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Jacarezinho, quatro anos depois: entre o silêncio da Justiça e a resistência da favela

Chacina de 2021 deixou 28 mortos e segue sem responsabilizações efetivas; moradores apostam na memória e na organização para manter viva a luta por justiça


Por Raphael Lisboa


Em 6 de maio de 2021, o Jacarezinho foi palco da chacina policial mais letal da história do Rio de Janeiro. A incursão da Polícia Civil, inicialmente batizada de Operação Exceptis, deixou 28 mortos e gerou denúncias de execuções, tortura e destruição de provas. O nome técnico, no entanto, foi rapidamente substituído por moradores, pesquisadores e organizações de direitos humanos: o que aconteceu naquela manhã entrou para a história como a Chacina do Jacarezinho. Quatro anos depois, as investigações não avançaram, e a maior parte das mortes foi arquivada sem punições. 


"Era pandemia, a gente só saía pra comprar comida ou remédio. Quando os helicópteros começaram a sobrevoar baixo, tudo na casa tremia. Em pouco tempo, já circulava a notícia de que a polícia tinha invadido a comunidade. O dia inteiro foi de tiroteio e de contagem de mortos pelo celular. Já vi muita operação aqui, mas nada como aquilo. Era corpo sendo arrastado, sangue por toda parte, nenhuma dignidade. Foi traumático. Até hoje, parece que ninguém se importa com a nossa saúde mental. A gente não tem culpa de morar num lugar dominado pelo tráfico. Mas o Estado age como se tivéssemos", conta um morador do Jacarezinho que preferiu não se identificar. 


Morador dorme em sofá destruído enquanto caveirão da Polícia Civil circula pelas ruas do Jacarezinho. A operação que deixou 28 mortos em 2021 segue sem respostas efetivas do Estado. Foto: Reprodução: Fabiano Rocha/Agência O Globo. 
Morador dorme em sofá destruído enquanto caveirão da Polícia Civil circula pelas ruas do Jacarezinho. A operação que deixou 28 mortos em 2021 segue sem respostas efetivas do Estado. Foto: Reprodução: Fabiano Rocha/Agência O Globo. 

A justificativa oficial da operação era o cumprimento de mandados contra acusados de tráfico e aliciamento de menores. O que se viu, no entanto, foi um rastro de sangue, corpos baleados no rosto e na nuca, famílias desesperadas, socorro negado e a completa ausência do Ministério Público nas primeiras horas da ação, em desrespeito direto à decisão do STF que restringia operações em comunidades durante a pandemia.


Das 28 pessoas mortas naquela manhã, apenas um caso gerou denúncia formal: o do morador Omar Pereira da Silva, executado dentro do quarto de uma criança. Os demais processos foram arquivados ou seguem engavetados. Silêncio e impunidade. Durante o julgamento de Omar, as testemunhas — todas moradoras da comunidade — precisaram cobrir os rostos por medo de retaliação. Enquanto isso, os policiais envolvidos assistiam à sessão fardados, sentados na galeria. Para o Instituto Vladimir Herzog, a cena materializa o desequilíbrio estrutural que marca a justiça no Brasil: vítimas vulneráveis frente a agentes armados e amparados por instituições omissas.


O relatório elaborado pelo instituto, publicado em memória das vítimas, reúne laudos necroscópicos, depoimentos, vídeos e análises técnicas. Conclui que houve um padrão de execução. Ao menos 17 das execuções ocorreram após a morte de um policial civil que liderava a operação. O dado sustenta a tese de uma ação retaliatória, a chamada "operação vingança" — prática recorrente nas favelas brasileiras. Pesquisas da Universidade Federal Fluminense indicam que esse tipo de incursão policial deixou cerca de 380 mortos no estado do Rio nos últimos 14 anos.


Além das mortes, houve denúncias de tortura, destruição de provas, alteração da cena do crime e omissão de socorro. Os corpos foram removidos de onde caíram, o que compromete a perícia. Marcas de sangue nos becos da comunidade revelavam uma tentativa apressada de apagar vestígios.


No plano jurídico, a resposta foi pífia. No plano simbólico, ainda pior.


No dia 6 de maio de 2022, moradores e coletivos inauguraram o Memorial aos Mortos na Chacina do Jacarezinho — uma estrutura azul, com placas de metal gravadas com os nomes das 28 vítimas. O projeto, idealizado pela Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial (IDMJR), buscava preservar a história e criar um espaço de memória coletiva.


Mas o memorial durou pouco. Na semana seguinte, no dia 11 de maio de 2022, agentes da Polícia Civil destruíram a estrutura durante uma nova operação na comunidade. O episódio foi interpretado como uma tentativa deliberada de apagar a história. O gesto de destruição de um monumento, pequeno, frágil, mas cheio de significado, escancarou o desprezo do Estado pelas vidas que leva.


Monumento em homenagem às vítimas da Chacina do Jacarezinho, erguido por moradores da comunidade e coletivos de direitos humanos, foi derrubado poucos dias após sua instalação. Foto: Selma Souza / Voz das Comunidades
Monumento em homenagem às vítimas da Chacina do Jacarezinho, erguido por moradores da comunidade e coletivos de direitos humanos, foi derrubado poucos dias após sua instalação. Foto: Selma Souza / Voz das Comunidades

"Manter a luta viva é garantir que um outro mundo é possível — um mundo onde a cidadania plena chegue a todos os territórios", afirmou Mônica Francisco em entrevista ao Rampas. Pastora, ativista dos direitos humanos e ex-deputada estadual, ela defende que a chacina do Jacarezinho não foi um ponto fora da curva, mas parte de um projeto histórico de controle e eliminação da população negra. "A estrutura do Estado está impregnada pelo racismo. Isso se reflete na ausência de responsabilização, na morosidade da Justiça e na estigmatização permanente das pessoas negras e pobres", apontou. Ainda segundo ela, "a justiça ainda é uma fronteira a ser vencida. É preciso racializar radicalmente o Judiciário.”


Mônica também contesta o discurso de combate ao tráfico que sustenta ações como a Exceptis. "O que temos nas favelas é o varejo da droga. As grandes apreensões mostram que o problema está nos altos esquemas, nos condomínios de luxo da Barra, nos portos e aeroportos. O modelo atual de segurança é falho, agressivo e ineficaz. Segurança pública não é só confronto. É cultura, saúde, educação, lazer. É ouvir os territórios e garantir dignidade. Vai muito além de armas e munições."


O Rampas procurou o Instituto Decodifica, referência na análise de dados sobre segurança pública e direitos humanos, mas não obteve retorno até o fechamento desta matéria.


Enquanto isso, quatro anos depois, o Estado ainda deve respostas.



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