Efeitos do calor extremo penalizam especialmente populações mais vulneráveis das Zonas Norte e Oeste da capital; Prefeitura articula ações de mitigação
Sábado, 19 de outubro. O relógio na parede da sala vazia marca meio-dia. O sol irradia sobre as telhas da casa enquanto a família de Anderson Salgado, 29 anos, morador do morro do Juramento, em Vicente de Carvalho, zona norte do Rio, se reúne para conversar embaixo de uma árvore que fica próxima ao portão. Em outro ponto da cidade, Rita de Cássia Reis, 59 anos, moradora do Flamengo, na Zona Sul, aproveita o dia de calor para caminhar entre as árvores do Aterro e dar um mergulho na praia.
De Vicente de Carvalho ao Flamengo, 22 km e cenários distintos diante dos extremos climáticos. Milhares de cariocas habitantes das extensas e populosas zonas Norte e Oeste vivem diante de uma estrutura urbana marcada pelo reduzido número de áreas verdes e opções de lazer.
No Juramento, onde vive a família de Anderson, os moradores sofrem nos dias mais quentes com a falta de espaços arborizados e as falhas frequentes no fornecimento de água e luz. As casas, construídas com materiais que dificultam o escoamento do ar quente, como telhas de fibrocimento (cimento misturado com fibras naturais) e sem isolamento térmico, acabam por ampliar a sensação de calor durante o dia. Em dias muito quentes, o telhado torna os cômodos das casas inabitáveis mesmo à noite, relata Anderson.
As características desse tipo de moradia não são exclusivas dos habitantes dos bairros da Zona Norte. Na Zona Oeste, Gabrielly Martins, estudante de 19 anos e moradora de Santa Cruz, também sofre com o calor por causa do telhado de fibrocimento. Segundo ela, o calor afeta diretamente sua saúde e a de seus familiares. “Na maioria das vezes eu passo mal por conta da temperatura, preciso tomar remédio e ficar em repouso. Minha mãe é hipertensa e também sofre por causa da temperatura.” Em Guaratiba, também na Zona Oeste, a sensação térmica bateu novo recorde este ano, 62,3º C, segundo medição do sistema Alerta Rio.
Marcelo de Araújo, professor do Departamento de Filosofia da Uerj e pesquisador da área de Ética e Mudanças Climáticas, afirma que a ocupação irregular de amplos territórios da cidade, como no morro do Juramento, cria uma alta densidade demográfica e áreas pouco arborizadas, tornando esses lugares mais vulneráveis frente aos impactos das mudanças climáticas. A diferença na forma como o aquecimento global afeta as populações tem sido chamada pelos especialistas de desigualdade climática. Significa dizer que dimensões de classe, territoriais, étnico-raciais e de gênero são, em geral, fatores decisivos na análise sobre aqueles que mais sofrem com o agravamento das transformações no clima.
O professor afirma que idosos, mulheres, pessoas pretas e pardas, e aquelas em situação de vulnerabilidade social são mais suscetíveis a mortes relacionadas às altas temperaturas. No caso de mulheres e idosos, questões fisiológicas acentuam os efeitos nocivos para a saúde; em relação aos demais grupos, a desigualdade social é o que mais contribui, seja por residirem em regiões com menos áreas verdes; por utilizarem transporte público mais precarizado; ou por normalmente trabalharem em áreas não cobertas. Para efeito de comparação, em um período de 18 anos, as altas temperaturas mataram quase 50 mil pessoas no Brasil. É como se toda a população de municípios como Paraty, Mangaratiba, Vassouras e Arraial do Cabo, somada, morresse devido a doenças relacionadas às ondas de calor. Esses números são de um estudo que analisa as relações entre o calor extremo e mortes entre os anos de 2000 e 2018. O trabalho, publicado este ano na revista norte-americana Plos One, foi conduzido por pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e da Universidade de Lisboa.
Dois sóis pra cada pessoa
Alana Dias, 33, moradora do bairro de Realengo, na Zona Oeste, é professora da rede pública municipal de ensino e relata como as fortes ondas de calor têm afetado o dia a dia da escola. “Não tem ar-condicionado nas salas, então já tive casos de crianças passando mal pelo calor e por serem muitas em uma sala só. Já tive que interromper aula para poder socorrer aluno passando mal por conta da temperatura alta.” No outro lado da cidade, Iasmin Sena, 24, conta o dia a dia da escola particular em que trabalha, perto da Floresta da Tijuca, na zona norte do Rio. Para ela, o calor não tem afetado de maneira tão drástica a rotina escolar. “Não tem muita modificação, salas grandes chegam a ter dois aparelhos de ar-condicionado que ficam sempre ligados, e o terreno da escola tem muitas árvores pela proximidade com a floresta. No máximo evitamos atividades ao ar livre e fazemos pausas para água. Quando está muito quente, fazemos atividades como banho de mangueira para refrescar as crianças, ida ao lago e preparo de sacolés.”
Moradores de áreas mais nobres da cidade sentem menos os efeitos do aquecimento global do que quem vive nas zonas Norte e Oeste. Aldiceia Maciel, técnica de enfermagem e moradora de Santa Cruz, percebe a diferença na temperatura entre o bairro em que mora e aqueles em que trabalha - Tijuca e Pechincha. “Quando eu passo um tempo fora de casa no meu bairro sinto muita diferença, um calor que eu nunca senti, aí vou para o trabalho, em duas áreas com muito verde, e às vezes tenho que usar casaco de tão fresco que é.” Para ela, a mudança brusca de temperatura, além de impactar na sua saúde, também explicita como a área em que vive sofre mais com os efeitos da mudança climática do que as outras. “Vira e mexe fico resfriada, e acho Santa Cruz muito quente. Costumo falar com meus amigos que parece que estou em Bangu. São dois sóis pra cada pessoa aqui.” A citação a Bangu não é em vão. O bairro da Zona Oeste foi, durante anos, o mais quente da cidade. Mas vem perdendo a competição para outro lugar muito conhecido dos cariocas.
Adaptação climática
O novo recordista do calor é Irajá, no subúrbio da Zona Norte, cujos termômetros marcaram 42 ºC no verão de 2023. Alguns motivos ajudam entender os recordes de temperatura: alta densidade populacional, a segunda maior da região Norte; falta de arborização; localização “privilegiada” em meio a maciços que dificultam a circulação de ventos; distância do litoral; e proximidade com grandes rodovias, como a Avenida Brasil e a Presidente Dutra.
Como forma de minimizar essa situação, a prefeitura anunciou algumas medidas de adaptação climática. Uma delas é a criação dos chamados corredores verdes, cujo primeiro experimento vem sendo testado justamente em Irajá desde junho de 2024. A intervenção nesses espaços visa proteger a biodiversidade local e reduzir a poluição atmosférica e sonora com a implantação de um canteiro central e a arborização das principais calçadas do bairro. Dividido em cinco fases, o projeto começou com o plantio de mudas de árvores nos dois primeiros quilômetros da Estrada da Água Grande. Segundo a secretária do Meio Ambiente e Clima, Eliana Cacique, a expansão irá incorporar outras ruas da região com vistas a mitigar as zonas de calor.
Outra medida foi a sanção parcial da Lei n.º 8.465/2024 pelo prefeito Eduardo Paes, que incorporou o conceito de cidade-esponja para a gestão das águas pluviais no Rio de Janeiro. O modelo, adotado em várias cidades do mundo, tem como objetivos reduzir o risco de inundações, promover a sustentabilidade, adaptar a cidade às mudanças climáticas e melhorar a gestão hídrica. A lei prevê a criação de pequenos jardins com vegetação que ajude a absorver e filtrar água da chuva, chamados de jardins de chuva. Seguindo esse modelo, junto a um pacote permanente de reflorestamento na cidade, está a criação de novos parques, como os recém-inaugurados Susana Naspolini, Oeste, Rita Lee, Pavuna e o Piedade, este último em fase de implantação.
Os parques (ainda) sem árvores
O parque Realengo Jornalista Susana Naspolini, inaugurado em junho, foi planejado para tornar o município uma cidade mais resiliente - termo criado pela Organização das Nações Unidas em 2010 para designar cidades capazes de resistir, absorver, se adaptar e se recuperar dos efeitos das mudanças climáticas. O parque foi inspirado no Gardens By The Bay, de Singapura, e tem 3.700 mudas de árvores espalhadas nos seus mais de 76 mil metros quadrados. Além de oferecer ao público opções de lazer e contato com a natureza, possui um reservatório com capacidade para armazenar até 290 mil litros de água da chuva, o que, espera-se, contribuirá para amenizar os efeitos das enchentes na região. Ainda assim, frequentadores criticam a falta de espaços com sombra no local, como relata Gerlane Balestero, antiga moradora de Realengo. Ela chama a atenção para o fato de que o calor em Realengo teria piorado ao longo dos últimos anos por causa de decisões governamentais. “Eles transformaram muitas áreas verdes em condomínios do Minha Casa, Minha Vida e agora a gente percebe a mudança no clima do bairro.”
Em outro ponto da Zona Oeste foi inaugurado no mês de setembro o parque Oeste, em Inhoaíba. O projeto teve apenas sua primeira fase entregue, com metade dos seus 234 mil metros quadrados, e conta com uma escada das águas, quadras poliesportivas, palco de apresentações, pista de skate e mirante. O parque inclui um lago artificial que, quando pronto, terá capacidade de armazenar 18 milhões de litros de água, contribuindo para impedir ou minimizar inundações na região. Além disso, o projeto pretende reflorestar 61,8 mil metros quadrados com espécies originais.
No entanto, assim como no parque de Realengo, os frequentadores criticam a falta de árvores no ambiente. Stephanie Martins, 37 anos, moradora do bairro, conta que apesar de o parque ser a primeira opção de lazer criada para os moradores, sua construção resultou no desmatamento de parte das árvores do bairro, um dos mais quentes da cidade. “Falta sombra no parque porque eles tiraram um bocado de árvores. Apesar dessa área antes não ter nada, tinha bem mais árvores.” Para ela, a Zona Oeste sofre principalmente pela falta de áreas verdes. “As árvores do meu bairro desapareceram com o passar do tempo. Só tem na frente da minha casa por que eu plantei assim que fui morar lá.”
Justiça social x justiça intergeracional
Apesar da prefeitura tomar medidas para conter o nível de calor na cidade, essas não devem ser as únicas providências a respeito do assunto. Para o professor Marcelo de Araújo, apesar de importantes, as medidas de mitigação voltadas para os grupos sociais mais vulneráveis não são suficientes. É preciso levar em consideração outro tipo de vulnerabilidade gerada pela mudança no clima: a desigualdade entre as gerações.
Desigualdade intergeracional refere-se às diferenças de oportunidades e resultados socioeconômicos entre diferentes gerações numa sociedade. E está diretamente ligada à vulnerabilidade climática. “As políticas que visam promover a justiça social com a adaptação climática podem muitas vezes não levar em conta as gerações futuras”, argumenta Marcelo.
Políticas de adaptação são aquelas que buscam preparar a cidade para as mudanças climáticas, ou seja, que a permitam lidar com o problema quando ele já existe. No entanto, explica Marcelo, elas não devem se desvincular de medidas de mitigação que visem a redução das emissões de gases do efeito estufa, em especial o dióxido de carbono e o metano. Sem essa redução, mesmo políticas de adaptação não conseguiriam sobreviver com a elevação da temperatura do planeta.
Para o professor, o embate entre justiça social e intergeracional vem sendo pouco discutido no campo do debate ambiental. Quando medidas de adaptação envolvem exploração de combustíveis fósseis, por exemplo, estratégia que vem sendo adotada pelo governo brasileiro, o risco para as futuras gerações pode ser muito alto. “O governo alega que o petróleo é uma fonte energética que ajudará no combate à desigualdade, porém não leva em conta a desigualdade entre a geração que vive atualmente que aproveitará os recursos e a que ainda está por vir e enfrentará as consequências da exploração dos combustíveis fósseis.”
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