Na Rocinha, turismo produz renda e muda vida de moradores
- João Pedro Seraphim

- 14 de nov.
- 6 min de leitura
Comunidade é 13° atrativo turístico mais visitado da cidade
Por João Pedro Serafim

Na saída da estação de metrô São Conrado, no Rio de Janeiro, um vendedor de bebidas e doces exibe uma placa: “Welcome” e “Always come back”. A poucos metros, na Estrada da Gávea, principal via de acesso à Rocinha, turistas com camisas da Seleção Brasileira e óculos escuros formam fila no ponto de mototáxi. O destino é o Mirante da Rocinha, conhecido pela vista do Cristo Redentor, Lagoa Rodrigo de Freitas e de grande parte da Zona Sul. Nele, um extenso muro de grafites feitos por artistas locais apresenta a história da comunidade, enquanto comerciantes vendem quadros, pinturas e pulseiras artesanais. Mais do que uma bela vista, o cenário movimentado é, também, um fiel retrato do impacto do turismo na vida dos moradores da comunidade.
Em 2024, segundo o Anuário de Turismo do Rio de Janeiro, a Rocinha recebeu 1.891.665 visitantes, sendo 45.644 estrangeiros e 171.933 brasileiros. Com esses números, a comunidade se consolidou como o 13º ponto turístico mais visitado do Rio, superando o Cristo Redentor (689.753 visitantes) e o Vidigal (1.795.243), Todo esse crescimento é impulsionado principalmente pelo turismo comunitário, liderado por moradores que, com toda sua bagagem e vivências, oferecem uma experiência de imersão cultural. “No Cristo, o turista tira uma foto e pronto. Na Rocinha, ele vive nossa realidade e conhece nossa simpatia”, diz Fellipe Mendes, guia local há três anos e meio.
Essa conexão faz do tour pela Rocinha um ponto alto para visitantes e transforma a vida de moradores. Fellipe é um exemplo da importância da atividade: era entregador de quentinhas, porém ficou impossibilitado de trabalhar depois de sofrer um acidente de trânsito. Após um tempo parado, surgiu a oportunidade de ser motoguia no Mirante. “Trabalhei um ano e três meses com o Moto Tour. Eu tinha uma troca com os clientes, porque sou curioso. Sempre perguntava como era tal lugar, isso me ajudou muito. Então, com três meses de Moto Tour, comecei a fazer o curso de guia turístico”, explica.

Com 72.021 habitantes, segundo o Censo de 2022 do IBGE, a Rocinha é a favela com maior densidade demográfica do Rio. A comunidade é um mosaico de vielas, becos apertados, casinhas coloridas e escadarias íngremes. Apesar dos desafios cotidianos, como lixões, esgotos a céu aberto, o perigo de construções irregulares e a convivência inevitável com grupos criminosos, a comunidade supera barreiras socioculturais. O turismo comunitário favorece o desenvolvimento sustentável e a busca por protagonismo local, trazendo um sentimento de autonomia, pertencimento e liderança para os habitantes e agentes locais.
As lojas ao lado do Mirante são o retrato dessa economia sustentável. Há 10 anos, ali só existiam grades de proteção, e os artistas precisavam expor suas obras pelo chão. Para atrair pessoas e fortalecer a economia local, o Mirante construiu espaços para abrigar esses trabalhadores, beneficiando pessoas como Raquel Freitas, artista de 45 anos, natural de São Paulo e que vive na comunidade há mais de 33 anos. Ela, que já foi diarista, começou a pintar aos 22 anos, incentivada por uma amiga. “Antes do Mirante, os clientes eram 90% estrangeiros, e hoje temos muitos brasileiros que querem conhecer o restaurante”, afirma a pintora sobre a importância do espaço. Ela destaca o relacionamento entre os moradores e visitantes como forma de eliminar estereótipos que muitos turistas trazem consigo ao conhecer a comunidade: “Muitos perguntam como é viver na Rocinha, como são as dificuldades. Nós sempre tiramos o peso, porque a maioria deles vem com a ideia de que vai encontrar aqui dentro apenas fome e miséria”, relata.
Adriano da Silva, 34 anos, também vive do turismo. Ele começou a pintar aos 10 anos no projeto social da comunidade, o Comando das Cores. Seus quadros são vendidos a preços que vão de R$80 a R$600. Apesar das vendas serem bastante variáveis, Adriano consegue sustentar sua família com o fruto do trabalho no Mirante. “O turismo mudou minha vida. Eu consegui adquirir dois imóveis, uma moto e dar uma estabilidade para minha família”. O trabalho de Adriano já o colocou em destaque até mesmo nas telas das TVs brasileiras, quando participou de uma reportagem que falava sobre o turismo na Rocinha.

A abordagem comunitária é reforçada por iniciativas locais, como o aplicativo Na Favela Turismo, que conecta visitantes a guias. Hoje a comunidade tem cerca de mil pessoas atuando como guias, sendo 189 credenciados para circular entre Rocinha e Vidigal. O app funciona da seguinte forma: para solicitar o credenciamento, a pessoa precisa liderar pelo menos 50 tours pela comunidade. Além disso, o guia principal tem direito a fazer passeios com até nove pessoas. Após esse número, ele é obrigado a contratar um auxiliar. Desse modo, surgem oportunidades de somar cada vez mais agentes sociais ao projeto.“Nós não temos restrição nenhuma. Quanto mais gente participar melhor, porque são pessoas da Rocinha. Acaba gerando oportunidades”, relata Fellipe.
Desconstruindo estereótipos
A Rocinha surgiu num contexto de migrações que ocorreram a partir de 1950. Inicialmente, sua população era de maioria nordestina. A abertura do Túnel Rebouças, na década de 1970, trouxe ainda mais pessoas em busca de mudanças de vida e trabalho na região. Entretanto, ao longo do crescimento da comunidade, foram muitas as ocasiões em que a mídia reforçou estereótipos da comunidade, construindo narrativas limitadas que associam a favela e seus moradores à criminalidade. O turismo comunitário busca, sobretudo, transformar essa narrativa, tirando o protagonismo das grandes agências, dando voz aos moradores para que contem suas próprias histórias. Antes das novas iniciativas eram comuns os chamados “deep tours”, conhecidos também como “Turismo Safari”. Nesse estilo de “excursão”, os turistas passeavam pela rua principal da comunidade dentro de um jipe, mas sem conhecer a cultura local ou entrar em contato direto com os moradores. Esse tipo de turismo é considerado extremamente desrespeitoso e gera muitas críticas por parte da população local pois, ao remontar a lógica de passeios em safaris, desumaniza os habitantes da comunidade.
Segundo o Mapa Cultural da Rocinha, feito em 2024 pelo jornal comunitário Fala Roça em parceria com o Programa de Fomento Carioca (Foca), na Rocinha há mais de 200 iniciativas culturais locais. Dentre elas, estão a Biblioteca Parque da Rocinha, o Museu Sankofa e, até mesmo, visitas internas a casas de moradores que, de forma hospitaleira, oferecem vistas incríveis da comunidade. “O turismo dá uma certa visibilidade para coisas boas que estão acontecendo na favela, para projetar pessoas como os que atendem alunos na comunidade, os restaurantes que se tornam referência no Rio de Janeiro, como Mirante Rocinha, que contratam vários moradores”, relata Iata Anderson, geógrafo e gerente da Favela Inc, plataforma que mapeia iniciativas sociais em territórios vulneráveis.
No entanto, o aumento do fluxo turístico também traz desafios, como a exploração que ocorre quando turistas buscam apenas o "diferente" sem qualquer senso crítico, respeito ou intenção de compreender a realidade local. Situação vivenciada por Iata, que descreve experiências com turistas que apenas queriam subir de mototáxi ou van para vivenciar o trânsito da comunidade. Ele explica a importância do próprio guia destacar as causas desses problemas, explicando questões como a falta de investimento em infraestrutura e a ausência do Estado.
Outra grande barreira do turismo nas comunidades é a falta de incentivo e apoio estatal. Muitas vezes as comunidades são apagadas dos mapas turísticos da Riotur– as favelas aparecem como espaços vazios, sem presença cultural, enquanto outros espaços do Rio aparecem com suas atrações turísticas. “A Rocinha investe na própria comunidade. O projeto da nossa favela é que nós mesmos lutamos para que esse projeto aconteça, e o turismo também é uma boa parte nessa questão”, diz o guia Guinness Valentim, que cita iniciativas financiadas pela Associação de Moradores, como corrimãos em escadarias, e a doação de cestas básicas por turistas sensibilizados com a realidade da população local.

Iata Anderson sonha com a criação de um laboratório de turismo, conectando a favela, universidades e empreendedores para formar guias e oferecer cursos de idiomas. “O idioma é uma barreira. Um laboratório ajudaria a preparar moradores e distribuir melhor a renda”, explica. A artista plástica Raquel também concorda que ainda há mais para ser feito e sonha com uma escolinha de artes para novos artistas, já que os materiais são caros. “Seria incrível apoiar quem quer começar”, diz. Parcerias com universidades como a Uerj, que oferece cursos de turismo, línguas estrangeiras e história do Rio, também são promissoras e fundamentais para capacitar moradores. “Queremos um turismo que valorize nossa identidade e gere empregos”, resume Fellipe.
O turismo comunitário na Rocinha está reescrevendo a narrativa e realidade da favela. Longe de ser apenas um lugar de carências, ela se revela um espaço de grande potencial econômico e empreendedorismo. "A mídia vende negatividade, mas nós mostramos o que temos de melhor", explica Fellipe. Para os moradores, o turismo não é apenas uma oportunidade de renda, mas de orgulho e conexão com o mundo. Com consciência, responsabilidade e investimento na formação local, a Rocinha cresce e se consolida com um modelo de turismo sustentável que valoriza sua identidade, reivindica mudanças, gera empregos e potencializa novas perspectivas.
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