Madureira lança moda com protagonismo negro e LGBT
- Luciano Alves
- 30 de mai.
- 5 min de leitura
De produções caseiras a lojas próprias, empreendedores do bairro transformam vivências em marcas autorais que celebram identidade, criatividade e resistência
Por Luciano Alves

Na Madureira do samba, do parque e do Mercadão, criadores apostam na moda para transformar vivências periféricas em potência criativa com suas grifes autorais. Os microempresários Luís Paixão e Márcio Docel, criadores das marcas Kryolo Carioca e Surton, respectivamente, são exemplos de como a moda pode florescer na periferia da cidade com autenticidade e propósito.
A trajetória de Luís Paixão com a moda começou ainda na adolescência. Negro, morador de Duque de Caxias e bolsista em uma escola particular, ele se sentia deslocado diante dos colegas de classe. Quando era convidado para as festinhas do grupo escolar, não sabia o que vestir: faltava dinheiro para comprar as roupas da moda e, além disso, ele não se identificava com o estilo dos colegas. Resolveu, então, criar as próprias peças – desenhava, comprava o tecido e levava para uma costureira de sua rua. Suas roupas faziam tanto sucesso entre os colegas que todos vinham perguntar onde ele as comprava. Acanhado, Luís dizia que as peças eram de um site internacional. A farsa funcionou por um tempo, até que um colega insistiu para que ele mostrasse o tal site. Sem saída, Luís contou a verdade. O colega foi até a costureira, que já produzia e vendia peças com os modelos criados por ele. “Foi aí que eu entendi: minhas ideias tinham valor”, conta o estilista de 36 anos.
Hoje, sua marca Kryolo Carioca é referência em roupas afro no bairro de Madureira. Entre os clientes ilustres, está o ator Lázaro Ramos, para quem Luis confeccionou um look exclusivo usado na festa de 60 anos da TV Globo, no final de abril. Mas o caminho até ali começou de forma modesta. “Primeiro, eu fazia poucas peças, todas do meu tamanho, porque, se não conseguisse vender, elas ficariam para mim”, relembra o estilista. Com o tempo, passou a produzir em outros tamanhos e, com a ajuda de um amigo fotógrafo, organizou um ensaio e criou um perfil no Instagram para divulgar as roupas usando o próprio corpo como modelo.
A divulgação nas redes sociais deu resultado. Luís passou a vender suas peças nas estações de trem do Rio, onde passava horas esperando os clientes – mesmo enfrentando desistências e imprevistos. Percebeu que a maioria preferia encontrá-lo em Madureira e, por isso, escolheu o bairro para abrir sua primeira loja física: um box de 2x2 metros no camelódromo. Com o crescimento da clientela, o negócio evoluiu e hoje ele comanda uma loja de 34 m² na Avenida Edgard Romero, em uma galeria em frente ao famoso Mercadão de Madureira, consolidando sua trajetória no território onde tudo começou.

Moda que abraça a diversidade
Morador de Madureira, Márcio Docel também sentia falta de encontrar em lojas do bairro roupas com as quais se identificasse – e desse incômodo surgiu sua vontade de empreender na moda. A oportunidade de abrir o próprio negócio veio após ser demitido de um cargo administrativo. Com o dinheiro da rescisão e o apoio de amigos de Petrópolis que já trabalhavam com confecção, decidiu arriscar. Em 2013, Márcio abriu a Surton, sua primeira loja física em Madureira, onde permanece até hoje, com ateliê próprio de criação e confecção.

O estilista produz peças exclusivas, alinhadas à tendência da moda LGBTQIA+e com preços acessíveis. “Fico satisfeito em poder oferecer, aqui no subúrbio, opções para um público que não teria condições de comprar essas peças em sites internacionais. Na minha loja, eles encontram um refúgio, algo diferente do que se vê nas lojas convencionais”, diz Márcio.

A Surton se transformou num espaço de encontro. Clientes criam vínculos, compartilham histórias e retornam. Ao comparar sua experiência em outras lojas, a vendedora Luciana de Souza diz que trabalhar ali é mais gratificante. “Os clientes são afetuosos, gostam de conversar, de brincar. Já fui até em noivado de casal que se conheceu aqui”, conta, com orgulho.

Cultura afro-brasileira na passarela
Para Luís Paixão, a inspiração pode vir de qualquer lugar. Até um videoclipe de Marcelo D2 sobre Ogum virou ponto de partida para a coleção de final de ano da Kryolo Carioca em homenagem ao orixá. “Não tem como você falar de cultura preta sem falar em ancestralidade. É nossa vida, nossa energia” diz o estilista que é candomblecista. Nos desfiles da marca, além das roupas, o público conhece a narrativa que motivou a coleção.“Consigo fazer com que todos saiam dali com outro pensamento sobre aquela cultura, que por muitas vezes é vista de forma demonizada. Na passarela, mostro que a cultura afro é uma força da natureza”, explica.
Segundo Luís, quem consome moda atualmente quer mais do que uma roupa bonita. “Hoje, no mercado da moda, vende-se muito mais a história do que a roupa”, afirma o estilista. Embora tenha um olhar afrocentrado, Luís afirma que sua loja é para todos. “O barato disso tudo é que as pessoas entenderam que não é uma marca que vende só para o povo preto, é uma marca que enaltece a cultura afro.”

Costurando caminhos em meio aos desafios de empreender
Quando o assunto é empreender, tanto Márcio quanto Luís contam histórias de persistência. Ambos acumulam diversas funções em seus negócios e enfrentaram muitas dificuldades, especialmente na pandemia, mas se reinventaram.. “Se você for esperar as condições ideais, não sai do lugar. A dificuldade é algo que sempre me acompanhou. Tudo que eu construí foi pautado no meu suor, nunca tive alguém que me ajudasse. Sou um cara que vem de uma família pobre e venceu na vida”, afirma Luís.
Já Márcio é mais cauteloso e considera fundamental ter planejamento e controle do negócio. Diz que empreender envolve desafios variados, de gestão da equipe a conhecimento da carga tributária, além, claro, de entender a concorrência das plataformas online. Mesmo assim, com 12 anos de história, sua loja já superou muitas fases difíceis: “Ainda não fiquei rico, mas consigo sobreviver bem”, afirma o criador da Surton.
Viver da moda é um plano para ambos, mas Luís mira alto: “Meu sonho é dominar o mundo, o que eu conquistei até agora não é suficiente para a minha mente, as minhas ideias. Eu penso muito alto, quero uma rede de lojas no Brasil inteiro e vou conseguir”, afirma.
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