Maré de memórias
- Larissa Moura
- 16 de jul.
- 5 min de leitura
No Museu da Maré, exposição resgata lembranças das transformações ambientais nas favelas e revela como comunidades resistem há décadas às mudanças do clima
Por Larissa Moura

No fundo da sala de exposições temporárias do Museu da Maré, na Zona Norte do Rio, uma senhora, moradora da Baixa do Sapateiro, uma das comunidades mais antigas da região, para diante de um banner onde se lê: “Antes, aqui era só mar, depois encheram tudo de terra e começaram a vir as casas…” Ela suspira e murmura: “Isso quem falou foi a minha tia. Mas podia ter sido eu.” Como tantos outros visitantes da mostra “Memória Climática das Favelas”, ela se reconhece nos relatos, fotos e objetos apresentados.
Inaugurada em maio, a mostra é resultado do projeto Memória Climática das Favelas, que promoveu uma série de rodas de conversa realizadas em dez favelas do Rio de Janeiro entre 2023 e 2024. Mais do que um inventário de catástrofes ambientais ou uma denúncia dos efeitos do colapso climático, a exposição é uma convocatória à lembrança — das casas de palafita, das cheias, dos banhos de chuva, dos manguezais soterrados, das árvores que deixaram de existir para dar lugar ao concreto. Memórias sobre como o tempo se transformou — e como as favelas, há décadas, vêm tentando resistir ao que os especialistas só agora decidiram chamar de "crise climática".

A primeira roda de conversa aconteceu justamente no Museu da Maré, e não foi por acaso. Marli Damascena, coordenadora do espaço e moradora do Morro do Timbau, participou de toda a articulação. “O museu sempre valorizou a memória e a identidade dos moradores, e participar dessas rodas foi algo muito importante”, diz. “O tema das mudanças climáticas já vem sendo falado há algum tempo, e nessa roda as pessoas conseguiram lembrar, compartilhar e reconstruir essas memórias. A Maré, desde a década de 1940 e 1950 até hoje, passou por muitas mudanças: o aterro do mar e o corte das árvores. Tudo isso foi voltando à tona através das falas.”
A exposição é uma realização da Rede Favela Sustentável (RFS), em parceria com museus comunitários, técnicos e mobilizadores locais. Theresa Williamson, fundadora da Comunidades Catalisadoras (ComCat) e coordenadora da RFS, destaca a importância de reconhecer as favelas como espaços de soluções. “As favelas são frequentemente vistas apenas como problemas, mas elas têm uma longa história de inovação e resiliência. A exposição busca mostrar como essas comunidades já enfrentam os impactos das mudanças climáticas há décadas e desenvolvem estratégias próprias para lidar com eles”, afirma.

No caso da Maré, a mobilização veio do próprio museu, com sua equipe formada por moradores de diferentes comunidades. “Cada um foi indicando nomes de moradores mais antigos, de diferentes lugares. Eu sou do Timbau, mas temos gente da Baixa, da Nova Holanda, do Parque Maré… E todos ajudaram a convidar”, conta a coordenadora do espaço cultural. “As pessoas aceitaram muito bem e participaram com força! Foi uma roda muito potente, com falas emocionantes e presença significativa da comunidade.”
O resultado está pendurado em banners, espalhado em vídeos temáticos, fixado em uma linha do tempo e iluminado em um “poço de memórias” que guarda cerca de 265 fotografias. Uma das salas da exposição simula um ambiente doméstico alagado, como uma casa que acabou de enfrentar a subida da maré ou uma tempestade intensa. É um ambiente visual, mas também emocional. Quem entra sai mexido. “Foram muitas falas potentes”, diz Marli. “Cada um lembrando de como era, do que mudou. Aquelas memórias ali realmente tocam quem lê.”
Gabriel Nunes, pesquisador do Dicionário de Favelas Marielle Franco, esteve presente no lançamento. Para ele, a exposição evidencia algo que os dados oficiais costumam apagar: a centralidade das favelas nas discussões ambientais. “Mostra a força da coletividade que vem das favelas, e especialmente que o tema das mudanças climáticas já vem afetando esses territórios há muito tempo”, afirma. “Mesmo com a ausência de políticas públicas, os moradores e organizações desses espaços vêm criando estratégias para resistir e lutar por justiça climática.”
No dia da abertura da exposição, apresentações teatrais encenadas por jovens da comunidade misturaram humor, denúncia e memória. Em uma das cenas, dois personagens discutiam como sobreviver aos alagamentos: colocavam os móveis sobre tijolos, esvaziavam baldes no meio da casa e tentavam salvar galinhas. Entre uma piada e outra, a plateia ria. Mas no fundo dos olhos, um certo reconhecimento pesava. “Foi um momento muito especial”, diz Gabriel. “As peças refletiam sobre as mudanças climáticas, que atingem mais gravemente as populações mais vulneráveis, e também traziam um pouco das memórias das favelas, como as casas de palafita da Maré.”
A exposição está prevista para circular por outras comunidades e instituições nos próximos meses. Há negociações com escolas de Acari, Rio das Pedras e Cidade de Deus, além de parcerias com a Fiocruz, a UFF, a Câmara dos Vereadores e até mesmo o Congresso Nacional. Uma possibilidade em aberto é levá-la à COP 30, que ocorrerá em novembro em Belém do Pará.

Enquanto isso, a mostra ocupa com vigor a galeria temporária do Museu da Maré. Visitantes atravessam a exposição permanente “A Maré em Doze Tempos” e, ao final, desembocam no espaço das memórias climáticas. “As pessoas chegam lá, veem os banners, leem as histórias… Moradores, principalmente, se emocionam. Lembram, reconhecem situações: ‘Isso que fulano está falando, eu vivi também!’”, diz Marli. “Tem uma linha do tempo com os dez territórios da Maré, e cada um conta sua história ali.”
Desde sua fundação, o museu tem um espaço fixo dedicado ao futuro. “Conforme os temas atuais surgem — como agora, com as mudanças climáticas — o museu se atualiza, cria parcerias, envolve jovens em oficinas, cuida da horta comunitária…”, explica Marli. “Tudo isso é parte do projeto maior, que une memória, meio ambiente e mobilização popular.”
No fim da visita, uma parede convida o público a registrar suas próprias memórias climáticas. Um jovem escreve: “Lembro da primeira vez que a chuva carregou minha mochila.” Ao lado, uma senhora rabisca: “A água vinha até o joelho. Era preciso pegar as crianças no colo.”

Entre lembranças e enchentes, o que se costura na exposição não é só o passado. É a urgência de dar nome — e rosto — ao que já se vive nas bordas da cidade há muito tempo. O nome pode ser crise climática, mas quem vive na Maré já chamava de outro jeito: tempestade, enchente, maré cheia, luta.
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