Integrantes da comunidade LGBTQIAPN+ se reúnem para praticar jogo do qual muitos foram excluídos na infância
E se uma brincadeira de criança pudesse ajudar a curar as feridas dos adultos? É essa a proposta do “gaymado”, uma versão do tradicional jogo de queimado, ou queimada - só que voltada para o público LGBTQIAPN+ do Rio de Janeiro. Gays, lésbicas, bissexuais e pessoas trans se reúnem em várias áreas da cidade para jogar e confraternizar.
Os grupos de gaymado têm ficado cada vez mais populares em bairros como Madureira, Sepetiba, Campo Grande, Jacarezinho, Senador Camará, Santa Cruz, Vila Militar e Deodoro. Cada grupo tem seu estilo, e os encontros semanais, além de promoverem a modalidade, acabam se tornando um hábito de autocuidado contra o preconceito.
O universitário Patrick de Amico, morador de Nova Iguaçu e estudante da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), começou a jogar queimado na rua, quando criança. Conta que o costume era ter uma divisão entre brincadeiras de menino e brincadeiras de menina: o queimado era das meninas, e o futebol, dos rapazes. No entanto, os meninos que optassem por jogar a modalidade oposta sofriam preconceito.
A paixão pelo esporte, oprimida na infância, encontrou seu lugar no Gaymado do Thelma. O grupo de Patrick foi formado há cerca de dois anos, em 2022. De boca em boca, conta o estudante, uma pessoa foi chamando a outra até consagrar o domingo como o dia oficial dos jogos. A partir daí, as engrenagens começaram a funcionar sozinhas. “A gente, no nosso grupo, tem a cota hétero cis, mas a maioria é LGBT. E, por conta da prática do gaymado, eu comecei a ver [o queimado] de uma forma diferente e, consequentemente, o esporte de outra forma.” Os jogos do Gaymado do Thelma acontecem sempre aos domingos na Vila Militar, Zona Oeste do Rio. Atualmente o grupo conta com 20 participantes regulares, mas amigos e jogadores convidados podem aparecer por lá.
Uma oportunidade de autoafirmação
Desde criança estigmatizados como “viados” ou “bichas”, os rapazes do queimado desde cedo foram submetidos a uma rotina de violência. Até hoje sabem que, dentro e fora das quadras, o cenário de insegurança dos corpos LGBTQIAPN+ é frequente e decisivo.
O tema é estudado pelo jornalista Marcelo Resende, doutorando em Comunicação na Uerj e também jogador de gaymado. Ele diz que os que foram reprimidos durante a infância, com a chegada da vida adulta encontram a oportunidade de autoafirmação por meio de diferentes tipos de expressão, como o esporte. “Essa aceitação da identidade é uma questão muito importante para comunidade, principalmente na periferia. É uma forma de se autoafirmar para outros grupos a partir da prática esportiva”, diz.
O pesquisador observa ainda que, na prática do gaymado, existem “acirradas disputas ideológicas e de ocupação” nos espaços urbanos. É algo que não se limita à quadra e é capaz de reinventar a própria comunidade LGBT.
Patrick acredita que a prática do gaymado se trata também de uma experiência diferente mesmo para ele, que integra a comunidade LGBTQIAPN+. “Ter esse contato com outras pessoas LGBT depois de muito tempo [isolamento social], a não ser pelas redes sociais, fez com que eu me conectasse melhor. E essa relação se fortalece a cada encontro, a cada partida, e isso também acontece com o pessoal hétero também. Porque não é só o jogo, tem o after, o bate-papo, outros eventos também… comer besteira, sei lá. Eu vejo que no gaymado tem gente que se abre mais, que se abre menos, mas em si é sim um ambiente aberto.”
Fora do convencional, a inclusão
Esportes mais populares, como o futebol, vôlei e as artes marciais, sempre estiveram intimamente atrelados a um cenário patriarcal. Não é surpresa que, com uma rotina de homofobia e transfobia registrada nessas modalidades, a comunidade queer se afaste e procure um novo caminho.
Em junho deste ano, Douglas Souza, primeiro campeão olímpico assumidamente gay do vôlei masculino brasileiro, foi anunciado pela equipe do Sada Cruzeiro e teve que lidar com comentários homofóbicos nas redes sociais. O time mineiro publicou um manifesto em apoio ao jogador que, também pelo preconceito, decidiu se aposentar da seleção brasileira para preservar sua saúde mental. E não só.
No futebol, xingamentos em campo, cânticos nos estádios e comentários ofensivos fazem parte de uma cultura homofóbica. Os episódios de preconceito cresceram 76% no ano passado, segundo levantamento feito pela CBF. O relatório, conduzido pelo Coletivo de Torcidas Canarinhos LGBTQ+, mostra que, de 2022 para 2023, foram registrados 32 episódios a mais de preconceito contra homossexuais - dentro e fora de campo.
“Só quem teve gay panic, sapatão panic, entende quando homens héteros pegam o esporte e transformam em algo competitivo e bruto sem necessidade. Isso cria um ambiente tóxico que não deixa gente de fora se aproximar”, pontua Patrick, que se diz preocupado com os rumos da intolerância no esporte.
“O meu corpo consegue estar nesse espaço”
Como espaço de empoderamento e acolhida, o gaymado transmite benefícios dobrados para a comunidade LGBT: a melhora na autoestima é um ganho inegociável. “Eu consigo jogar queimado por horas, mas não aguento 10 minutos na academia, por exemplo”, diz Patrick. “Faz bem tanto para o meu corpo quanto para minha mente”, conclui.
No entanto, apesar do clima amistoso e descontraído, os praticantes são muito rigorosos com as regras, que podem variar de grupo para grupo. “A gente perdia muito tempo do jogo debatendo sempre as mesmas coisas, daí veio a ideia de criar um documento em PDF com todas as regras. E como cada um sai de um lugar diferente da cidade, os costumes são diferentes, mas esse documento serve para padronizar o NOSSO jogo.” O manual elaborado no gaymado do Thelma passou por 6 grandes alterações, principalmente depois do contato com grupos de outras regiões.
Ficou interessado pelo esporte? Procure nas redes sociais por gaymado, quem sabe não tem um grupo pertinho de você?
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