a intolerância contra crenças no Brasil existe há cinco séculos, desde a chegada dos colonizadores portugueses, que impuseram uma hegemonia religiosa. Tudo que foge desse padrão estabelecido seria perseguido ou mesmo proibido.
Sobre o fato de os índices indicarem uma perseguição mais acentuada aos praticantes de cultos afro, ele afirma que de fato há uma conexão com a questão racial: “Então entender a intolerância religiosa no tocante às matrizes africanas é obviamente fazer uma conexão com a questão racial. O continente africano é uma referência negativa ao longo da história. O que vem de lá é deteriorado, é depreciado, as pessoas desalmadas, os saberes não reconhecidos, as religiões perversas.”
Jagun diz que essa intolerância pode se manifestar de diversas formas. No contexto específico do estado do Rio de Janeiro pós anos 80, o fenômeno chamado “narcopentecostalismo”, com a associação de facções criminosas a denominações evangélicas neopentecostais, se desenvolveu como uma expressão de intolerância religiosa violenta. Facções criminosas ligadas ao pentecostalismo proíbem qualquer outra religião nos locais que ocupam.
Muitas dessas formas de intolerância, como a do narcopentecostalismo, devem ser combatidas através de ações criminais. E, apesar de a segurança pública ser de responsabilidade do governo estadual, leis e iniciativas que promovam a liberdade religiosa podem ser propostas tanto pelo estado quanto pelo município.
Hoje a cidade do Rio de Janeiro tem uma Coordenadoria Executiva de Diversidade Religiosa, comandada por Jagun. Ela atua em duas vertentes: prevenção e acolhimento das vítimas. Esse setor é responsável por estabelecer núcleos de atendimento às vítimas, gerenciar estatísticas dos casos, formar gestores públicos preparados para lidar com a diversidade religiosa na cidade, etc. Eles elaboraram também a Cartilha de Combate à Intolerância Religiosa, com várias informações e instruções sobre o tema. Também foram criados a primeira Câmara de Mediação em Casos de Conflito de Intolerância Religiosa do Brasil, parceria entre a coordenadoria e a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), na Barra da Tijuca; a primeira rede intermunicipal de liberdade religiosa que congrega os 92 municípios do estado e o primeiro Conselho Municipal de Promoção da Liberdade Religiosa.
Além disso, em 2021, aconteceu no estado do Rio de Janeiro a CPI da Intolerância Religiosa, presidida pela deputada Matha Rocha (PDT-RJ), que debate o papel do estado no combate à discriminação. O relatório final, aprovado em abril do ano seguinte, estabeleceu 35 recomendações a órgãos públicos, como conscientização nas escolas. O relatório recomenda que Polícia Civil e Ministério Público incluam nas denúncias o nome dos líderes religiosos, caso haja co-participação ou mentoria deles em crimes de intolerância. O Rio também criou o Estatuto Estadual da Liberdade Religiosa, que auxilia as diretrizes de combate à intolerância e de promoção da diversidade no estado. Leis municipais e estaduais dispõem sobre programas de assistência às vítimas de intolerância religiosa.
Jagun afirma, porém, que o combate à intolerância religiosa passa pela luta política. Grupos que ocupam os postos de poder acabam defendendo a perspectiva hegemônica, o que se transforma numa barreira para aprovar uma legislação que defenda principalmente os praticantes religiosos mais perseguidos. “É muito difícil aprovar um projeto como esse, com as características contemporâneas inovadoras”, afirma, se referindo ao projeto de lei sobre o programa de assistência às vítimas. E defende que as políticas públicas de fato privilegiem quem mais precisa delas. “Na sociedade brasileira existe um desequilíbrio flagrante. Um desequilíbrio racial evidente. Reconhecer isso é entender que ações afirmativas têm que ser direcionadas para os grupos mais vulneráveis. É por isso que são afirmativas.”
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