Nova legislação diminui idade mínima e permite realização do procedimento sem consentimento do cônjuge
A baiana Jucilene Rosa tinha 19 anos quando foi surpreendida pela segunda gravidez. Vivia no interior da Bahia e não teria condições de sustentar uma terceira criança, caso engravidasse novamente. Assim, quando o bebê nasceu, procurou o serviço de saúde para realizar a laqueadura tubária, a popular ligadura de trompas. “Eu me vi nova, com dois filhos, e a laqueadura era a minha única opção. Eu tentei de tudo, fiz exames, mas o meu organismo recusava todos os outros métodos [DIU e pílulas anticoncepcionais]", relatou a auxiliar de serviços gerais, hoje com 41 anos, que diz não se arrepender do procedimento.
A história de Jucilene é comum entre muitas brasileiras que, sem sucesso com outros métodos anticoncepcionais, acabam optando pela laqueadura. De acordo com dados do Ministério da Saúde, o Brasil realizou mais de 70 mil laqueaduras no Sistema Único de Saúde (SUS) em 2022, sendo que 43 mil delas ocorreram entre mulheres com dois filhos.
Aprovada no ano passado, a nova lei de esterilização voluntária (Lei 14.443/2022) diminui de 25 para 21 anos a idade mínima para homens e mulheres realizarem a esterilização voluntária. E também dispensa o aval do cônjuge para procedimentos de laqueadura e vasectomia. A atualização da legislação altera a Lei do Planejamento Familiar, de 1996. A relatora, senadora Nilda Gondim (MDB-PB), avaliou que a redução da idade mínima foi possível por entender que o SUS está plenamente apto para fornecer informações adequadas para a tomada de decisões conscientes.
Flávia Ribeiro, presidente da OAB Mulher, da Seccional do Rio de Janeiro, afirma que a nova legislação garante, principalmente, que as mulheres tenham autonomia sobre seus corpos e possam tomar decisões informadas sobre a sua saúde reprodutiva. A exigência do consentimento do cônjuge, prevista na lei antiga, muitas vezes limitava a capacidade das mulheres tomarem decisões sobre a sua própria vida, colocando até em risco a saúde física e mental delas. Flávia considera que a redução da idade mínima para a esterilização voluntária é um avanço na proteção dos direitos reprodutivos das mulheres e na promoção da igualdade de gênero.
Para o ginecologista e obstetra Leandro Abreu, coordenador do serviço de cirurgia ginecológica do Hospital Municipal Albert Schweitzer, a lei era muito mal interpretada pela equipe médica, o que gerava dúvida e falsa informação propagada. “É errado falar que na lei antiga, tinha que ter 25 anos e 2 filhos. A preposição fazia toda a diferença nesse caso - não é ‘e’, e sim ‘ou’. As mulheres com menos de 25 anos com dois filhos também já eram elegíveis para laqueadura, assim como as mulheres de 25 anos sem filhos. O que a gente via era uma desinformação generalizada, tanto de profissionais da saúde quanto da população em geral sobre essa informação”, conta o ginecologista.
O erro de interpretação da legislação era muito comum e os médicos apenas realizavam o procedimento em mulheres maiores de 21 anos e com, pelo menos, dois filhos vivos. A baiana Jucilene conta que, para ter acesso à laqueadura segura e sem custos, precisou contactar um médico que se candidatava a vereador da cidade, que fez a cirurgia em troca de quatro votos da família: da própria paciente, do marido, da irmã e do pai dela. E ainda assim, ao consultar o médico, precisou levar os documentos da irmã, que já tinha 23 anos. Por isso conseguiu fazer a ligadura um mês depois do segundo filho nascer.
Pela legislação da época, a baiana estaria apta para o procedimento por já ter dois filhos, mas devido às interpretações erradas da lei, não seria elegível por ter apenas 19 anos.
Por que a laqueadura?
A laqueadura tubária é um método cirúrgico indicado nos casos em que a mulher não deseja mais ter filhos. O objetivo é obstruir as tubas uterinas e impedir que os óvulos e os espermatozoides se unam no canal vaginal. É considerado de baixa complexidade e realizado em ambiente hospitalar. Por ser um procedimento cirúrgico, envolve riscos. Como todo método contraceptivo, tem uma taxa de falha, mas é considerada baixa.
“A taxa de gravidez após a laqueadura tubária existe. O procedimento tem uma taxa de falha, mas é uma falha aceitável, assim como os outros métodos contraceptivos. Por ser um procedimento cirúrgico, ele envolve esses riscos, é interessante que seja avaliado se essa é a melhor opção para a paciente”, explica o coordenador do Hospital Municipal Albert Schweitzer. Em sua avaliação, a vantagem da laqueadura é seu caráter definitivo. “Para grande parte das mulheres elegíveis ao procedimento, é uma grande vantagem. Além da possibilidade de ser realizada concomitante, por exemplo, a um outro procedimento cirúrgico, como a cesariana”, complementa o ginecologista.
Exatamente por ser definitiva, muitos médicos, porém, orientam a paciente a refletir sobre a decisão. “A laqueadura é uma das ferramentas que a gente pode utilizar. E, teoricamente, não deveria ser nem a mais utilizada, nem com maior holofote”, afirma Leandro. Por isso, o padrão é fazer o procedimento apenas no terceiro filho. Foi o que aconteceu com a enfermeira Cristina Duarte, de 49 anos, que realizou a laqueadura tubária logo após o parto da sua terceira filha pela rede particular. Ela considerou vantajoso poder se submeter a apenas uma intervenção cirúrgica, integrando a ligadura das trompas com a cesariana. Quando ela teve a segunda filha, com 38 anos, a médica obstetra não permitiu a realização da laqueadura, alegando que a paciente só tinha uma filha viva.
Planejamento Familiar vai além de procedimentos de esterilização
A laqueadura tubária e a vasectomia fazem parte do conjunto de ações preventivas e educativas de Planejamento Familiar realizadas pelo SUS. Para o ginecologista Leandro Abreu, o planejamento familiar, porém, precisa ir além da oferta do método cirúrgico.
“A gente ainda precisa melhorar muito a nossa política de planejamento familiar. O acesso a métodos contraceptivos de longa duração (DIU e implantes) permitem à mulher ter um período de 3 a 10 anos de anticoncepção. São métodos reversíveis e podem ser o carro-chefe do nosso programa de planejamento familiar. Precisamos encorpar muito mais o nosso programa [de planejamento familiar] e disponibilizar para as mulheres diversas possibilidades. Dessa forma, a gente está ajudando a mulher a decidir quando engravidar e não apenas se quer engravidar ou não”, afirma Leandro.
Ele ainda cita outros métodos, como as pílulas anticoncepcionais e o diafragma (uma espécie de copo de silicone em forma de cúpula inserido na vagina algumas horas antes do ato sexual para evitar a gravidez, usado juntamente com um espermicida).
Programa Estadual de Laqueadura Tubária
A Secretaria do Estado do Rio de Janeiro (SES-RJ) lançou em março uma nota técnica com orientações sobre o novo Programa Estadual de Laqueadura Tubária. As novas medidas já estão atualizadas de acordo com a nova legislação e implementam, de forma imediata, os serviços de laqueadura tubária por videolaparoscopia no Hospital Estadual da Mulher Heloneida Studart e no Hospital Estadual da Mãe.
“A lei que entrou em vigor no início deste mês é um avanço na legislação do Planejamento Familiar e corrige um absurdo que vinha acontecendo em pleno século XXI: a mulher precisar da autorização do companheiro para fazer laqueadura tubária. Vamos oferecer laqueadura tubária por videolaparoscopia, técnica que tem menor tempo de recuperação pós operatória, cicatriz reduzida e menor risco de infecção”, afirmou o secretário de Estado de Saúde, Doutor Luizinho, no lançamento do Programa.
O que fazer se o médico negar métodos contraceptivos à paciente
A ouvidoria do Ministério da Saúde tem um canal para receber denúncias caso o médico negue o encaminhamento de procedimentos do planejamento familiar. O número é o 136. É preciso ter em mãos o número da carteira do SUS, nome do posto, nome, especialidade e CRM do médico (que pode ser consultado nos conselhos regionais de medicina); data e hora da consulta. O acesso a métodos contraceptivos de longa duração (DIU, implantes) permite à mulher ter um período de 3 a 10 anos de anticoncepção. Existem outros, como pílulas anticoncepcionais e implantes. Vale lembrar que esses métodos evitam a gravidez, mas não protegem contra infecções sexualmente transmissíveis. Para evitar as ISTs, a melhor proteção é o preservativo.
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