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Beatriz Araujo e Everton Victor

Natal sem respostas

Mães e parentes de desaparecidos se reúnem em ato na Cinelândia e cobram investigação 


Edileusa Alves ajuda a montar na Cinelândia a árvore de Natal com fotos de pessoas desaparecidas no Rio: um deles é José Matheus Alves, filho dela, desaparecido há 11 meses. Foto: Beatriz Araujo

Dezembro costuma ser o mês em que as famílias se unem para festejar e encontrar pessoas queridas. Para famílias que convivem com a ausência de um ente desaparecido, porém, o fim de ano aumenta o peso da saudade e da incerteza. 


“Um dia ele me disse: ‘Mãe, vou sair, não sei se eu volto’. Na última vez que o vi, ele estava lavando um chinelo branco, havaiana”. Desde então, os Natais de Ana Lúcia Pedrosa (57) são marcados pela ausência do filho Marlon Silva, desaparecido em Cosmos, Zona Oeste do Rio, no dia 1° de outubro de 2014, com 18 anos. Sua memória, seu jeito de ser e sua falta são relembrados diariamente por Ana. “A casa ficou muito vazia. Ele era muito festivo, sempre tentava me agradar, sempre que acontecia alguma coisa comigo ele tomava a frente para me ajudar.”


Ana Lúcia Pedrosa, segurando a imagem de seu filho, Marlon Silva, desaparecido em Cosmos, Zona Oeste do Rio. Foto: Beatriz Araujo

Apesar da incerteza e dos anos que se passaram, ela mantém a esperança de encontrar Marlon. “Mesmo que digam que ele não vai aparecer mais, que já deram sumiço, eu ainda creio. Precisamos saber, temos que ter uma explicação, aonde ele foi parar?”, questiona.


Para cobrar respostas e ações sobre os casos de desaparecimento não resolvidos, as ONGs Mães Braços Fortes e Mães Virtuosas se reuniram na manhã do dia 13 de dezembro nas escadarias da Câmara dos Vereadores, na Cinelândia, Centro do Rio. Nas portas da sede do Poder Legislativo da cidade, montaram uma árvore de Natal decorada com fotos de seus filhos desaparecidos. Também expuseram banners, panfletos e cartazes com imagens de pessoas desaparecidas. 


Edileusa, segurando o CD com a foto do filho. Foto: Julia Lima

Entre muitos rostos está o de José Matheus Alves, desaparecido desde 13 de fevereiro de 2024, com 23 anos. Sua mãe, Edileusa Alves (56), conta que estava com o filho em uma chácara em Resende, Sudoeste fluminense, quando notou seu sumiço. Apesar da presença da polícia e da Cruz Vermelha no local, Edileusa afirma que as autoridades não realizaram a busca de seu filho. Já faz 11 meses que ela não tem  notícias do paradeiro do rapaz.


Autista grau 1 e diagnosticado com depressão, José Matheus fazia tratamento médico em Resende. Emocionada, Edileusa compartilha os sonhos de seu filho. “Ele gosta de ciência, iria fazer um curso de informática avançada empresarial. Ele é um garoto alegre, gosta de conversar, o sonho dele era se tornar um gestor empresarial”. 


Com o passar do tempo, a dor se torna ainda mais intensa. Perto de viver o primeiro Natal desde o desaparecimento de seu filho, Edileusa diz nunca ter vivido uma dor desse tipo. “Eu não vivo. Estou comendo e dormindo entre lágrimas. Nunca vivi nada parecido e não desejo isso para nenhuma mãe”. Olhando para a foto de José Matheus, relembra uma viagem que fez com o filho para Paraty. “Neste dia a minha irmã convenceu ele a tirar uma foto sorrindo, porque ele não sorria, e foi um dia muito feliz em que eu vi que ele estava realmente se recuperando, dando oportunidade ao tratamento e oportunidade de ser jovem”.


À frente, o banner de José Matheus desaparecido e Edileuza, sua mãe, ao fundo nas escadarias da sede do Poder Legislativo do Rio. Foto: Beatriz Araujo

Crianças, jovens e adultos, moradores de diferentes regiões da cidade, com diferentes circunstâncias de desaparecimentos, compõem a alta estatística de desaparecidos no estado do Rio de Janeiro. Ao todo foram 5.815 pessoas desaparecidas em 2023, de acordo com o Anuário da Segurança Pública de 2024. São 16 indivíduos - pai, filho, irmão de alguém - que somem por dia no estado do Rio de Janeiro.


A taxa no Brasil é em média 39,5 a cada 100.000 habitantes, um total de 80.317 pessoas em 2023. Apesar do alto índice de desaparecidos no país, um outro dado alimenta diariamente as esperanças destas mães que ainda anseiam por achar seus filhos: o índice de pessoas localizadas. Em 2023, foram 2.190 no Rio de Janeiro e 52.970 em todo Brasil, ainda de acordo com o Anuário.


Abandonadas pelo Estado, pela Justiça e invisíveis diante de uma série de direitos básicos garantidos por leis que amparam a questão do desaparecimento, as mães encontram uma na outra a possibilidade de juntas, sobreviverem mais um dia a dor de não terem seus filhos. Rogéria Alves (67), uma das fundadoras do movimento ‘Mães Braços Fortes’, conta que os atos públicos realizados por familiares de pessoas desaparecidas se tornam uma forma de resistência


Rogéria Alves, uma das fundadoras da ONG Mães Braços Fortes. Foto: Julia Lima

Para ela, que carrega há 15 anos a ausência da filha Vitória Claudiano, desaparecida em 2009 com apenas 11 anos, essas manifestações não são apenas um pedido de atenção, mas também um grito de dor compartilhada. “A importância é trazer para as pessoas a dor que nós sentimos, o que nós sofremos, que o desaparecimento existe e dói”.


A estatística para Rogéria vai muito além dos números. Entre os 5815 casos de desaparecidos no estado, está o de sua filha, uma garota amorosa e cheia de sonhos. “Meu guarda-roupa era todo escrito, ela pegava o giz e escrevia ‘eu te amo’, ‘você é a melhor mãe do mundo’”, relembra. Todo mês, ela e outras mães se reúnem nas escadarias da Câmara dos Vereadores do Rio para apoiar umas às outras. Além de reivindicar respostas de onde estão seus filhos, estas reuniões fortalecem os laços entre quem compartilha uma dor profunda revivida diariamente por estas famílias.


O desamparo encontrado na Justiça


Carmen Lucia conta, emocionada, a história de Jefferson Gonçalves, seu filho desaparecido há 20 anos. Foto: Julia Lima

Carmen Lucia Gonçalves (53), moradora de Inhoaíba, Zona Oeste do Rio, conta que foi à delegacia, mas foi orientada a aguardar 24 horas para poder registrar o boletim de ocorrência depois que seu filho Jefferson desapareceu. Estas 24 horas nunca acabaram para Carmen, que há mais de 7.300 dias (20 anos) sobrevive sem nenhuma resposta de onde está seu filho. “Essas vinte e quatro horas estão me custando até hoje”. 


Jefferson Gonçalves, seu filho, desapareceu no dia 21 de agosto de 2004 com 10 anos, em Paciência, Zona Oeste do Rio. Neste dia, Carmen preparou uma grande surpresa para Jefferson, que desejava há alguns meses ter um videogame, algo que sua mãe juntava dinheiro com muito esforço para comprar. “Eu tinha recebido meu 13º, pedi à minha chefe para sair mais cedo para buscar ele na minha tia e levá-lo para comprar o videogame. Na realidade, eu queria fazer uma surpresa para meu filho. Quando eu cheguei, eu fui saber que ele saiu e não voltou, ele desapareceu naquele dia”, lamenta Carmen.


O abandono pelo Estado não está restrito ao caso de Carmen. Tatiana Ribeiro (31), mãe de Fernando Henrique, também sentiu o desamparo das autoridades quando buscou suporte na delegacia de sua cidade, Belford Roxo, na Baixada Fluminense. “Um dos policiais falou que a gente tinha que ir para casa relaxar, eles fizeram pouco caso, só porque é de favela. Não é porque a gente é negro, mora em favela, que nós somos bandidos. A gente merecia ser bem tratada numa delegacia, eles tinham que apoiar a gente ali. Era uma criança de 11 anos, como eu vou pra casa sabendo que meu filho está perdido, ou até morto?”, conta Tatiana, emocionada.


Fernando desapareceu no dia 27 de dezembro de 2020 junto de seus dois amigos, Lucas Matheus da Silva, de 8 anos, e Alexandre da Silva, de 10 anos, netos de Sílvia Regina (62), que também estava presente no ato realizado na Cinelândia. Ela relata que os meninos saíram para jogar bola no condomínio onde ela mora, mas que começou a estranhar a demora quando eles não retornaram para almoçar. “Começamos a rodar tudo,  fomos na delegacia, mandaram a gente voltar para casa porque tinha que esperar 24 horas para fazer o registro de ocorrência. Ficamos a noite toda procurando, quando amanheceu voltamos à delegacia, mas não deixaram registrar a ocorrência porque ainda não tinha feito 24 horas. A gente continuou na busca, e até hoje eu continuo nessa busca”.


Sílvia Regina, avó de Lucas Matheus da Silva e  Alexandre da Silva, desaparecidos desde 27 de dezembro de 2020. Foto: Julia Lima

Apesar da orientação feita pela polícia para Sílvia e Carmen, não é necessário aguardar 24 horas para registrar o desaparecimento de alguém, especialmente em casos que envolvem crianças e adolescentes. De acordo com a Lei 11.259 do Estatuto da Criança e do Adolescente, a investigação deve ser realizada imediatamente após os órgãos competentes serem notificados. Apesar desta lei não abranger adultos, não é impeditivo, nem obrigatório esperar as 24 horas. O Art. 3º da Lei 13.812/2019 considera “prioridade com caráter de urgência” investigações sobre desaparecidos. Se uma autoridade policial se recusar a registrar o Boletim de Ocorrência e realizar buscas, pode ser considerado crime de prevaricação.


O sonho de ser o último Natal sem seus filhos


Nas preparações para as celebrações de final de ano, Tatiana revive a saudade em gestos simples: comprar roupa para o filho. Ela lembra que Fernando adorava escolher suas roupas e cortar o cabelo. "É muito difícil", diz ela, "sempre que vou comprar para o irmão dele, sei que, se ele estivesse aqui, iria gostar." Tatiana compartilha seu maior desejo: encontrar Fernando e seus dois amigos, qualquer coisa que a ajude a encontrar uma resposta para o que aconteceu.


Rafael Santos segurando cartaz de Alexandre da Silva, seu primo desaparecido, e de seus dois colegas, Lucas Matheus da Silva e Fernando Henrique. Foto: Beatriz Araujo

Um sonho compartilhado também por Rafael Santos, de 10 anos. Com um panfleto  com a foto de seu primo Alexandre em sua mão, ele expressa a esperança de encontrar, mesmo que seja algo pequeno, como um “dedo ou uma parte do corpo” de seu primo, para ter algo que possa trazer um pouco de consolo. Luísa Vitória, de 9 anos, irmã de Lucas Matheus e prima de Alexandre, também fala da saudade profunda que sente e relembra do carinho e das brincadeiras. “Eu brincava muito com eles e não deixava ninguém bater no meu irmão e no meu primo, eu defendia eles e eles me defendiam. Meu sonho é eles voltarem algum dia”, conta esperançosa.


Luísa Vitória  com o cartaz de seu irmão Lucas Matheus da Silva nas escadarias da Câmara dos Vereadores do Rio. Foto: Beatriz Araujo

A falta de mais alguém na mesa de Natal é sentida por Rogéria. “Quando todos estão reunidos, na nossa mesa está faltando um, dentro da nossa casa está faltando um, e esse um para mim é muito importante, é um que trazia muita vida. Depois que a Vitória sumiu eu não tive mais Natal”. A vida em suspenso de todas essas famílias ouvidas pelo RAMPAS, apesar da dor, encontra na esperança uma força para seguir. Uma motivação une todas essas mães: de ser o último Natal sem seus filhos.


Se você tem informações que possam ajudar nas investigações dos casos mencionados ou conhecimento de outras situações de desaparecimento, entre em contato com as autoridades. A Delegacia de Descoberta de Paradeiros do Rio de Janeiro (DDPA) oferece canais diretos para denúncias e relatos.


Caso tenha um familiar desaparecido e ainda não tenha registrado o Boletim de Ocorrência, é possível realizar o procedimento em qualquer delegacia ou posto de atendimento da Polícia Civil, além do canal online disponível. A Defensoria Pública do Rio de Janeiro também disponibiliza uma cartilha informativa para orientar sobre os passos a serem seguidos no caso de desaparecimentos. O material pode ser acessado gratuitamente no site do órgão.








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