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Foto do escritorEverton Victor

“Sem meu filho eu vou morrendo aos poucos”

Atualizado: 12 de dez. de 2024

A dor do luto e a incerteza diária de famílias que sofrem com o desaparecimento de pessoas queridas


Vitória Claudiano, Fábio Pena e Natalina do Nascimento (da esquerda para a direita), todos desaparecidos no Rio de Janeiro. Foto: Acervo pessoal

Vitória Claudiano, Fábio Pena e Natalina do Nascimento (da esquerda para a direita), todos desaparecidos no Rio de Janeiro. Foto: Acervo pessoal


“Parece que tem um buraco, tipo areia movediça que a pessoa cai, ninguém vê, ninguém viu”. “Se a gente pudesse fazer sozinha, não procuraria a polícia”. “Sem meu filho, eu vou morrendo aos poucos”. 


Relatos assim são parte do sofrimento diário de mães que convivem com um luto perpétuo de não saberem onde estão seus filhos. Rogéria Alves, Maria Aparecida do Nascimento e Vânia Pena são mães de Vitória Claudiano, Natalina do Nascimento e Fábio Pena, todos desaparecidos no Rio de Janeiro. Em todo o Brasil foram registrados 80.317 desaparecimentos em 2023, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, uma taxa de 39,5 por 100 mil habitantes.


Entre dores, lamentos, falta de apoio e orientação da Justiça, essas mães ainda conseguem ter esperança de um dia poder reencontrar seus filhos. Elas contaram ao Rampas a história de seus filhos e falaram da luta para saber o que aconteceu com eles.


Natalina do Nascimento ao lado de sua mãe, Maria Aparecida do Nascimento (da esquerda para a direita). Foto: Acervo pessoal
Natalina do Nascimento ao lado de sua mãe, Maria Aparecida do Nascimento (da esquerda para a direita). Foto: Acervo pessoal

Natalina


Natalina do Nascimento desapareceu aos 13 anos, no dia 24 de junho de 2010, em Santíssimo, Zona Oeste do Rio. A mãe, Maria Aparecida do Nascimento, conta que sua filha levou uma de suas irmãs para a escola e, no caminho de volta, encontrou com ela (mãe) indo trabalhar e disse que queria comer pão. Foi à padaria, comprou o pão, levou para casa e passou no trabalho da mãe, um bar próximo. Ficou pouco tempo, pois Maria Aparecida não gostava que sua filha ficasse no bar.  Poucas horas depois sua mãe notou a falta da filha, e, perguntando, encontrava informações desencontradas sobre um suposto homem que estava com ela. Uns diziam que era um homem branco, outro que era negro. 


Natalina era uma menina caseira, segundo a mãe. Na rua em que morava, quase ninguém a conhecia, pois sua rotina era do colégio para casa. Desde pequena era estudiosa, adorava ler e escrever. No dia que sumiu, a diretora da escola ficou surpresa por ela não ter aparecido no colégio. “Um dia eu vou encontrar minha filha, jamais eu vou desistir, nunca!”.


Vitória

Bruno Alves (irmão), Rogéria Claudiano (mãe) e Vitória Claudiano (da esquerda para a direita). Foto: Acervo Pessoal
Bruno Alves (irmão), Rogéria Claudiano (mãe) e Vitória Claudiano (da esquerda para a direita). Foto: Acervo Pessoal

Vitória Claudiano, filha de Rogéria Alves, desapareceu em Irajá no dia 5 de junho de 2009, quando tinha apenas 11 anos. Sua mãe estava trabalhando e chegou em casa às 15 horas, um pouco mais cedo que o habitual. Sentiu falta da filha, que tinha saído por volta das 13h para levar o Riocard escolar de uma amiga - mas Vitória nunca chegou à casa dessa amiga. Essa colega afirmou que, naquele dia, não viu Vitória. No mesmo dia, uma outra amiga de Vitória viu a menina passando em frente a escola Tarsila do Amaral, na Rua Hannibal Porto, 451, também em Irajá. Para a mãe, essa amiga disse que viu Vitória passando com os braços cruzados ao lado de um homem e, quando gritou para falar com Vitória, ela olhou, mas o homem falou alguma coisa, e Vitória continuou andando de braços cruzados.


Retrato falado de como Vitória estaria em 2021. Foto: Acervo Pessoal
Retrato falado de como Vitória estaria em 2021. Foto: Acervo Pessoal

Rogéria conta que sua filha dividia dois grandes sonhos, ser médica e ser professora, o que a mãe sempre motivava. Fala da filha como uma menina carismática, atenta a tudo, além de amorosa e carinhosa. “É uma ferida tão grande que fica. São 15 anos, mas a gente ainda sente, não esquece”, lamenta a mãe. Recentemente, Rogéria teve uma nova pista - que preferiu não revelar - e se sente confiante que agora a investigação sobre o desaparecimento de sua filha avance, esperança que alimenta diariamente: “É o que me move”.


Fábio


O técnico da rede de telemarketing Claro, Fábio Pena, desapareceu no dia 11 de dezembro de 2022, aos 46 anos. Sua mãe, Vânia Pena, diz que o filho aparentemente teve um “surto”. Andava desconfiado de tudo, tinha sofrido uma sequência de assaltos e até mesmo um sequestro, além de ter saído de um relacionamento conturbado. Tudo isso em poucos meses. No dia de seu desaparecimento, ele achou que uma mulher num restaurante o tinha filmado após uma discussão com ela e seu marido. Fábio, então, decidiu dar uma volta com o carro e aguardar dentro do veículo a tia, que também estava no restaurante, pagasse a conta. Mas, quando ela o procurou, nem ele nem o carro estavam mais lá. O veículo foi visto pela última vez abandonado na serra de Petrópolis, com o celular e os óculos de Fábio.


Fábio Pena ao lado de sua mãe, Vânia Pena (da esquerda para a direita). Foto: Acervo Pessoal
Fábio Pena ao lado de sua mãe, Vânia Pena (da esquerda para a direita). Foto: Acervo Pessoal

Vânia Pena descreve seu filho como um homem muito batalhador, que tinha o sonho de passar em um concurso público. Fazia academia e tinha uma rotina religiosa, além de muito alegre e sorridente. A mãe conta que durante seu tratamento contra o câncer de mama, Fábio a acompanhou de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, até o prédio do INCA (Instituto Nacional de Câncer), no Centro do Rio. “Ele ia, me apoiava, estava sempre do meu lado, sempre foi só eu, ele e Deus”.


Mães unidas pela memória de seus filhos


Vânia participa da ONG Mães Virtuosas e diz que nunca achou amparo na Justiça para saber o paradeiro do filho. “Minha decepção foi muito grande. Fui à DDPA (Delegacia de Descoberta de Paradeiros) conversar com o inspetor, e ele fez muito pouco caso, não pegou as imagens das câmeras, disse que era muita gente sumida.” Na Defensoria Pública, encontrou um pouco de apoio e conseguiu ver as imagens das câmeras na estrada. Ela afirma que a investigação falhou por não realizar vistoria e perícia no veículo. 


Na sua luta para buscar ajuda, ela escreveu uma carta para a Defensoria Pública do Distrito Federal, explicando o caso e pedindo suporte, mas ainda não obteve resposta. A aflição para ela, é a de não saber onde está seu filho, o que a cada dia aumenta seu sofrimento. “A minha vida está sendo muito triste. Não é viver, eu vegeto”. 


Realidade parecida com a de Maria Aparecida, mãe de Natalina. Ela foi orientada a ir por conta própria na casa de um suposto suspeito que relatou em seu depoimento. Também já foi questionada se a filha era bonita, sugerindo que estivesse com algum namorado.


Maria Aparecida conta que, apesar da falta de apoio nos órgãos públicos, recebeu apoio na união com outras mães e organizações sociais dedicadas aos desaparecidos. Aparecida vai uma vez por mês à Cinelândia para ficar com outras mães das ONGs Braços Fortes e Mães Virtuosas. Para ela, estar ali, com outras, que apesar das diferenças nas histórias, partilha uma dor parecida. “A gente não vai trazer o filho dela, mas conversando a gente vai se ajudando. Às vezes a gente quer conversar, mas nem todo mundo entende o que você está passando”. Para ela, a dúvida se sua filha comeu, se está bem, se está passando frio, a preocupação de não saber como está sua filha, a consome dia após dia. “Todo dia eu peço força a Deus para seguir em frente, o que renova forças. Abri o grupo de familiares de desaparecidos mês passado, tinha uma moça que sumiu em 2000, mas apareceu dia 21, ela foi localizada, isso me enche de mais força. Ela estava havia 24 anos sumida e reapareceu, por que a minha que está há 14 anos não pode ser reencontrada?”.


O que o Estado tem feito


Para a juíza Raquel Chrispino, titular da 4ª Vara de Família Regional do Méier e especialista no tema da documentação, apesar dos avanços dos últimos anos, falta uma política robusta e direcionada aos desaparecidos e pessoas sem identificação. De acordo com ela, o problema se estende para depois do desaparecimento da pessoa, pois fica muito mais difícil identificá-la e conferir à família os direitos devidos. A juíza diz que um detalhamento da Declaração de Óbito (DO) já facilitaria o cruzamento de informações. “Quando uma pessoa morre sem confirmação de sua identidade, o registro de óbito deve conter altura, marcas corporais, o local onde foi encontrado o corpo, as circunstâncias, tudo isso para facilitar essa política de localização de desaparecidos, só que não existe um protocolo de cumprimento dessa lei”. Isso já está previsto no Artigo 81 da lei 6015/73, mas segundo ela, nem sempre é devidamente cumprido.


Caminhada em Copacabana em prol das pessoas desaparecidas em 2024. Foto: Acervo Pessoal

Caminhada em Copacabana em prol das pessoas desaparecidas em 2024. Foto: Acervo Pessoal


A juíza explica que o sofrimento dessas famílias, revivido diariamente, além de exaustivo, impacta a vida das pessoas de diferentes formas. Às vezes, o desaparecido é o pilar financeiro, ou o pilar emocional da família, e isso afeta um conjunto de familiares, por esse desaparecido ser filho ou pai de alguém. O desgaste se estende para além do dia do desaparecimento. Há ainda dificuldades para cobrir os gastos de deslocamento da família até as delegacias e outros órgãos públicos que acompanham o tema. “Eles  ficam sempre na esperança de encontrar e isso acaba deixando a vida em suspenso”.


Cabe ao Estado lutar pelos direitos dos corpos não reclamados


Para Chrispino, a administração dos cemitérios também deveria ser reformulada. Hoje, o controle é feito pelos municípios, e os corpos sem identificação, após três anos, costumam ser exumados, ou seja retirados da cova. “Na minha opinião, quando não há famílias que providenciem o sepultamento, esses corpos não deveriam ser exumados”. De acordo com ela, isso pode dificultar possíveis investigações e procura de familiares de desaparecidos, que podem durar mais de três anos, tempo que geralmente um corpo fica no cemitério até ser exumado. 


A juíza explica que hoje crescem no Direito teorias segundo as quais a personalidade civil não termina com a morte. Entendem que a pessoa que morreu tem o direito à imagem, e o Estado e a comunidade têm o dever de preservar a imagem daquela pessoa. Apesar da morte daquela pessoa, sem sua identidade confirmada toda uma estrutura familiar (filhos, esposas, maridos e mães que não sabem o paradeiro) e jurídica (dívidas e propriedades) permanece ligada a essa pessoa. “Se esse corpo não é reclamado, é dever do Estado garantir a coleta do DNA para que essa identidade seja reconhecida. É um direito que permanece”, afirma.



Caso tenha informações sobre algum dos desaparecidos mencionados nesta reportagem, entre em contato pelo Disque Denúncia: 21 2253-1177


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