Salas sensoriais oferecem acolhida especial, como brinquedos e espaço adaptado
Fogos, luzes, gritos e ruídos. Foi num cenário assim, típico dos estádios de futebol, que o flamenguista Eduardo Colecto viu Arthur, seu filho de nove anos diagnosticado com TEA (Transtorno do Espectro Autista), entrar em crise no Maracanã. Os dois tinham ido ver o jogo de despedida do goleiro Júlio César, em 2018. No primeiro gol do Flamengo, Arthur começou a entrar em crise. Para acalmar o filho, Eduardo precisou levá-lo para fora do estádio e abandonar a partida. Eles não receberam nenhum tipo de suporte médico no Maracanã.

Notando a falta de acessibilidade e preparo para receber autistas no Maracanã, Eduardo começou a desenvolver sozinho um projeto de lei que obriga estádios da cidade do Rio de Janeiro a criarem espaços adaptados para o público autista. Dois anos após o episódio da crise do filho no Maracanã, Eduardo entregou o projeto ao vereador William Siri (PSOL). Aprovada na Câmara de Vereadores, a Lei nº 7.973, nomeada como Lei Arthur Colecto, foi sancionada em julho de 2023 pelo prefeito Eduardo Paes (PSD) e determina que, na cidade do Rio, estádios e arenas com capacidade para 5 mil pessoas têm que criar salas sensoriais, espaços que possuem luz e som adaptados para pessoas autistas. As salas devem ter a capacidade para até 50 pessoas e cada beneficiário tem direito a três acompanhantes. O prazo para ajustes terminou em janeiro.
Atualmente, nenhum dos três principais estádios do Rio - Maracanã, Nilton Santos e São Januário - possui salas sensoriais.
Para Eduardo, o não cumprimento da lei é decepcionante, principalmente no Maracanã, estádio administrado pela dupla Flamengo e Fluminense. Segundo Eduardo, os torcedores já apresentaram projetos da sala sensorial aos administradores, mas os clubes ainda não deram passos efetivos para a construção: “A atual gestão do Flamengo prometeu que faria a sala até o fim do mandato, em dezembro. De lá pra cá, já saiu a licitação do Maracanã, e a gente nem recebe mais retorno sobre a situação da sala”, afirma. O Consórcio Fla-Flu venceu a licitação do Maracanã em junho de 2024 e está responsável pela manutenção e operação do estádio pelos próximos 20 anos.

Monike Lourinho, fundadora da Autistas Flu, torcida autista do Fluminense, e mãe de Frederico, criança de oito anos diagnosticada com TEA e hipersensibilidade auditiva, também passou por situações parecidas com a de Eduardo. Em 2021, Monike levou o filho ao Maracanã e, mesmo utilizando o abafador de ruídos, Frederico não conseguiu acompanhar nem os primeiros 15 minutos da partida: “Ele saiu chorando e batendo no ouvido. Enquanto eu estava descendo a rampa do estádio, me veio um sentimento de indignação por estar indo embora, ao contrário do que meu filho queria”, conta a torcedora.
Muitos pais têm medo de levarem seus filhos autistas ao estádio, já que, em casos de crises, não há uma forma de cuidar da criança sem abandonar o jogo. No Rio, as salas sensoriais já estão presentes em shoppings, festivais e outros espaços que possuem excesso de estímulos, como som alto, ruídos e excesso de luz. Entretanto, torcidas ainda lutam pelo espaço dedicado aos autistas nos estádios.
O que é o autismo?
O TEA é um transtorno que afeta o comportamento e a interação do indivíduo, além disso, algumas pessoas com autismo são mais sensíveis a estímulos como luzes e sons. Por ser um espectro, nem todas as pessoas com autismo terão as mesmas necessidades de suporte e nem reagirão aos estímulos da mesma forma.
Atualmente, o TEA é dividido em três níveis referentes ao apoio que o indivíduo necessita: o nível de suporte 1, em que o indivíduo precisa de um apoio pontual para realizar tarefas do dia a dia; o nível de suporte 2, em que o indivíduo precisa de um apoio mais frequente; e o nível de suporte 3, onde o indivíduo precisa de um suporte extensivo.
Não existe uma estatística exata de quantas pessoas têm autismo no Brasil, porém, de acordo com dados de 2020 do Centers for Disease Control and Prevention (CDC), uma a cada 36 crianças tem autismo nos Estados Unidos. Por mais que o dado não seja preciso em relação ao Brasil, ele pode refletir a realidade do país e do resto do mundo. Monike relata que o processo para o diagnóstico de autismo no Brasil ainda é lento e que Frederico demorou cerca de um ano para ter o diagnóstico final de TEA: “A gente passou por neurologistas, psicólogos e psiquiatras, não é um caminho rápido e nem um diagnóstico que a gente tem em apenas um dia”, conta.

Por que as salas sensoriais são necessárias?
Segundo Flávia Dutra, especialista em acessibilidade e professora da Faculdade de Educação da Uerj, as salas sensoriais têm o efeito de autorregulação do indivíduo, ou seja, auxilia a pessoa a sair de uma crise sem precisar abandonar o local que está frequentando. As salas possuem iluminação, acústica e espaços apropriados para receber pessoas do espectro autista. Além de proteger de alguns estímulos, as salas ainda possuem tapetes sensoriais, jogos e piscinas de bolinhas que ajudam a acolher a pessoa com TEA. A especialista afirma que as salas sensoriais são importantes, porém muito negligenciadas.
No Brasil, a primeira sala sensorial em um estádio de futebol foi inaugurada em 2019, na Neo Química Arena, do Corinthians. Atualmente, cerca de 10 arenas e estádios brasileiros possuem o dispositivo ou os “Camarotes TEA”, que são menores que as salas sensoriais, mas possuem pelo menos abafadores e parte dos equipamentos das salas sensoriais. Seis clubes da Série A do Brasileirão tem uma sala sensorial em seu estádio. No entanto, no Rio de Janeiro, os clubes ainda enfrentam desafios na promoção da acessibilidade, apesar da existência da Lei Arthur Colecto.

No Estádio São Januário, estádio do Vasco, há um camarote dedicado aos torcedores autistas que foi inaugurado em abril, porém, são disponibilizados apenas seis ingressos gratuitos, sendo cada um para um autista e um acompanhante. Por mais que o camarote ofereça mais conforto, ele ainda não está nas exigências da lei. Segundo o clube, o projeto de reforma do São Januário, previsto para 2025, inclui a criação de uma sala sensorial para os torcedores autistas. Já no Estádio Nilton Santos, do Botafogo, a situação é a mesma do Maracanã. O estádio não possui a sala sensorial e nem espaço dedicado aos torcedores com autismo.
Monike já visitou as salas sensoriais dos clubes de São Paulo, além do dispositivo instalado na edição de 2024 Rock in Rio, e afirma que as salas promovem lazer: “A gente vê a necessidade de ter esses espaços em todos os lugares, não somente em estádios. Eu bato muito na tecla da questão do lazer porque todo mundo tem esse direito”, relata. Eduardo também já usou as salas sensoriais e relata que o dispositivo é importante para acolher as pessoas com TEA: “Ter um espaço em que a gente sabe que o autista não vai desregular é maravilhoso. A gente se sente abraçado quando chegamos em um lugar e sabemos que ele está preparado para receber nosso filho”, conta o pai.

A especialista enfatiza que a acessibilidade deve ser considerada não apenas dentro dos estádios e salas sensoriais, mas também em todo o trajeto que o indivíduo faz até o jogo. Eduardo observa que a chegada ao Maracanã ainda não é acessível para todos: “Na verdade, o Maracanã não é acessível nem para o TEA e nem para nenhuma deficiência, o acesso deve ser pensado desde o meio de transporte que leva a pessoa até o estádio. Eu moro em Campo Grande e a entrada da estação de trem é por escada, como um cadeirante acessa o trem?”, explica.
Das 104 estações da SuperVia, principal meio de transporte utilizado pelos torcedores da Zona Oeste e da Baixada Fluminense para chegar ao Maracanã, apenas 23 possuem recursos de acessibilidade, como escadas rolantes, pisos táteis e elevadores. Além disso, nem todas as estações com acessibilidade têm todos os equipamentos funcionando, sendo comum encontrar escadas rolantes e elevadores inoperantes, como na estação do Maracanã.
Sem acessibilidade, surge a união
Com os diversos problemas observados pelos torcedores na acessibilidade para autistas no Maracanã, foram criadas as chamadas torcidas autistas, que são movimentos sociais de torcedores que ajudam famílias atípicas a irem aos jogos. A Autistas Rubro-negros (Autistas RN) representa o Flamengo e a Autistas Flu representa o Fluminense. Além dessas, o Vasco e o Botafogo também contam com suas próprias torcidas autistas.
Monike criou a AutistaFlu com ajuda da Autistas Alvinegros, torcida organizada do Corinthians: “Na mesma semana que eu não consegui ficar com meu filho no estádio, eu estava assistindo a um jogo na TV e vi a faixa do Autistas Alvinegros no estádio. Eu entrei em contato com eles e pedi ajuda, porque outras pessoas podem ter a dificuldade que eu tive”, relata. Atualmente, a torcida reúne mais de 100 famílias atípicas.
A Autistas Flu promove diversas atividades com o Fluminense. Anualmente, é realizado um evento em Laranjeiras, sede do tricolor, em que pais e crianças autistas podem jogar futebol no espaço. Além disso, o evento também conta com psicólogos e terapeutas. Para Monike, as ações são uma forma paliativa do clube para unir as famílias e levá-las ao estádio.

Segundo Eduardo, que faz parte da Autistas RN, o Flamengo cedeu abafadores de ruídos para a torcida. Além disso, o clube oferece ingressos para os jogos e promove visitas às suas instalações, como o Centro de Treinamento na Gávea e o Museu do Flamengo.
Monike e Eduardo enfatizam que as torcidas autistas em todo o Brasil são bastante unidas e diversificadas. O grupo Arquibancada Autista reúne todas essas torcidas, totalizando 26. Os problemas observados nos estádios cariocas são evidentes em várias regiões do país, e muitas torcidas autistas ainda buscam uma maior aproximação com os clubes para promover mais inclusão, tanto dentro quanto fora das quatro linhas.
O que dizem os clubes?
Em nota, o Vasco informou que foi o primeiro clube do Rio de Janeiro a disponibilizar uma sala para pessoas autistas em seus jogos (o camarote inaugurado em abril) e que o clube possui uma relação muito próxima com o grupo “Autistas da Colina”, realizando encontros e ações visando a inclusão da comunidade autista na rotina do clube. Procurados, o Flamengo, Fluminense, Botafogo e o Consórcio Fla-Flu, que administra o Maracanã, não responderam até o fechamento da reportagem.
Parabéns kauhan você é meu orgulho.vovó te ama
Parabéns Kauhan, muito orgulho de vc meu filho!