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Foto do escritorNuno Melo

Lembrar e resistir: como o River de Piedade sobrevive às mudanças no subúrbio carioca

Empobrecido, clube centenário que revelou Zico luta para manter tradições em meio à transformação da Zona Norte do Rio



Clube da Zona Norte completa 110 anos em meio a glórias e esquecimentos. Foto: Nuno Melo

É sob vaias enérgicas que o time de vôlei feminino do Superset vai para a última bola, no set decisivo. A torcida do Vasco, com faixas e bandeiras, faz pressão sobre o rival na partida que pode definir o campeonato carioca da categoria “Infanto A”. Lá e cá, a disputa segue até a bola cruelmente tocar a quadra do lado cruzmaltino, que ensaiava uma virada. Vitória da escola de voleibol da Tijuca, que garante o troféu do torneio da Liverj (Liga de Voleibol do Estado do Rio de Janeiro). Torcida e a equipe se encontram na arquibancada azul-vermelho-e-branca. Uma cena chama a atenção. Um senhor de boné vermelho e bigode, isolado dos demais torcedores, se emociona. Diz que chora de “felicidade e saudade”. “Choro hoje porque me lembro do ontem. Esse ginásio foi feito para estar assim, abarrotado”, suspira. 


Quem chora é Luiz Sebastião, o Tião, de 72 anos, presidente do River Futebol Clube, anfitrião da decisão do vôlei. No bairro suburbano de Piedade, na Zona Norte do Rio, eventos do calibre da recente final eram comuns nos espaços do “Tricolor da Piedade”. Com 110 anos de história, o clube social e recreativo coleciona momentos importantes para o bairro e seus moradores, enquanto luta pela sobrevivência aos novos tempos. Tião tenta resumir os capítulos de seus 58 anos de casa. “É a realidade de todo clube que não é ‘grande’. Temos que nos adaptar a tudo para permanecermos de pé”, lamenta enquanto busca seu álbum de fotos. 


Como nos velhos tempos: Ginásio Ìdio da Silveira recebe bom público para final de vôlei feminino. Foto: Nuno Melo.

Da primeira televisão a cores ao “descobrimento” de Zico: os personagens do River


No início do século XX, quando o futebol engatinhava no Brasil, campeonatos de clubes de bairro eram organizados e disputados de forma amadora. O Rio Athletic Club, criado por estudantes de Niterói em 1914, ganhava destaque, apesar de não ter um campo próprio. Seus fundadores  conseguiram pavimentar um espaço na Rua João Pinheiro, perto da estação de Piedade, na Zona Norte. Mas o nome do clube teve que ser trocado, já que cartolas do Rio Cricket Club, também de Niterói, se queixaram de plágio. Do nome anterior, o clube que trocou Niterói por Piedade manteve apenas o Rio, mas em inglês, River. Surgiu o River Futebol Clube - o River de Piedade, para jamais ser confundido com outros Rivers mundo afora.


Paulo Henrique Gonzaga, o “Paulinho”, de 29 anos, que ajuda Tião na comunicação do clube, apresenta orgulhosamente registros de fotos de taças e eventos do passado. Existem, no entanto, imagens de dois nomes que, para ele, são essenciais para entender “o chão que a gente pisa”. O primeiro é Gama Filho (1906-1978), professor, deputado federal e fundador da Universidade Gama Filho, no mesmo bairro do clube. Além do suporte financeiro e institucional, o político, durante a copa de 70, doou a primeira televisão colorida ao clube. Associados, vizinhos e agregados se juntavam lá para  assistirem ao show de Pelé e companhia no México. “Foi um evento. Naquela época a televisão era algo raro, de elite. Gama Filho sabia da importância do clube para o bairro e o ajudou muito”, relembra. Na portaria, há um busto em homenagem ao eterno presidente de honra.


Mas talvez o personagem principal - pelo menos o mais conhecido -  realmente seja Zico, ídolo do Flamengo e da Seleção Brasileira, descoberto no clube da Piedade. No Ginásio Ídio da Silveira, do River, o pequeno Arthur Antunes Coimbra chamava a atenção daqueles que paravam para acompanhar amistosos de futsal do “Juventude de Quintino”. Durante cerca de três anos, os domingos do clube anunciavam as partidas do ‘diabinho’, que dava seus primeiros passos na carreira. “É lá que Zico começa a jogar com mais pessoas, mais público envolvido. Um deles foi o saudoso Celso García, que era radialista e muito rubro-negro. Ele viu o pequeno Arthur jogar e o convidou para fazer um teste no Flamengo. E o resto é história”, brinca Rafael Marques, jornalista da ESPN e setorista do Flamengo. 


Rafael conta que em 1966, em um torneio interno do clube, a sensação da temporada era Marcos, atacante do River que até então havia marcado 25 gols. Zico, que chegara depois, terminou o torneio como campeão após balançar as redes 58 vezes: “O Galinho foi lapidado e se tornou aquilo que conhecemos, mas, antes, já havia uma mostra do que seria jogando na quadra do River”.


No River, o pequeno Zico posa com a faixa de campeão do torneio em que foi artilheiro. Foto: Arquivo Pessoal de Paulinho.

Espalhadas em seus mais de 15 espaços, a sede do clube conserva placas que celebram episódios e nomes de destaque do passado. Entre presidentes e convidados de honra, nomes de Martinho da Vila, Alcione e Neguinho da Beija-Flor (que apresentou pela primeira vez seu sucesso “O campeão” na quadra do River) são imortalizados numa espécie de memorial. No entanto, a galeria de troféus que outrora abrigava toda a memória do clube se perdeu. E hoje o que restou são alguns registros empoeirados em um quarto improvisado, que também serve de depósito.  


Perda de protagonismo e mudança da paisagem


“A imagem do River hoje infelizmente é essa. Passamos por uma crise que não nos deixa pensar em patrimônio”, conta Antônio Pacheco, de 68 anos, hoje porteiro do clube. Mesmo emocionado, ele, que já foi dirigente nos anos 70, tenta se conter ao mostrar o abandono da memória tricolor. Em uma sala atrás do ginásio que vira Zico jogar, fica o despacho. Entre materiais de limpeza e restos de embalagens utilizadas, os troféus outrora expostos orgulhosamente hoje estão cobertos de poeira. “Isso foi o que restou. Há um tempo atrás, contratamos uma empresa de manutenção que acabou jogando parte do acervo no lixo. É uma pena”, conta. 


Marcas do tempo: espaço destinado aos troféus do clube sofre com a falta de manutenção. Foto: Nuno Melo.

Antônio compara o que o River um dia foi e o que vem se tornando. Ele cuida diariamente dos portões do clube e percebe as diferenças geracionais e culturais entre quem frequenta os espaços do Tricolor da Piedade. “São outros tempos. É outro bairro. Hoje trabalhamos do outro lado do muro dos prédios”, diz, se referindo à mudança da paisagem da Zona Norte. Martha Abreu, historiadora que investiga temas relacionados a lazer e cultura em espaços populares, incluindo clubes e associações suburbanas, faz coro às impressões do funcionário. 


“A gente fala de espaços de construção de sociabilidades suburbanas. E o River, assim como o Clube dos Oficiais e Sargentos da Aeronáutica, em Cascadura, o Social Ramos Clube, foi protagonista de uma cultura que, hoje, está perdida”, afirma. Para ela, a “era de ouro” dos clubes com futebol de salão, almoços festivos, bailes, bingos e quermesses, enquanto práticas de fortalecimento identitário dos subúrbios cariocas, se perdeu ao longo do tempo. É o resultado do que chama de arenização da cidade, com a multiplicação dos condomínios. “Tudo o que o clube social oferecia, hoje, está dentro dos megacondomínios”, define. 


Há dez anos, o River de Piedade vem arrendando a maior parte de sua sede social. Barbearia, consultórios médicos, academia, escola de dança e salão de beleza são alguns dos serviços que utilizam as 24 salas da instituição, oferecendo aquilo que os condomínios da região não têm. Essa tem sido a maior fonte de renda do clube desde então e garante o movimento dentro da sede de paredes azuis e vermelhas. 



O dia a dia do bairro com o clube 


A fila para atendimento é sinal de tarefa a ser feita. O consultório de Fernanda Ladeira, de 36 anos,  há três anos funciona no salão da sede, atraindo moradores do bairro que buscam tratamento dentário. “Graças a Deus aqui tem sido assim [cheio], talvez porque aqui em Piedade, Abolição, não tenha espaços que possam receber muita gente assim”, reflete a dentista, que diz estar satisfeita com o seu ambiente de trabalho. Ela, no entanto, conhece pouco o clube e alega manter uma relação mais profissional com aquilo que chama de “galeria”.


Frente da sede social do River FC abriga 24 salas arrendadas. Foto: Nuno Melo.

O sentimento da dentista é uma constante naqueles que passam pelo River. Funcionários e clientes dos prestadores de serviços das salas arrendadas pouco ficam pela sede. O tempo de permanência se limita aos minutos de corte de cabelo, treino, compras ou consulta médica. Segundo o presidente do clube, Jorge Luiz Alves da Silva, de 56 anos, ninguém mostra interesse em associar-se. “Enxergamos uma falta de pertencimento, e o número de associados esse  momento que vivemos. O River já chegou a 8 mil sócios na década de 70. Hoje, não passa de 100”, acentua Luizinho, que está no cargo há 2 anos. Morador do bairro e frequente nos corredores do clube, ele revela que as contas não batem e que, no planejamento, não há qualquer projeto de expansão. “Um clube centenário, do tamanho do River, exige um custo muito grande de reparo e manutenção. Infelizmente, não é o que acontece”, diz.   


Em sua sala, o presidente, de short jeans e camisa do Flamengo, aponta erros de gestões anteriores e admite falhas na comunicação como motivos que impedem “tempos mais tranquilos”. Para ele, é preciso entender as novas demandas e se adequar a elas, tendo em mente que o passado, apesar de glorioso, tem que ser uma página virada. “É um embate entre cultura, memória e dinheiro. Hoje, para viver,  precisamos sobreviver”.




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