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Na cadeira de rodas, 2 km são uma batalha

Atualizado: 9 de abr.

Barreiras da mobilidade urbana ameaçam inclusão de pessoas com deficiência no Rio


Por Ana Beatriz Dias, Gabriel Amaro e Nicole Mendes

Maria Isabel da Silva Miranda, de 8 anos. Foto: Ana Beatriz Dias

Maria Isabel da Silva Miranda, uma menina de 8 anos, se despede da mãe na porta de casa, preparando-se para mais um dia de escola. Para ela, que precisa de uma cadeira de rodas para se locomover, um percurso de 20 minutos até o colégio pode parecer uma eternidade. Embora Maria esteja sempre sorrindo e cheia de energia, sua jornada não é como a de outras crianças.


É meio-dia em uma ensolarada tarde do dia 19 de junho em Santa Cruz, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, onde ela mora. O asfalto quente e irregular nas ruas do conjunto habitacional onde Maria vive esconde armadilhas para uma criança em uma cadeira de rodas. O caminho até a escola, apesar de curto, é marcado por muitos desafios: calçadas irregulares, lixo despejado de maneira incorreta, quebra-molas exorbitantemente altos – tudo converge para transformar em uma aventura arriscada o que deveria ser apenas uma jornada rotineira. Flávio Luiz Martins é amigo da família e fica responsável por levar Maria à escola, pois a mãe sofre com fortes dores na coluna, o que a impede de empurrar a cadeira, e o pai trabalha durante o dia.


Um ponto do percurso é particularmente difícil: uma ponte sobre um valão com uma calçada alta. Flávio precisa fazer malabarismos para levantar a cadeira de Maria e, em seguida, empurrá-la com força. Cada barreira ultrapassada é uma vitória, mas a ausência de rampas adequadas torna a viagem exaustiva e potencialmente perigosa.


A cadeira de Maria já mostra sinais de desgaste – ela usa o mesmo equipamento desde os 2 anos de idade e ele não é mais adequado para seu corpo em crescimento. De acordo com sua mãe, Keila Coelho da Silva Miranda e Silva, a cadeira que Maria precisa custa em média R$ 2 mil e, no momento, a família não tem condições de comprá-la. Apesar disso, Maria sonha com a possibilidade de ir à escola sozinha, como muitas crianças de sua idade.


Flávio levanta a cadeira de rodas de Maria. Foto: Ana Beatriz Dias

De acordo com uma pesquisa realizada pelo Instituto Pereira Passos (IPP) em 2018, aproximadamente 1,5 milhão de habitantes da cidade do Rio de Janeiro sofrem de algum tipo de deficiência ou mobilidade reduzida. Isso representa cerca de 24% da população total da cidade, que é de 6,2 milhões de pessoas, segundo o Censo de 2022. O Brasil tem 18,6 milhões de PCDs, 8,9% da população a partir de dois anos de idade, de acordo com dados da Pnad Contínua 2022, do IBGE.


Maria vive com múltiplas condições de saúde que vão além de sua limitação de mobilidade. Ela nasceu com espinha bífida, uma má-formação congênita na coluna que afeta sua locomoção e a capacidade de controlar funções básicas como ir ao banheiro, o que faz com que ela precise de fraldas. Além disso, sofre de hidrocefalia, uma acumulação de líquido no cérebro que causa dores de cabeça intensas e inchaço cerebral. O quadro não tem cura, mas é controlável.


As batalhas não se restringem ao físico – há também lutas emocionais constantes que mãe e filha travam. “As pessoas julgam muito. Eu saía com ela de madrugada pra levá-la ao hospital e ficavam falando ‘uma hora dessas com a criança na rua, é só uma bebê’, mas não sabiam o que nós estávamos fazendo ali às três, quatro horas da manhã”, relembra Keila, que precisava sair de casa com Maria antes do amanhecer, devido à distância de sua casa, em Santa Cruz, até o Hospital Universitário Pedro Ernesto, no Maracanã.

A mãe se viu forçada a abandonar uma série de atividades e lugares que gostava, como as visitas ao Bioparque (antigo zoológico), por causa das dificuldades de locomoção com sua filha. Para Keila, encontrar ambientes que acomodam pessoas com deficiência deixou de ser opção e se tornou exigência. A luta da mãe vai além da escolha de destinos; começa muito antes, no complicado processo de garantir um transporte adequado e seguro para sua filha.


Ela conta que motoristas de aplicativos frequentemente cancelam corridas ao perceberem que precisam acomodar uma cadeira de rodas. Em um episódio na estação de Santa Cruz, Maria quase foi derrubada de sua cadeira em meio à aglomeração de um trem lotado. Keila, que sofre de problemas de coluna, enfrenta dificuldades adicionais para carregar a filha e a cadeira nas escadas da estação. Enquanto a mãe batalhava contra o peso e o equilíbrio, os guardas ficaram indiferentes. O resultado foi uma situação arriscada em que Keila quase perdeu o equilíbrio e escorregou, colocando tanto a sua saúde quanto a de Maria em perigo.


Escadaria da estação de trem de Santa Cruz, na Zona Oeste do Rio. Foto: Ana Beatriz Dias

Ao pensar no futuro, Keila teme que a filha continue enfrentando as mesmas – ou piores – dificuldades de hoje. Porém, ela tem esperança e acredita na mudança: espera que a população se torne mais consciente das necessidades das pessoas com deficiência. “Precisa de mais amor ao próximo. Eu queria que tivesse mais inclusão em tudo, que a dor do próximo pudesse ser entendida”, afirma Keila.


Evandro Pereira dos Santos. Foto: Ana Beatriz Dias

Em Santa Cruz, também na Zona Oeste, Evandro Pereira dos Santos, 79 anos, aposentado e deficiente visual, vive uma rotina restrita. Diante de ruas esburacadas e calçadas irregulares, ele raramente sai de casa sem assistência. Evandro conta com a ajuda de Alexandre Carvalho Silva, seu vizinho e amigo, para percorrer trajetos rotineiros. Apesar de se sentir grato, gostaria de ser independente.


Após perder a visão devido a complicações de diabetes e de uma cirurgia de catarata, ele se viu confinado em casa. Desistiu de sair por se sentir um “fardo” para os outros. “Não faço programação para sair. O único local que me permitia ir era para a casa da minha filha, pois tinha quem me buscasse e levasse. Me incomodo em dar trabalho para os outros.” Evandro pesquisou a possibilidade de ter um cachorro-guia, mas o custo era excessivo.


O aposentado não hesitou em expressar o que, em sua opinião, poderia transformar a vida de pessoas como ele: mais consideração às necessidades das PCDs, que muitas vezes se sentem esquecidas e isoladas. Ele compara sua situação com a de seu amigo Claudeci Xavier da Silva, que, apesar de possuir apenas 20% de visão em um dos olhos, tem uma mobilidade muito melhor. Claudeci foi aluno do curso para deficientes visuais do Instituto Benjamin Constant, na Urca, e isso fez toda a diferença. Evandro enfrenta obstáculos até mesmo dentro de casa e acredita que iniciativas como essa deveriam partir do poder público. “O cachorro-guia, um curso no Instituto, ou ainda algo mais, me possibilitaria ir sozinho até a esquina da minha rua, à igreja, à clínica." Para ele, mais do que sobreviver, as pessoas com deficiência precisam de recursos para viver com dignidade.


Jason Pires Lima. Foto: Ana Beatriz Dias

Aos 63 anos, Jason Pires Lima também vive uma vida marcada por desafios de acessibilidade. Aposentado e paraplégico devido a um Acidente Vascular Cerebral (AVC), Jason enfrenta barreiras diárias que vão além de sua paralisia na mão esquerda. Sem conseguir manobrar sua cadeira de rodas sozinho, ele conta com a assistência de sua irmã, Jussara Lima Pires de Souza. A falta de um centro de reabilitação acessível e o alto custo de uma cadeira elétrica - avaliado em R$ 8 mil – só amplificam seu sentimento de exclusão.


Jason acredita que o governo deveria dar mais atenção às necessidades e segurança das pessoas com deficiência, garantindo oportunidades iguais para todos. Ele destaca que alguns cadeirantes têm acesso à fisioterapia e conseguem voltar a andar ou, no mínimo, ter uma vida menos sofrida. Com a fisioterapia, Jason acredita que poderia retomar algumas atividades - mas ele não conseguiu fazer a reabilitação pelo SUS, nem consegue pagar as sessões particulares. Para ajudar em suas tarefas domésticas, conta apenas com a mão direita e a criatividade para encontrar soluções para os problemas cotidianos; por exemplo, uma vara de madeira que deixa ao lado de sua cama para acender e apagar a luz ou abrir a janela sem precisar se levantar.


Saudoso de sua vida antes de se tornar paraplégico, Jason recorda que trabalhava com eletricidade, obras e montagem de móveis. Entretanto, seu desejo de trabalhar é frustrado pelos problemas físicos existentes na cidade. Em termos de políticas públicas, ele acredita que há muito a ser feito: desde uma educação inclusiva até melhorias em infraestrutura de transporte e saúde. Embora haja um centro de reabilitação em seu bairro, sua tentativa de acesso foi em vão. A assistência médica em casa também é inconsistente, o que faz Jason questionar a viabilidade da saúde para PCDs. “E quem não tem ninguém? Como essa pessoa faz para ir ao médico, ao banco, ao mercado? Como faz suas coisas sem ajuda?’’, questiona.


Numa consulta médica em Campo Grande, Zona Oeste do Rio, em um prédio sem rampas, a médica de um serviço público se recusou a descer as escadas para atendê-lo, situação que só foi amenizada pela ajuda voluntária de funcionários do prédio. Jason descreveu a atitude da médica como "falta de humanidade", destacando que, como funcionária pública, ela deveria ter tido mais compaixão e ter descido para atendê-lo. “Eu precisava de atendimento ali embaixo, mas ela se recusou a descer. Por sorte, os funcionários estavam ali para nos ajudar", relembra. Jason também relata que, nas vezes em que precisa ir à clínica, os médicos raramente o cumprimentam, agindo como se ele não estivesse ali ou como se estivesse implorando por consultas. Para Jason, esses casos realçam a necessidade urgente de tornar espaços públicos e serviços de saúde mais acessíveis.


Elevador interditado na estação de trem de Magalhães Bastos, na Zona Oeste do Rio. Foto: Gabriel Amaro

Marcos Vinícius Silva Maia Santos, geógrafo pesquisador em mobilidade urbana e acessibilidade do Núcleo de Estudos de Geografia Fluminense da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), explica que a falta de acessibilidade é uma forma de segregar pessoas com deficiência. “É uma forma injusta de você tratar as pessoas, tratar humanos de forma diferente. É limitar o acesso a educação, saúde, cultura e lazer”. Para Santos, é preciso que os cariocas também façam sua parte para que a cidade se torne mais acessível não somente para PCDs, mas para todos. Atitudes aparentemente simples, como denunciar irregularidades ou manter as calçadas livres – sem obstruções como vasos grandes, árvores no meio do caminho, buracos ou carros – são ações que democratizam a cidade. “A comunidade precisa ser mais ativa em relação a isso. Utilizar a máquina pública a seu favor.”


Sobre como melhorar a acessibilidade em transportes públicos, Santos reconhece que “é um desafio bem complicado” e explica que toda a frota de ônibus deveria ser revista, uma vez que as carrocerias se assemelham muito às de caminhões, não sendo acessíveis para idosos e pessoas com problemas de mobilidade. “O próprio processo de escolha de carroceria dos ônibus no Brasil já foi cruel com a acessibilidade”, afirma. A implantação de ônibus com carroceria baixa, nivelados com a calçada, como ocorreu na cidade de Niterói, seria uma forma de amenizar esses problemas. Quanto aos trens, o pesquisador ressalta o problema das lacunas entre as plataformas e os vagões, que representam obstáculos para PCDs e idosos. Além disso, o acesso às estações é muitas vezes prejudicado pelo excesso de escadas e pela falta de elevadores. “Para termos acessibilidade, seria preciso mudar totalmente a infraestrutura de transporte público do Rio de Janeiro, principalmente das estações de trem.”


Distância entre o trem e a plataforma na estação de Marechal Hermes, na Zona Norte do Rio. Foto: Ana Beatriz Dias

De janeiro de 2021 até junho de 2023, a Prefeitura do Rio de Janeiro registrou 8.260 denúncias relacionadas a buracos e 12.389 reclamações sobre obstáculos físicos em calçadas. Enquanto isso, nos últimos cinco anos, foram emitidas mais de 19 mil multas relacionadas à falta de acessibilidade. Segundo a Coordenadoria Geral de Engenharia e Conservação, essas multas também englobam danos na pavimentação gerados por concessionárias. Em relação às melhorias, em 2023 foram construídas 61 novas rampas e reparados cerca de 14 mil m² de calçadas. A cidade viu a construção de 352 novas rampas e o reparo de 226 mil m² de calçadas em um recorte de cinco anos. Desde 2022, a Prefeitura destinou aproximadamente R$ 52,2 milhões em contratos para a conservação e manutenção de passeios.


Santos acredita que a falta de fiscalização é o principal problema que impede a garantia dos direitos das PCDs e que a população em geral também precisa se mobilizar para alterar este cenário. “Falta fiscalização, investimento e vontade pública não só das instituições, mas do povo mesmo. Falta a população geral tomar as dores das pessoas com deficiência.”

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