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Foto do escritorCamille Mello

Exposição na Uerj retrata resistência de mães negras contra a violência policial

Mostra de fotografias “Amamentamos esse país” inaugura corredor cultural na Faculdade de Comunicação Social, levando arte e reflexão aos estudantes


Exposição Amamentamos Esse País em exibição na Faculdade de Comunicação Social (FCS) da Uerj. Foto: Camille Mello

Um dos corredores da Faculdade de Comunicação Social (FCS) da Uerj, antes um mero lugar de passagem, ganhou ares de galeria de arte. As inexpressivas paredes brancas agora abrigam quadros, um grande lambe-lambe e uma TV que exibe as fotografias da exposição Amamentamos Esse País. A mostra da educadora, fotógrafa e cientista social Marina S. Alves articula arte, militância e memória para retratar a luta das mães negras cujos filhos foram vítimas da violência policial no estado do Rio de Janeiro.


A exposição destaca histórias como a de Bruna da Silva, mãe de Marcus Vinícius, morto aos 14 anos durante uma operação policial na Maré, em 2018, e de Nádia dos Santos, cujo filho, Cleyton Braga, foi assassinado pela polícia aos 18 anos no bairro de Irajá, em 2015. Nívia Raposo e Mônica Cunha também compartilham suas vivências: Nívia perdeu o filho Rodrigo Tavares, de 19 anos, para a milícia em Nova Iguaçu, enquanto Mônica viu o filho Rafael da Silva, de 20 anos, ser morto por um policial civil no entorno da favela do Jacarezinho, em 2006. “Venho desse lugar onde você tem que ser forte todo dia. As famílias negras não podem ter uma essência que não seja dor nesse sistema racista. Eles têm ódio em nos ver ocupando os espaços. Para eles, nenhuma de nós, mulheres pretas, podemos existir sem dor”, diz um trecho do vídeo exibido na mostra, composto por frases ditas pelas mães.




A instalação de fotografias e vídeo que compõem a exposição Amamentamos Esse País é aberta ao público externo e será exibida até o dia 20 de dezembro, de segunda a sexta-feira, das 9h às 19h, em frente à sala 10.018, no décimo andar do campus Maracanã da Uerj.


Histórias de luto e luta


Nívia Raposo, que perdeu o filho Rodrigo Tavares, de 19 anos, em 2015, assassinado pela milícia na porta de casa, em Nova Iguaçu, e Mônica Cunha, mãe de Rafael da Silva, morto aos 20 anos por um policial civil no entorno da favela do Jacarezinho em 2006, são também as personagens da exposição. Foi trabalhando como fotógrafa em eventos do movimento negro que Marina conheceu essas mulheres e começou a se interessar por suas histórias. Mônica Cunha, vereadora do Rio e cofundadora do Movimento Moleque, que dá assistência a familiares de jovens ameaçados, atacados ou mortos pela polícia, foi quem a apresentou às outras mães e ativistas. Esse encontro marcou o início de seu processo criativo. “Se num primeiro momento eu fazia muitas fotos dos atos delas, do movimento, do luto que vira luta, me pareceu mais importante fazer um recorte nessa história sobre a vida dos meninos”, relembra Marina. “Há muitos artistas e pesquisadores brancos fazendo reflexões sobre essa temática, mas também é importante nós, mulheres negras, pensarmos sobre nossos homens negros.”


O título da exposição remete às amas de leite — mulheres negras que, durante o período colonial, amamentavam bebês de famílias abastadas enquanto eram forçadas a abandonar os próprios filhos. A mostra recupera narrativas de dor, mas também de resiliência.  “Essas mulheres acabam sendo herdeiras de uma estrutura histórica, social, racial e de gênero. Assim como as amas de leites, elas também precisam sair de casa para trabalhar e têm que deixar o filho com o irmão mais velho, com um parente ou um vizinho”, reflete a artista. 



Nascida em Belo Horizonte, a fotógrafa Marina S. Alves, de 38 anos, era participante do grupo de estudos do LabFoto Uerj quando foi convidada para fazer a exposição na universidade. Foto: Arquivo pessoal Marina Alves

Como autora das obras, Marina escolheu retratar os documentos de vida dos jovens vítimas da violência do Estado. Cartões de vacinação, carteiras de identidade e de trabalho, boletins escolares, títulos de eleitor, fotos 3x4 e objetos pessoais contam as histórias de Marcus Vinícius, Cleyton, Rodrigo e Rafael antes de eles terem virado estatísticas. “Meu trabalho é um contraponto à morte, ao assassinato. Ele aborda o momento que eles tiveram aqui, vivos, producentes, interessantes. Para mim, isso é iluminar uma parte da história que o Estado tenta apagar, transformando-os em números. Retratar esses documentos converte a invisibilidade em memória”, afirma a fotógrafa. "É uma exaltação do que há de melhor no ser humano: o amor de mãe para filho.” O destaque dado a esses registros também representa a burocracia com a qual as mães precisam lidar após a morte de seus filhos. “Tem muitos documentos ali de enterro, de óbito, do Instituto Médico Legal, que expressam como foi difícil liberar o corpo. São coisas muito duras para um momento tão sensível para essas mães.”




Arte que transforma o espaço acadêmico


A exposição, a terceira organizada pelo Laboratório de Fotografia da Faculdade de Comunicação Social (LabFoto/FCS) da Uerj, é a primeira a ocupar o corredor da faculdade. Anteriormente, as mostras aconteciam apenas no interior do laboratório. Para o professor Leandro Pimentel, curador da exposição e coordenador do LabFoto, a iniciativa democratiza e amplia as possibilidades de uso do espaço físico da faculdade. “Essa exposição contribui para pensar o corredor como um espaço que pode ser usado tanto pelos professores quanto pelos alunos e pela comunidade em geral. Assim, as pessoas podem entrar em contato com as obras independentemente de a sala do laboratório estar aberta.”



Totem com livro de presença na entrada da exposição Amamentamos Esse País. Foto: Camille Mello

Além de iluminação especial para dar destaque às obras, o corredor ganhou uma televisão fixada à parede que, segundo Pimentel, futuramente será utilizada para exibir trabalhos de alunos. “Estou acostumado a ver na faculdade muitas paredes cinzas, brancas. Com a exposição, eu acho que o corredor se torna um espaço mais acolhedor”, diz Guilherme Leôncio, estudante do curso de Jornalismo da Uerj. “É interessante, porque traz pessoas para consumirem um conteúdo na FCS. No dia a dia, a gente não tem muito tempo para ir a centros culturais, então é legal poder ter esse contato com a arte entre uma aula e outra. É um serviço que a faculdade presta para os próprios estudantes e servidores dela.”



Objetos pessoais dos jovens exibidos na exposição Amamentamos Esse País. Foto: Camille Mello

Para além da fruição artística, Carolina de Vasconcelos, graduanda de Jornalismo da FCS, acredita que ver a exposição foi importante para sua formação acadêmica. “Eu acho essencial a Faculdade de Comunicação Social ceder esse espaço para essas mães trazerem suas histórias, trazerem as histórias dos seus filhos para relembrar que a gente está lidando com a vida das pessoas na nossa profissão e que parte da nossa responsabilidade é evitar que elas sejam duplamente vitimizadas, tanto pelo Estado quanto pela mídia”, disse a estudante. 


Esse papel pedagógico é reforçado pelo curador da mostra, que também é docente do curso de Comunicação Social da Uerj. “Embora essas histórias não estejam muito distantes da realidade da maioria dos estudantes da Uerj, que são moradores de periferias e favelas, é interessante que os estudantes de jornalismo saibam que há modos de narrar esse tipo de história sem a espetacularização do sofrimento”, ressalta Pimentel.


Cultura antirracista na universidade


O uniforme escolar manchado de sangue e a carteira de trabalho sem qualquer anotação, expostos na mostra, simbolizam trajetórias interrompidas de forma brutal. Jovens que tiveram suas vidas ceifadas na adolescência não puderam frequentar a universidade ou alcançar oportunidades profissionais que lhes trouxessem emancipação. Por isso, levar suas histórias para um espaço acadêmico é um gesto de resistência. “Vamos ocupar, mais do que nunca, todos esses espaços de poder junto com nossos filhos, mostrando até onde os nossos filhos podem chegar. O lugar dos nossos filhos não é dentro da cadeia, do manicômio, do cemitério. O lugar dos nossos filhos é nos parlamentos dessa cidade e desse país. Onde eles quiserem estar. Nossos filhos e netos vão concluir esse novo Estado com uma cultura antirracista”, afirma outro trecho do vídeo apresentado na mostra, com frases de mães das vítimas lidas pela artista.


Uniforme escolar usado por Marcus Vinícius morto aos 14 anos durante uma operação policial na Maré em 2018. Foto: Marina S. Alves

Para Marina Alves, a exposição não apenas denuncia o racismo estrutural, mas também cria conexões entre a universidade e a sociedade. “Eu fico muito feliz de expor na Uerj, uma universidade de resistência, luta e pioneira de cotas raciais, enfim, de muitos movimentos políticos importantes”, afirma a fotógrafa. “Quando a gente traz essas mulheres para o universo acadêmico com algo tão íntimo delas, onde elas se sentem contempladas, o corpo delas começa a adentrar esse espaço. A gente faz confluir universos diferentes.”

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