Pente garfo e autoestima: homens negros redefinem a própria beleza
- Rampas
- 3 de out.
- 9 min de leitura
Rodrigo, Anderson, Luiz e Leonardo exploram como a relação com seus cabelos reflete questões de identidade, confiança e resistência
Por Rodrigo Lima e Emillyn Silveira
Desde a época da escola, Rodrigo Andrade percebeu que nunca apareceria nas listas dos “mais bonitos da sala” elaboradas pelos colegas. Enquanto meninos brancos recebiam elogios, ele era ignorado. Hoje, aos 20 anos, o balconista e vestibulando negro entende que aquela exclusão refletia um padrão de beleza estruturado pelo racismo: “Você nunca tá lá. Eu nunca era bonito o suficiente para ser desejado pelas pessoas.”
A história de Rodrigo ilustra um problema ainda pouco discutido, apesar do espaço que o debate sobre representatividade negra tem conquistado nos últimos anos. Fala-se pouco da beleza negra masculina – ainda marcada por marginalização, racismo e apagamento. Por muitos anos, a construção social do “homem bonito“ foi associada a traços eurocêntricos: pele clara, olhos claros, cabelos lisos (de preferência loiros) e nariz fino. Já os homens negros, especificamente os mais retintos (tonalidade da pele mais escura) e de traços mais marcantes, foram colocados à margem dos padrões.

A discriminação não se limita apenas à cor da pele. Há também preconceito com base em traços físicos, como formato do nariz, textura do cabelo e largura dos lábios. Rodrigo explica que, por não ser negro retinto, era um pouco menos malvisto por seus colegas, mas percebia que os homens negros com menos traços brancos eram os mais rejeitados. Ele lembra a constante comparação entre o jogador de futebol brasileiro Vinícius Júnior e o ator americano Michael B. Jordan, que frequentemente são colocados lado a lado em memes como forma de comparação de beleza. Ressalta que Michael, diferente de Vinícius, não tem lábios grossos, nariz largo, olhos em formato amendoado ou cabelo crespo bem aparente.
Para o estudante, a única forma de começar a amar sua beleza foi aceitar que nunca será branco: “Eu nunca vou ser branco, sabe? Eu não me enxergo mais dessa forma, não tenho mais essa visão de que eu gostaria de ser uma pessoa branca, mas acho inevitável que toda pessoa preta tenha pensado isso pelo menos uma vez na vida. Antes, eu queria muito ser branco, eu tinha uma obsessão por ser branco. Hoje em dia, já não tanto.”
O balconista detalha a dificuldade da autoaceitação e, principalmente, da aceitação por parte da sociedade. “Se a gente quer ser visto como bonito aos olhos dos outros, a gente não pode ser preto. Quanto mais buscamos a ideia geral do que é ser bonito, mais nos distanciamos do que é ser preto. A gente tenta performar branquitude para que as pessoas validem nossa beleza.” Ele explica que, para se ver como bonito, é preciso compreender que nunca será branco e que, por não ser branco, nunca agradará, de fato, à sociedade. “Essa é a maior dificuldade”, desabafa.
Diz que diversas vezes já se sentiu inferiorizado por seus traços e lembra situações em que foi repreendido por usar cabelos coloridos, sob a justificativa de que ‘não combinam com cabelo crespo’ e que eram ‘coisa de branco’. Sentiu-se reprimido, sem a liberdade de pintar os cabelos da cor que queria, diante da ideia de que cabelos coloridos seriam bonitos apenas em pessoas que ele nunca poderia ser: “Essa insegurança é muito plantada. A gente não tem a liberdade de aceitar as várias fases do cabelo porque as pessoas julgam como feio.”
O impacto na autoestima
A ausência de representatividade gera impactos emocionais profundos. Homens negros que geralmente aprendem a ser fortes e calados acabam absorvendo inseguranças relacionadas à sua aparência. O jornalista Felipe Ruffino, do veículo “Alma Preta”, escreveu sobre o grande desconforto emocional na criação da autoimagem: “A autoestima é um elemento intrínseco à saúde emocional de qualquer indivíduo, moldando sua percepção de si mesmo e suas interações sociais. No entanto, para o homem negro, a construção e manutenção da autoestima muitas vezes estão atreladas a complexidades históricas e raciais que permeiam sua vivência diária. Este artigo propõe uma reflexão sobre as sensações de anulação que homens negros podem experimentar nas relações, contextualizando tais sentimentos em um cenário de questões étnicas e históricas”.
A referência é muito importante para a autoaceitação da pessoa negra. Rodrigo Andrade reclama que os caras bonitos eram, essencialmente, brancos ou com traços brancos. Na moda — como o estilo soft boy —, sempre se via pessoas brancas e estilos brancos. Ele nunca conseguia se enxergar dentro desses estilos, desses espectros: “Eu me sentia muito deslocado. É muito triste, porque eu queria me ver bonito, mas não tinha uma referência de estilo na qual eu pudesse me ver ali dentro. Eu não era representado nesses estilos.”
O vestibulando cresceu em um ambiente rodeado de pessoas brancas, sem referências negras que falassem sobre aceitação, até que houve uma revolução das influenciadoras cacheadas, que demonstraram um tipo de beleza alternativo ao aceito pelo padrão: a beleza do cabelo cacheado e crespo. Influenciadoras como a youtuber Rayza Nicácio discutem e ensinam sobre o assunto desde 2012. Inúmeras vozes — youtubers brancas, pardas e negras — começaram a ser ouvidas e passaram a incentivar outras mulheres a iniciarem o processo de transição capilar. De acordo com o site Tua Saúde, a transição capilar consiste em parar de realizar procedimentos químicos no cabelo, como relaxamento ou alisamento, para que ele volte ao seu estado natural — ondulado, cacheado ou crespo. Porém, o balconista observou que a aceitação do movimento cacheado/crespo não foi tão simples quanto parece: “Acho que até as coisas que são bem vistas para pessoas pretas precisaram ser abraçadas por pessoas brancas antes”, exemplificando com a história do rap e do funk, que antes eram marginalizados e associados à delinquência e criminalidade, sendo aclamados hoje em dia após terem sido validados por pessoas brancas.
Essa inovação ajudou os homens de alguma forma? O estudante diz: “Esse movimento de ver mulheres negras se posicionando na mídia, e eu poder ter o privilégio de ouvir o que elas têm a dizer, colaborou muito para a formação do meu caráter e da minha cabeça sobre pessoas pretas.” Porém, ao ser perguntado se ele sentia falta de homens falando sobre cabelo e ensinando a cuidar dele, a resposta foi que sim, e muita. Continuou: “Quando há homens negros com visibilidade, geralmente eles têm o cabelo ‘batido’. Mesmo com tanta visibilidade, não existe, verdadeiramente, uma coragem de representar o cabelo crespo masculino na mídia. Deixar o cabelo crescer é ainda mais difícil se não há em quem se espelhar.”
A questão que fica é: se muitos homens também usavam químicas ou raspavam suas cabeças como forma de se adequar às normas impostas, por que homens cacheados e crespos também não se levantaram para falar sobre o assunto? Rodrigo afirma que os homens já são ensinados a não demonstrar insegurança e a esconder seus sentimentos. “Falar sobre a autoestima de homens pretos é muito complicado, porque eles são sexualizados. Pouco se diz sobre como eles se sentem. Quando os homens pretos querem ser vulneráveis, ninguém dá atenção para eles. Então, nessa linha, a gente não consegue falar sobre o que a gente sente.”
Padrão e estética
O rapaz conta que já enfrentou diversas barreiras e, por ter cabelo crespo, precisou lidar com desafios específicos. Até mesmo no espectro de cabelos com curvaturas há um padrão: “Cabelos ultra definidos, sem um pingo de frizz”, o que sugere, indiretamente, que é errado usar o cabelo natural. Ou seja, a revolução das cacheadas quebrou um modelo dominante, mas instituiu outro: o dos cachos perfeitos.
Rodrigo Andrade já deu aula para crianças na primeira infância e percebeu que, aos 4 ou 5 anos, muitas delas ainda não se sentem diminuídas por sua cor de pele ou curvatura do cabelo. Isso lhe deu respaldo para afirmar que a insegurança é plantada pela sociedade. Ele explica que seu conceito sobre beleza mudou drasticamente durante seus 20 anos de vida, pois, antes, considerava todos os cabelos bonitos — exceto o seu próprio: “Mas hoje, eu realmente acho que minha definição de cabelo bonito mudou muito. Eu parei de achar que é o cabelo quem faz a pessoa — é a pessoa quem faz o cabelo. Acho que o cabelo é uma das maiores ferramentas de comunicação que temos no nosso corpo. Eu tenho três visões diferentes de mim. Agora, eu acho que cabelo bonito é aquele que comunica. Você consegue perceber quando uma pessoa está bem com o cabelo dela — a pessoa tem um brilho diferente em volta dela. Você vê que a pessoa está confortável e não está preocupada. Isso transmite, para mim, uma beleza muito grande, sabe?”
Sua trajetória com o cabelo foi marcada por dores, mas também por superação. “Passei por uma transição. Em 2021, tentei relaxar o meu cabelo, acabei alisando ele sem querer e, depois disso, raspei a cabeça — o que foi muito doloroso, porque eu via a criança assustada que eu era. Sempre usei o cabelo raspado e via aquela criança triste por não ter o cabelo grande e legal. Foi um processo muito lento, até que eu decidi deixar o cabelo crescer. Hoje em dia, não consigo mais me ver sem cabelo — acho que seria muito estranho. Agora eu consigo ver meus traços como algo bonito. Isso pode parecer até pequeno, mas é uma coisa tão grande para mim, sabe? Não tem nada melhor do que estar bem comigo mesmo.”

Entre as lâminas e prosas
Ao chegar à barbearia Elohim, localizada na Cruzada São Sebastião, no Leblon, Zona Sul do Rio de Janeiro, escuta-se o som das máquinas de cortar cabelo se mesclando com o barulho das risadas dos clientes entre conversas sobre futebol e trocas sobre política. Neste espaço, cada corte de cabelo vai além da estética: é uma maneira de afirmar a própria identidade.
Anderson Felipe da Silva, 42 anos, proprietário do estabelecimento, conta que os cortes de cabelo estão ligados à ancestralidade, identidade e resistência, indo além da estética. O barbeiro ressalta: “Hoje em dia, embora ainda haja um enaltecimento de características da branquitude, os tempos mudaram e o cabelo afro passou a ser valorizado. Muitas pessoas hoje curtem seus cabelos de forma natural, e eu, particularmente, prefiro e acho mais bonito o cortes em cabelos crespos. Um corte bem detalhado chama mais atenção, e, além disso, já estou acostumado a trabalhar e tenho uma maior identificação com essa textura de cabelo, pois atuo no ramo há 22 anos.”
Ao ser questionado se já presenciou alguma transformação marcante de algum cliente em terminou de autoconfiança e identidade, o barbeiro respondeu: “Várias vezes. Eu costumo dizer que um corte de cabelo é uma arte e, para cada cliente que chega aqui, eu faço uma arte no cabelo deles; assim, eles saem com a autoestima bem elevada” Anderson acrescenta que, em sua juventude, não havia acesso aos produtos de beleza voltados à população negra com a facilidade que existe hoje, considerando que atualmente é possível encontrar itens específicos para diferentes tonalidades de pele e tipos de cabelo.
No mesmo salão, Luiz Felipe Marinho, de 28 anos, guardião de piscina, aguarda seu horário. Felipe é um jovem negro, de poucas palavras, mas com total consciência das mazelas do racismo. Nasceu e mora na Cruzada São Sebastião. Conta que vem à barbearia regularmente porque ele “entra de um jeito e sai de outro”, se sentindo mais elegante e com uma melhor relação com sua aparência.
Ao ser perguntado se ele sente que cuidar do cabelo e da aparência influencia a autoestima dele como um homem negro, ele responde: “Sim, como eu trabalho com público, eu tenho que cuidar da minha aparência. Já existe um estigma que nós negros temos o cabelo feio e, por este motivo, temos que cuidar constamente da nossa estética.” Marinho relata que, quando não corta o cabelo nem faz a barba, evita frequentar certos lugares para não passar por constrangimentos ligados à sua aparência. Já quando está com o cabelo cortado e a barba feita, sente-se livre para ir onde quiser.
Questionado se já sofreu alguma opressão por causa de suas características físicas, ele afirma que sim: “Muitas pessoas atravessam para o outro lado da rua e seguram a bolsa com força porque pensam que eu vou puxar a qualquer momento. Já fui abordado pela Polícia em frente ao Shopping Leblon, enquanto estava indo pagar minhas contas.” Mas diz que, apesar de tudo, segue seu caminho: “Mesmo com esses acontecimentos que tentam de toda maneiros nos desumanizar, eu ando de cabeça erguida. Sou trabalhador, me sinto livre e confiante para estar onde eu quiser estar.”
“Sabe aquela comparação da cor do braço? Sempre detestei”
Leonardo Vieira dos Santos, 29 anos, é estudante de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e antropólogo. Léo é um rapaz negro de pele retinta, muito comunicativo, que se destaca pela facilidade em dialogar, pela escuta atenta e pela sensibilidade no ensino. O estudante contou que só foi começar a se perceber bonito entre os anos de 2016 e 2017, quando estava na faixa dos 20 a 21 anos. “Eu estava cursando o pré-vestibular social na UFRJ. Foram apresentadas leituras e também observei o redor com diálogos de autoafirmação, de autorreconhecimento e os olhares. Mas a forma que me olhavam mudou desde os meus 17 anos, após eu começar a trabalhar, começar a consumir certas marcas, eu senti que comecei a ser visto de forma diferente”
De todas as suas características, a mais difícil de acolher foi a cor da pele. “Sabe aquela comparação que as pessoas faziam braço com braço? Sempre detestei desde criança. Para mim não era vantajoso, era sempre de derrota aquela comparação. Nunca foi algo legal. Depois vamos crescendo e acabamos percebendo que as coisas não são bem por aí. A conotação começou a se tornar diferente, e meu tom de pele passou a ser elogiado.”
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