Como a Ocupação Almerinda Gama, na Rua da Carioca, luta para continuar atendendo mulheres vítimas de violência e sobreviver ao projeto que transformará via tradicional do centro em Rua da Cerveja
Vítima de violência doméstica, Gidiana Ribeiro (48) foi acolhida na Ocupação Almerinda Gama no dia 9 de fevereiro de 2023. Localizada na Rua da Carioca n° 37, no coração do Centro do Rio, a Ocupação ofereceu apoio psicológico e orientação jurídica para que ela enfrentasse a violência que sofreu dentro de casa. “Não é que eu preferi vir para cá, eu precisei dessa ajuda, e aqui fiquei um ano e seis meses. Não dei nenhum real, ninguém me cobrou nada, recebi alimentação e meus filhos também. A Casa Almerinda faz o trabalho que o Estado deixa de fazer”, resume Gidiana.
Hoje uma ex-abrigada, Gidiana continua frequentando a ocupação e participando das atividades com seus filhos, mesmo após a família se mudar para Anchieta, na Zona Norte do Rio. A Casa de Referência da Mulher Almerinda Gama existe desde 8 de março de 2022 e é ligada ao Movimento de Mulheres Socialistas Olga Benário. É um espaço totalmente autofinanciado pelas integrantes, graças a doações e articulação de eventos que resultam em arrecadações.
Legenda: Gilda comenta o porque foi para a Casa Almerinda Gama. Vídeo: Julia Lima
A Ocupação Almerinda Gama está situada em uma das ruas que serão revitalizadas pelo projeto da Prefeitura chamado Reviver Centro Cultural. A ideia é transformar a Rua da Carioca, hoje caracterizada pelo elevado número de imóveis abandonados, em uma “Rua da Cerveja”. Ainda que não haja conflito direto entre o projeto da Prefeitura e a Ocupação, abrigada num imóvel do governo do Estado, a dinâmica em torno de projetos de revitalização urbana na cidade invariavelmente é marcada pela pressão para que antigos moradores e ocupantes de imóveis vazios se desloquem para outros territórios, em geral menos valorizados pelo mercado imobiliário.
Helena Garcia, uma das coordenadoras da Casa Almerinda, explica que não é contra a “requalificação” do Centro, desde que seja construída com o povo e não para a especulação imobiliária. “A gente não acha que esse projeto (Rua da Cerveja) tem conflito com a existência da nossa casa, até porque tem muitos outros imóveis abandonados aqui.”
Helena se refere ao processo de desocupação da Casa Almerinda movido pelo Governo do Estado. A Secretaria de Estado da Mulher participa das negociações no processo. “Não tivemos acesso aos autos do processo, que corre em sigilo. A gente está em um processo de negociação com a Secretaria da Mulher, junto à Comissão Administrativa de Soluções de Conflitos. Estamos nesse diálogo agora”, acrescenta.
A Rua da Carioca foi a vitrine de edital lançado pela Prefeitura este ano para que donos de imóveis desocupados possam alugá-los para cervejarias se instalarem no local. Para isso, a Prefeitura se compromete a financiar parte das obras de reformas e custos mensais dos cervejeiros selecionados. A ideia é transformar a “Rua da Cerveja” em uma nova atração turística da cidade, e a primeira cervejaria já foi inaugurada em setembro deste ano.
Para Helena Garcia, as propostas de revitalização urbana por vezes não consideram o que já existe nesses imóveis hoje. “Isso é uma forma de expansão imobiliária, a gente acha sim que o Centro precisa ser requalificado, mas isso tem que ser com o povo”, explica. De acordo com ela, é necessário requalificar os imóveis da região com um outro olhar, considerando as ocupações e outras experiências vivenciadas nesses sobrados.
Segundo estudo do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano Regional (Ippur) da UFRJ, a área central é onde se concentra o maior número de Ocupações na cidade. O documento mapeou, até dezembro de 2023, 69 ocupações de moradias no Centro, em bairros da Zona Norte (São Cristóvão, Vasco da Gama e Caju) e em Santa Teresa. Ainda de acordo com o relatório, cerca de 2.475 famílias vivem nessas ocupações. Os pesquisadores chamam a atenção para a diversidade dessas iniciativas, que se estruturam de diferentes maneiras, e o traço sociorracial de seus membros, em sua maioria pretos e pardos em condição de vulnerabilidade social.
Para Gidiana Ribeiro, a Ocupação Almerinda Gama foi a única saída, mesmo depois de ela ter denunciado as violências que sofria dentro de casa. “Eu não consegui ajuda dos órgãos que eu busquei. Da DEAM (Delegacia Especial de Atendimento à Mulher) fui pra juíza, e ela indeferiu minha causa. O apoio que eu precisava eu não tive naquele momento, aí me vi acolhida dentro da Casa Almerinda”. Helena, coordenadora da Casa, ressalta que o projeto não pretende substituir o Estado no enfrentamento à violência contra a mulher, mas sim ser mais um aliado neste combate. “A nossa ocupação é um espaço “com o Estado”, porque a gente trabalha reforçando a rede de equipamentos de enfrentamento às violências que existem”, reitera.
Para Helena, a ocupação se torna ainda mais relevante pelo auxílio prestado a essas mulheres, com atendimentos jurídicos e psicológicos, seja com abrigo em casos mais graves. “Temos um papel muito importante aqui no Rio, ser um espaço de referência e de organização das mulheres, e de mostrar que é possível sair da violência, é possível superar esse processo”.
O relato de Gidiana sobre as violências sofridas em casa e o reconhecimento do trabalho desempenhado pela Ocupação reforçam a importância da iniciativa. “Ele (o agressor) falava que se eu me separasse dele eu não ia ter condições de sustentar meus filhos”, contou ela. Foi na Almerinda Gama, nas atividades como rodas de conversa, que ela passou a ter consciência das inúmeras violências que sofria em seu cotidiano.
Helena, uma das coordenadoras da Casa, explica como funciona a Ocupação Almerinda Gama. Vídeo: Julia Lima
A Casa Almerinda Gama está articulada a outros movimentos sociais e coletivos existentes na cidade, como o Movimento de Luta de Bairros e Favelas (MLB), que recentemente conseguiu montar 13.500 cestas básicas através de ações de ocupação pacífica de diversos mercados em todo o país. Parte dessas cestas está armazenada na Casa Almerinda, sendo que uma fração é destinada para as abrigadas na Ocupação.
A violência doméstica pode ocorrer de diferentes maneiras: calúnia, ameaça, vigilância constante, insultos, agressão emocional, patrimonial, sexual e uso da força. Gidiana é apenas mais uma dessas vítimas. A cada 24 horas, ao menos 8 mulheres sofrem alguma violência no Estado do Rio de Janeiro, de acordo com a Rede de Observatórios da Segurança. Por isso, além das delegacias especializadas, qualquer mulher vítima de violência tem à sua disposição o Disque 100 (Disque Direitos Humanos) e o Ligue 180 (Central de Atendimento à Mulher), bem como o aplicativo Direitos Humanos Brasil, o site da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH), a rede de mensagens Telegram e, mais recentemente, o Whatsapp, como canais específicos para realizar denúncias.
* O Rampas tentou contato com a Promotoria do Estado do Rio de Janeiro, a Secretaria de Estado da Mulher mas não obtivemos respostas até o fechamento desta edição.
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