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No Coliseu carioca, a batalha é de rimas

Atualizado: 3 de jul.

Competição de hip-hop em São Cristóvão reúne centenas de pessoas toda semana e se tornou a maior do estado


Por Caroline Rocha e Bernardo Iglesias


Em poucas horas, a praça lota. O pallet de madeira de cerca de um metro quadrado se transforma em palco. Ao ser ligada a caixa de som, o grupo de cerca de 400 pessoas se organiza em uma roda para ver a atração principal. Com as mãos para o alto, todos entoam o mesmo cântico em uma só voz para emanar o máximo de energia possível. Os ritos se assemelham ao de um culto - mas os fiéis são jovens de roupas largas e o “todo-poderoso” é o freestyle.


A maior edição da Batalha do Coliseu reuniu mais de cinco mil pessoas na Praça da Bandeira. Foto: João Gabriel Alves/Batalha do Coliseu

“Só um sobreviveu. Só um sobreviveu. Bota a mão pro alto, é a Batalha do Coliseu”, grita a plateia a plenos pulmões. É ela o coração da maior batalha de rima do estado do Rio de Janeiro, que acontece todas às terças-feiras na Praça da Bandeira, em São Cristóvão, Zona Norte da capital. Ganha a disputa o mestre de cerimônia (MC) que arranca os gritos mais altos. Os MCs articulam versos de freestyle (improviso), com ritmo, cadência e métricas que encaixem no beat (base instrumental). Eles comandam a massa, mas quem põe mão à obra e mantém tudo de pé é a equipe de organização, composta por 16 pessoas.


Existem diversas modalidades de batalha. Na mais comum, dois MCs se enfrentam em uma disputa de no máximo três rounds.  “As batalhas de rima podem soar como ofensa para algumas pessoas, mas não é ofensa. Não tem nada ver com guerra de ego. Essa guerra só segrega o movimento”, afirma um dos maiores vencedores da Batalha do Coliseu, Zed MC.


O freestyleiro que sobrevive às eliminatórias, semifinal e final ganha a “folhinha”, prêmio colecionado e ostentado pelos grandes vencedores. No geral, as disputas só contam com prêmios em produtos ou dinheiro em eventos especiais - a depender dos patrocinadores.


Criada em 2019, a Batalha do Coliseu (BDC) nasceu para evitar que os MCs fluminenses tivessem que sair do estado para ganhar visibilidade em rodas culturais mais estruturadas. O período difícil para a cena cultural do Rio de Janeiro aconteceu pouco depois do auge, em 2015, impulsionado pela Batalha do Tanque. Realizada na Praça dos Ex-Combatentes, em São Gonçalo, a batalha foi a primeira a viralizar na internet e deixou MCs milionários – entre eles, Orochi, um dos principais nomes do rap nacional na atualidade.


Importadas dos guetos de Nova York, as batalhas de freestyle chegaram ao Brasil nos anos 2000. Foto: João Gabriel Alves/Batalha do Coliseu

“Essas batalhas pararam de acontecer naturalmente. O Tanque teve uma pausa. A Batalha do Real [primeira batalha de rap do estado] também teve um momento de pausa. É muito difícil um movimento de rua acontecer durante 20 anos. O Rio de Janeiro sempre foi um dos estados reconhecidos como a nata do freestyle, mas os MCs precisavam ir para São Paulo para se desenvolverem. Assim nasceu a necessidade de fazer uma batalha aqui que atraísse esses holofotes, que tivesse uma organização um pouco mais séria”, conta Allan, um dos gestores do Coliseu. Registrado com o sobrenome Benevenuto, ele adotou o Freestyle para compor o nome artístico. Não é para menos: são 18 anos vivendo a cultura hip-hop. Tempo que lhe rendeu inclusive o apelido de “lenda”.


‘Falta grana, falta hype, mas nunca vai faltar disposição


Organizar uma das maiores batalhas do Brasil e botar tanta gente na rua com poucos recursos não é uma tarefa simples. O trabalho da Batalha do Coliseu começa bem antes da terça-feira: com a emissão dos documentos de licenciamento da subprefeitura da região para que o evento seja legalizado. A cada determinado período, é preciso de uma nova autorização, que nem sempre é concedida. Foi devido à dificuldade de liberação que, em 2022, a BDC deixou a Praça Agripino Griecco, no Méier, onde a roda cultural era realizada há mais de três anos. Os organizadores relatam terem se sentido “expulsos” do local graças aos obstáculos burocráticos.


De acordo com o subprefeito da Zona Norte, Luiz Miranda, os eventos não eram liberados devido ao recebimento de muitas denúncias de moradores do entorno da praça. “Sem o apoio popular, ou seja, pessoas e moradores que são diretamente afetados, a Prefeitura tem impasse para liberação de eventos desse porte”, afirma Miranda. (veja nota na íntegra no fim da reportagem)


“Infelizmente, a cultura hip-hop e a cultura periférica, no geral, ainda são vistas  com maus olhos. Mesmo que, nos últimos cinco anos, a cultura periférica tenha sido consumida absurdamente, ainda enfrentamos preconceito até pela parte ideológica - fora o preconceito das pessoas de alta classe. Porém, o hip-hop segue e vive. São 50 anos. Não de existência, mas sim de resistência”, destaca Grafiteh, MC de São Paulo, mas top 10 no ranking da maior batalha do Rio.


Não há cobrança de ingresso. Quem quiser assistir, basta chegar e botar as mãos para o alto. Entretanto, por parte da organização são necessários alguns investimentos, como transporte, hospedagem e alimentação dos MCs, equipamentos de qualidade para as transmissões nas plataformas digitais, equipe de gravação, produção e edição, equipe de limpeza e etc. 


Agora na área da Subprefeitura da Grande Tijuca, a relação com o poder público se tranquilizou, mas ainda existem dificuldades. “Não é uma permissão contínua. A gente tem que estar sempre pegando essa documentação que depende de um site do governo [municipal]. Várias vezes o site está fora do ar e, várias vezes, a gente vem para cá sem documentação. Tem um investimento, tem um dinheiro e corre risco, às vezes, da polícia chegar aqui e parar tudo, porque está sem um documento que não saiu por causa de um site. Ficar refém da burocracia é sempre muito desconfortável para quem está na rua”, afirma Allan Freestyle.



De acordo com o subprefeito da Grande Tijuca, Felipe Quintaes, todo evento cultural na rua é “muito bem-vindo e necessário” e cada uma das solicitações para realização deles é avaliada individualmente em reuniões com as autoridades locais. Segundo ele, alvarás com grandes prazos não são possíveis devido à imprevisibilidade. “[Os organizadores do Coliseu] não abrem [solicitação] toda semana. Geralmente, abrem mensalmente. O que eles não podem abrir é um alvará transitório de licença de evento para um ano inteiro. Vai que eu preciso fazer outro evento na Praça da Bandeira. A praça não é só deles o ano todo”, diz Quintaes.


‘Nossa história tu encontra na rua, tu não vai achar se jogar no Wikipédia


A internet foi o primeiro degrau para a maioria das organizações do país conseguirem monetizar seus trabalhos. Antes de as batalhas de rima serem publicadas em plataformas digitais, as rodas culturais eram mantidas com apoio da comunidade e dos MCs, por doações individuais e editais públicos. 


O hip-hop foi importado dos EUA nos anos 90, contudo, apenas nos anos 2000 as batalhas começaram a surgir de maneira organizada e com regularidade no Brasil. A pioneira foi a Batalha do Real, na Lapa, Zona Central do Rio. Apenas 12 anos depois, com as milhões de visualizações acumuladas nos vídeos da Batalha do Tanque, marcas e empresas perceberam um terreno fértil para inserção de publicidades nas rodas culturais, iniciando a criação de uma indústria audiovisual atrelada ao movimento.


Vídeo da batalha entre Orochi e Jhony MC na Batalha do Tanque, publicado em 2016, viralizou nas redes sociais e acumula 8,4 milhões de visualizações no canal oficial no Youtube. Foto: Reprodução/Youtube

Desde então, as principais rodas culturais do país funcionam como um set de filmagem - alguns mais e outros menos profissionais. Mesmo quando não há microfones na Batalha do Coliseu, os MCS rimam sob luzes de led enquanto câmeras registram em vídeos e fotos cada um de seus movimentos. “A gente faz 16 batalhas por noite. Quando falha uma câmera e não rola [gravação] é um absurdo. Para a gente, hoje em dia, não existe não ter um registro”, explica o gestor da roda cultural.


Qualquer frequentador de batalhas antes da década de 2010 se espantaria com a dinâmica atual. Tudo é publicado nas redes sociais. Seja na transmissão ao vivo ou depois nos perfis do Instagram, Twitter, Youtube ou TikTok. Juntando todas as plataformas, a BDC acumula mais de um milhão de seguidores. Apenas no YouTube, são mais de quatro milhões de impressões mensais. 


De acordo com o levantamento feito por essa reportagem, realizado com base em dados da Fundação de Artes do Rio de Janeiro (Funarj), do Torneio Estadual RJ e de perfis públicos das organizações nas redes sociais, existem pelo menos 125 batalhas de rima ativas no estado do Rio de Janeiro em 2024 (veja o mapa abaixo). Rimador desde 2006, Allan alerta para a falta de registro histórico de movimentos de rua e de artistas relevantes na música brasileira que começaram suas carreiras rimando em becos e vielas do Rio, como Marechal, Filipe Ret e Maomé.


Filipe Ret e Marechal rimando na Batalha do Real, primeira roda de rima do estado, em 2003. Foto: Reprodução/Twitter

Com a lenda do freestyle, não foi diferente. “Eu fiz mais de 500 batalhas que ninguém filmou. Ganhei títulos importantes que ninguém registrou", relembra. “A nossa missão hoje é que role para esses MCs o que não rolou para a gente: visibilidade, comunicação em massa e representatividade. Nosso trabalho é justamente para daqui para frente tudo ser filmado”, completa Allan.


A iniciativa tem rendido frutos. A Batalha do Coliseu é patrocinada pela MMABet, casa de apostas e cassino online, pela Music Pro, plataforma nacional de distribuição digital de música, e pela Thug Nine, uma das maiores marcas nacionais de roupa no segmento streetwear. São poucas as organizações do país que conseguem conciliar amor e negócio. Allan estima que existam cerca de cinco mil batalhas de rimas no Brasil e menos de 10 sejam monetizadas.



Para os MCs, não é muito diferente. Questionados se conseguem viver do rap, a resposta padrão é: “Viver é complicado. A gente sobrevive.” Esse é o caso de Tubarão MC, convidado da 182ª edição da Batalha do Coliseu. Nascido na Baixada Santista, em São Paulo, o jovem se viu sem perspectiva, após perder pai, mãe e avó aos 18 anos. O menino, que não conseguia apresentar um trabalho para 30 alunos na escola, se encontrou nos palcos rimando para milhares de pessoas.


“Eu não vou mentir que eu vivo bem e que eu já posso comprar o que eu quiser, mas antes eu tinha que vender churros na praia para ir para as batalhas de fora (do estado). Ainda não estou no nível que eu almejo, mas já consigo pagar todas as minhas contas. Não trabalho para ninguém. Não estou vivendo o sonho de um alguém. Eu estou vivendo meu sonho”, declara o rapper de 23 anos.


Tubarão MC começou a rimar como hobby quando tinha 14 anos. Atualmente, 100% da renda dele é proveniente do seu trabalho com freestyle. Foto: Caroline Rocha

“Antigamente, era impossível você pensar em ganhar dinheiro com isso. Evoluímos. Hoje, tem alguns MCs que ficaram milionários com batalha, mas é que nem futebol: tem 5% dos jogadores que estão ricos e 95% está passando dificuldade atrás de um sonho”, avalia o gestor do Coliseu.


Monetizar o trabalho com arte, no entanto, gera críticas de ouvintes que apontam uma suposta perda no teor crítico do rap - que poderia ser influenciado pelos patrocínios. Mas Tubarão discorda: “Tem uma frase do Coruja BC1 que fala: ‘Revolução para alguns é nascer e morrer na merda’. Antes a gente não tinha nada. Ninguém sabia quem era a gente. Se hoje a gente continua fazendo a mesma coisa nas mesmas batalhas com as mesmas pessoas e ganhando dinheiro, por que não?”


De acordo com Grafiteh MC, a cultura hip-hop nunca criticou a remuneração dos envolvidos em trabalhos artísticos. "A única coisa que o hip-hop sempre criticou é vender seus conceitos, vender até a pessoa por trás do artista, a troco de dinheiro e de fama, não o fato do favelado ter dinheiro através disso. Quer fazer dinheiro? Faça. Só não venda nossos conceitos, nossa postura e nossa essência", explica o rimador.


Grafiteh Mc com prêmios da edição 358 da Batalha da Aldeia, maior batalha do Brasil, localizada em São Paulo. Foto: West Blue/Batalha da Aldeia

A falta de conhecimento sobre a história do movimento cultural entre novos ouvintes, após a explosão das batalhas de rima na internet, tem sido um ponto de alerta para os MCs mais antigos. “O problema não é a parada ter tomado essa proporção. O problema é, na medida que tomou essa proporção, o pessoal que está chegando agora não se aprofundar na cultura. Não é só dizer que é hip-hop, dizer que apoia e vir aqui tirar foto com MC famoso. Tem que saber que tem uma luta histórica contra a opressão, um protesto, um manifesto", defende Zed.


‘O campeão vai ser bom quando entender que o troféu é uma taça vazia


Conhecido como “a katana mais afiada” por seus versos incisivos, Zed MC é um dos maiores vencedores da batalha do Coliseu e acumula mais de 600 folhinhas por vitórias em disputas dentro e fora do estado. Mateus de Lima, de 26 anos, “descobriu” o Zed em 2017, quando começou a competir em rodas culturais. A habilidade de rimar, no entanto, surgiu há pelo menos 15 anos, inspirado pelo pai que compunha e frequentava bailes.


"Eu já tinha tido oportunidades no Coliseu e não rendi muito, mas teve uma vez que eu vim, há dois ou três anos, ganhei e fui somando títulos. Continuo no Coliseu porque acho que o maior nível de rima está aqui. As rimas mais bem construídas e mais bem pensadas eu só escuto aqui”, diz o jovem, nascido na Baixada Fluminense e morador da Zona Oeste.


O freestyle de Zed é marcado pela mensagem ideológica nos versos, que ele diz ter adquirido apanhando da vida, ouvindo grandes nomes do gênero, como Mano Brown, Sabotage e Emicida, e vivendo o cotidiano das ruas: “Você não vai entender o hip-hop de dentro da sua casa. A diferença é gigantesca entre quem pesquisa e quem realmente vive isso”.


Zed avalia que “o movimento ainda é muito marginalizado, sendo que marginal é o sistema”. Foto: João Gabriel Alves/Batalha do Coliseu

Preocupado com o coletivo, o jovem fala pouco sobre “eu”. Prefere falar sobre “nós”: “Eu almejo expandir a consciência das pessoas. Trazer não só uma válvula de escape, mas também informações, sabedoria e conhecimento que agregue na vida do público”


São rimadores como Zed que inspiram um menino de 14 anos a sair às seis horas da manhã de Campos dos Goytacazes, Norte Fluminense, e se arriscar há mais de 300 km de casa. O sonho de Kauan Santiago é construir uma carreira no rap. Por isso, o adolescente não poderia perder a oportunidade de tentar ocupar uma das quatro vagas reservadas para MCs sorteados que desejam entrar no ringue lírico com rimadores já consolidados da Batalha do Coliseu. 


A longa viagem foi feita com a companhia da mãe, a cabeleireira Patrícia, de 31 anos, sua maior apoiadora na carreira de freestyleiro. “A gente comprou a passagem mais barata, por isso que deu seis da manhã. O cara que minha mãe mandou comprar a passagem comprou para amanhã e a gente perdeu o busão. Foi a maior luta. A gente chamou um Blablacar [aplicativo de carona]. Ficamos das 10h até às 17h na rodoviária. Às 18h, a gente chegou [na Praça da Bandeira]. Lá pelas 19h, eu botei meu nome no sorteio. E Deus abençoou, né?”, conta o adolescente.


Nos palcos, Kauan é conhecido como Diaz e tem respostas na ponta da língua. “O meu freestyle é irretocável/ Rimar comigo é igual dever agiota / No final a morte é inevitável”, improvisou no duelo em que venceu o favorito, Brennuz MC, um dos principais nomes da cena de São Paulo. 



Não surpreende que Diaz seja tão bom no ringue, afinal, as batalhas começaram cedo. “Eu o criei sozinho. Quando ele tinha seis anos, eu tive um câncer. Morava só eu e ele dentro de uma kitnet. Eu lembro de dormir com um balde vomitando por causa da quimioterapia e ele me ajudava lavando minhas roupas do jeito que ele podia. Eu também não tive mãe, não tive pai, fui abandonada na rua com três anos de idade. Eu sempre quis dar pra ele o que eu não tive: proteção, amor e carinho”, afirma Patrícia.


Perguntado sobre o que almeja na carreira como MC, Diaz responde sem pensar muito, como nos ringues líricos: “Tudo e mais um pouco. Eu sempre sonhei no que aconteceu hoje. Isso é só o começo de um plano gigante.”


Fã de batalha de rima, Patrícia apresentou a arte do freestyle a Diaz quando ele tinha 10 anos. Foto: Caroline Rocha

Nota da Subprefeitura da Zona Norte


“A Subprefeitura da Zona Norte informa que sempre se manifestou a favor da cultura, inclusive movimentos culturais de rua, que em sua essência, traduzem o orgulho de ser suburbano. 


‘Recebíamos muitas denúncias dos moradores do entorno da Praça Agripino Griecco, principal praça da Dias da Cruz no Méier, pelos desconfortos causados por barulhos. Sem o apoio popular, ou seja, pessoas e moradores que são diretamente afetados, a Prefeitura tem impasse para liberação de eventos desse porte’ - destaca o subprefeito da Zona Norte Luiz Miranda. 


Atualmente a Batalha do Coliseu é realizada na Praça da Bandeira, local de maior amplitude e menos moradores na região, que faz parte da circunscrição da Subprefeitura da Grande Tijuca.  A Subprefeitura da Zona Norte reitera o apoio a toda e qualquer manifestação artística e cultural, prezando pelo bem estar de todos os envolvidos.”

O site Rampas é um projeto criado por alunos de jornalismo da Uerj, sob supervisão da professora Fernanda da Escóssia.

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