Mulheres negras contam como vivem o racismo cotidiano e buscam no cabelo uma
forma de fortalecer a própria autoestima
Na diversidade das histórias de mulheres negras, um elemento se repete: o preconceito e o constrangimento relacionados ao cabelo afro natural. Cerca de 70% das mulheres negras ainda se sentem pressionadas socialmente a alisar os cabelos, mostram dados de uma pesquisa realizada pelo Instituto Sumaúma e pela agência RPretas em parceria com a marca Seda. O levantamento também revelou que 100% das entrevistadas gostariam que a próxima geração tivesse mais liberdade na forma de usar o cabelo. O Rampas ouviu as histórias de quatro mulheres negras e sua relação com os cabelos crespos.
Camilla e a descoberta da negritude
“Desde criança até a adolescência, que foi quando comecei a usar o cabelo solto, eu escutava muita coisa sobre o meu cabelo ser errado, sobre ele não ser adequado pra sair nos lugares. Mas eu nasci com esse cabelo”, conta a estudante de microbiologia da UFRJ Camilla Luzia Alves, de 19 anos. Aluna bolsista de uma escola particular de classe média, Camilla foi uma das únicas negras em sua sala de aula e relembra a pressão por ter a pele mais escura e o cabelo cacheado. “Parece que tudo que é preto é feio”.
Enquanto crescia, começava a notar as diferenças que a separavam das outras meninas da turma. “Uma das memórias mais antigas que eu tenho, na escola, era no dia do índio, que já era meio errado. A professora queria soltar meu cabelo e me levou ao banheiro. Lá ela soltou e passava muita água no meu cabelo, ela molhava como se fosse adiantar alguma coisa. Ela queria soltar meu cabelo porque todas as meninas estavam com cabelo solto, só que elas não tinham o cabelo como o meu”.
Camilla começou a fazer relaxamentos no cabelo, para diminuir o volume. “Desde pequena, quando eu saía na rua, as pessoas chegavam encostando no meu cabelo, algo que não é feito com pessoas brancas, falando o quanto o meu cabelo é cheio. Comecei a odiar meu cabelo. Sempre me questionavam por que eu não relaxava ou alisava. Sempre queriam resolver a questão do volume, para eles aquilo remetia à uma imagem ruim e isso entra na questão do preconceito”, conta a estudante.
Entre relaxamentos e químicas, um dia sua perspectiva mudou. Durante uma aula de geografia, questionaram quem se identifivaca como negro. Camilla só percebeu porque começaram a apontar para ela, e ali algumas coisas começaram a fazer sentido. Camilla passou a entender que tudo era uma questão de auto identificação, de como a pessoa se via. Hoje na faculdade, ela não liga mais pros comentários maldosos e preconceituosos e agora considera o cabelo como poder e herança. Camilla é uma personagem de uma história comum a mulheres negras, que se repete há gerações no Brasil.
Osvaldice e a revista no cabelo
Osvaldice Maria Oliveira, de 66 anos, diz que durante toda a vida sofreu discriminação, nada disso afetou sua visão sobre seu cabelo. Para ela seus cachos são a lembrança de sua herança e motivo de orgulho. “Discriminação já sofri muito, no Brasil o racismo é velado né. Na minha ultima viagem a Israel sofri discriminação na imigração, na conexão na Alemanha, fui a unica escolhida para revista várias vezes. Até revistaram meu cabelo para ver se tinham drogas, mas nada disso ofusca a alegria de ser negra. Para mim é um orgulho, apesar de tudo que passei por muito tempo.”
Entre, tranças, bobs e perucas, ela diz que a diversidade do cabelo da mulher negra se conecta diretamente à autoestima e história. “Eu sempre gostei muito da minha cor, do meu cabelo, tenho muito orgulho. Minhas raízes todinhas vieram de lá, minha avó foi escravizada, descendente de indígenas, eu sempre tive orgulho do meu cabelo ser assim, tanto que pra penteado prefiro as tranças, não gosto daquilo liso”, conta Osvaldice.
Anna, Jaqueline e a fé nas novas gerações
O cabelo natural é considerado uma forma de expressão para além da identidade. Um estudo da Universidade Duke publicado em 2021 na revista Social Psychological and Personality Science mostrou que candidatas negras, com penteados naturais ou usando tranças afro, são percebidas como menos profissionais do que negras com cabelos alisados.
Para a empresária Anna Telles, sua história com o cabelo afro virou fonte de renda: “Aquilo que mais criticaram em mim me tornou a primeira milionária da minha família”. Ao criar sua própria linha de produtos para cabelos, Telles mudou o rumo de sua história e segue combatendo o estereótipo que diminui a autoestima de mulheres negras com cabelo natural. "Eu já passei pelo que toda mulher negra passa, por várias situações de constrangimento. Uma vez, estava em uma festa, uma moça passou por mim e puxou meu cabelo, porque ela achou que era uma peruca”.
Telles passou por muitos desafios ao longo de sua vida. Depois de sofrer um abuso sexual dentro de casa, passou a viver pelas ruas de Salvador, e para sobreviver trançava e fazia cabelos. Tempos depois, ela virou dona da Anna Telles cosméticos, e foi a responsável por trazer para o Brasil o “Mel Cola”, produto famoso entre as cacheadas.
“Contaram uma mentira pra gente, e acreditamos que nosso cabelo não era belo, quando na verdade o cabelo crespo é nossa coroa e nossa identidade,é o maior patrimônio e herança”, explica Anna.
Nos últimos anos, as novas gerações vêm mudando a relação com o cabelo. Os salões estão cheios de jovens negras passando pela transição capilar, com o famoso ‘Big Chop’ - a hora de cortar todo o cabelo com química e assumir os crespos naturais. Jaqueline Conceição, é negra e mãe de Laura, que aos 3 anos já tem paixão e orgulho pelo cabelo crespo. “A minha filha adora o cabelo, se deixar ela quer ficar com ele solto o dia inteiro. Espero que ela continue aceitando o cabelo dela de forma natural”, diz Jaqueline. Para ela, é extremamente importante que a filha continue com seu cabelo natural e entenda que isso é uma forma de liberdade. E que ela não deve mudar para se encaixar num padrão social.
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