Do dengo ao samba, exposição mostra raízes da herança bantu no cotidiano brasileiro
- Rampas
- 6 de out.
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Mostra Nossa Vida Bantu, em cartaz no MAR, retrata as muitas influências da rica cultura desse povo africano trazido ao país como escravizado
Por Gabriela Martin e Mariana Castro

Corcunda, leque, samba, marimbondo, moleque, carimbo, fubá, caçula, cochilar, quitanda, muvuca, bunda, cafuné, gingado — todas essas expressões integrantes do vocabulário brasileiro têm raízes nas línguas faladas pelos povos bantu. A herança bantu também aparece em comidas, corpos, músicas, no jeito de falar e criar vínculos. Esse legado é o tema da exposição Nossa Vida Bantu, Em cartaz no Museu de Arte do Rio (MAR). Com 50 obras de 28 artistas, a mostra sintetiza a presença desse povo no cotidiano brasileiro.
Originários da África Central e Austral, os povos bantu compartilham línguas de uma mesma família, além de práticas religiosas, arte, culinária, música e outras atividades culturais. Estima-se que, ao todo, 4 milhões de pessoas africanas escravizadas foram trazidas ao Brasil. Cerca de 75% delas eram de origem bantu, de territórios hoje situados na Angola e na República Democrática do Congo. Mesmo após a escravização desses povos, marcada pela violência e pelo apagamento, a cultura bantu resistiu.
A mostra evoca a ancestralidade bantu e convida os visitantes a mergulhar em um cenário imersivo.As paredes e o chão das salas são revestidos por uma mesma textura: fibras de coco, elemento tradicionalmente associado à cultura africana e amplamente incorporado nas expressões afro-brasileiras. Em cada parte da mostra, o visitante se vê envolto na narrativa de Nossa Vida Bantu, com trilhas sonoras que remetem a um espaço de valorização dos saberes religiosos e ancestrais, com cantos da umbanda, candomblé e ritmos como o maracatu. Sol Kelm, turismóloga argentina e visitante da mostra, disse ter pouco conhecimento sobre a cultura afro-brasileira e as obras — principalmente os documentários — lhe trouxeram muitas informações novas acerca do tema.

O desconhecimento da herança bantu acaba impedindo a a valorização e o reconhecimento da contribuição cultural desses povos. “A exposição cumpre esse papel: faz a gente refletir sobre aspectos do nosso cotidiano que têm origem bantu, que fazem parte de quem somos. Mas acredito que só conseguimos valorizar aquilo que conhecemos. É preciso estar disposto a enxergar outras perspectivas, outras culturas e reconhecer isso dentro de nós”, explica Gabriela Dias, monitora museal do MAR.
Entre os destaques da mostra está a obra da artista Aline Motta, que investiga a origem da cantiga infantil “Escravos de Jó”. A instalação conta com imagens projetadas no chão em formato circular. Ao fundo, ouve-se a cantiga de roda. A proposta da artista foi mergulhar na história da brincadeira e contar como ela carrega símbolos das estratégias de resistência utilizadas por pessoas escravizadas.Na última sala da mostra, outro destaque chama atenção dos visitantes: as telas Jogo Interno e Jogo 2, da artista Márcia Falcão. Cobrindo a parede do chão ao teto, as telas integram a série Capoeira em Paleta Alta, na qual a artista toma a capoeira como fundamento estético e político. Durante o processo criativo, Márcia se inspirou em golpes de capoeira —como a Armada, a Bênção e a Meia-lua de frente. “Os golpes de capoeira têm nomes muito imagéticos, e a partir desses nomes eu construí a composição, o movimento e o potencial do gesto nas pinturas”, contou a artista.
Márcia afirma que, como artista, reconhece a necessidade de cuidado ao abordar a cultura bantu. “Eu tento ir para essas terras de maneira respeitosa, porque, embora eu seja carioca e toda a questão da cultura bantu esteja no nosso dia a dia, muitas questões aprofundadas sobre a própria capoeira não me incluem”, reconhece.
A herança bantu está nas narrativas históricas, nos rituais preservados com reverência, e sobretudo, nas pequenas cenas do dia a dia. Márcia compartilha um exemplo íntimo que revela essa presença enraizada: “Toda noite minha filha vem e me fala: ‘mamãe, quero denguinho’”, contou. A palavra “dengo”, tão comum nas relações de afeto, tem origem bantu, assim como tantas outras que usamos sem perceber suas raízes ancestrais.
IMPORTÂNCIA E REFLEXÃO SOCIAL

Segundo o monitor museal Marcos Vinícius Firmino, Nossa Vida Bantu também une elementos culturais dos povos originários brasileiros e africanos. A mostra convida o público a acessar um campo simbólico, em que mito e existência se entrelaçam. “É um campo simbólico que trabalha as míticas das concepções de vida, morte, começo, meio e fim”, explica.
A exposição também tensiona as fronteiras entre o que se considera arte erudita e o que se rotula como cultura popular, distinções construídas historicamente por uma lógica dominante, que hierarquiza expressões culturais a partir de uma concepção europeia. “Eles separam a cultura e denominam a definição do que é arte e do que não é. Arte seria uma definição de algo que pertence à herança europeia, enquanto a cultura popular seria associada aos povos cujas concepções e dinâmicas culturais são vistas como diferentes do modelo cultural imposto. É dado um valor a cada uma das culturas, e o simbólico é menosprezado”, completa Marcos.
Para a artista Márcia, essa disputa simbólica não está apenas na curadoria ou no museu, mas atravessa toda a história da arte. Ela afirma compreender que a arte, especialmente a pintura, foi fortemente eurocentrificada em razão da forma como vem sendo divulgada. E defende, ainda, que a produção artística pode exercer um papel educativo e de restituição cultural, ao revelar saberes e histórias silenciadas por interesses políticos e econômicos.
Apresentada pelo Instituto Cultural Vale, com curadoria de Marcelo Campos e Amanda Bonan junto ao curador convidado Tiganá Santana, Nossa Vida Bantu segue em cartaz até o dia 31 de maio de 2026 como principal mostra do MAR, na Praça Mauá, no Centro do Rio de Janeiro. A compra do ingresso possibilita a visita em todas as exposições e custa R$20 a inteira e R$10 a meia, com exceção das terças-feiras, quando a entrada é gratuita.
Aqui, a exposição em vídeo:
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