Quando a cultura para todos começa na universidade
- Larissa Carvalho

- há 2 dias
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Com agenda diversa e inclusiva, Divisão de Teatro da UERJ se dedica a democratizar o acesso à programações culturais na zona norte
Por Larissa Carvalho
Todos os dias, centenas de estudantes se espalham pelos bancos de concreto que fazem parte da concha acústica da UERJ mesmo que, à primeira vista, o cimento acinzentado não pareça muito acolhedor. O que poucos sabem é que esse mesmo lugar, ao lado de outros dois espaços - o Teatro Odylo Costa, filho, e o Teatro Noel Rosa - integra um dos polos culturais mais relevantes da Zona Norte. Basta seguir pela lateral do portão 1 para que a curiosidade se instale: o que existe para além das escadas subterrâneas?

A Divisão de Teatro da UERJ é o departamento que administra as programações de três dos principais espaços culturais da Universidade. Nas salas do subsolo, técnicos, produtores e artistas cooperam enquanto grandes eventos são organizados. Os espaços da Divisão de Teatro já receberam artistas como Cícero, Antônio Pitanga, Lázaro Ramos, Moacyr Luz e o Samba do Trabalhador, Leandro Sapucahy e o Doutor Honoris Causa, Gilberto Gil. A lista de projetos importantes e premiados que já estiveram em cartaz nos palcos da UERJ também é extensa: Cura, Sagração, Tragam-me a Cabeça de Lima Barreto, Ninguém me Ensinou a Morrer, Entre a Pele e a Alma, Poder Falar, Guadakan, Latitudes dos Cavalos e muitos outros.
Grande parte da programação dos espaços é gratuita e os espetáculos pagos oferecem sempre valores populares. A Divisão de Teatro da UERJ também reforça seu compromisso com a acessibilidade ao oferecer eventos com intérprete de Libras, audiodescrição, cadeiras adaptadas e elevadores disponíveis para pessoas com qualquer tipo de dificuldade de locomoção, incluindo idosos. Os esforços para tornar o acesso ao teatro ainda mais amplo não param por aí: Projetos de extensão como Palco das Escolas, UERJ em Casa, Vitrine UERJ, ProsaCine, Caixa Cênica, ConcertUerj, Conversa de Artista e Happy Uerj, também buscam integrar ainda mais a comunidade interna e externa, incentivando a participação do público e dos artistas, tornando os espaços mais inclusivos e a programação mais diversa para todos.

Em entrevista ao Rampas, Giselda Prado, 38, coordenadora de comunicação e produtora da Divisão de Teatro há 4 anos, destacou que como muitas pessoas sequer foram ao teatro em suas vidas, os esforços, ainda hoje, tendem a estar muito voltados para um trabalho de apresentação e de formação de plateias. Esse trabalho é dedicado a cativar o público e fazer com que queiram frequentar esses espaços. “Eu, como coordenadora de comunicação e junto com as pessoas que trabalham na produção e com os estagiários também, toda a equipe… a gente tem muita fome de ter eventos, de ter essa participação mais forte dos públicos interno e externo nos nossos espaços. Quem não quer um evento com o teatro cheio, não é?”, brinca ela. Para conseguir isso, Giselda afirma que o principal trabalho do teatro é proporcionar uma experiência única e, ao mesmo tempo, coletiva, onde várias pessoas se unem em um mesmo momento e local para apreciar um espetáculo em comum, em tempo real e sem edições.

Segundo dados da pesquisa de público, cedidos pela Divisão de Teatro, a plateia de 2025, até o momento dessa reportagem, foi composta por 31,3% de pessoas da comunidade externa e 68,75% de pessoas da comunidade interna. Além disso, ainda segundo as respostas da pesquisa, mais da metade do público que esteve nos três espaços, é morador da Zona Norte e 40% dos visitantes têm entre 18 e 24 anos. É importante destacar, no entanto, que os números são obtidos com base nas respostas de um formulário não obrigatório.

Ronald da Fonseca, 30, é estudante de Relações Públicas na UERJ, entusiasta das artes cênicas e morador da Baixada Fluminense. Participante ativo de grupos artísticos localizados no Centro e na Zona Oeste, ele destaca as dificuldades de precisar se deslocar tanto para ter acesso à cultura. Ele afirma que gostaria de ter maior envolvimento com as atividades culturais dentro da universidade, mas a rotina intensa e responsabilidades diárias impedem, na maioria das vezes, que ele consiga participar dos eventos. Quando perguntado sobre a importância do teatro em sua vida, diz: “Para mim, é um hobby e uma válvula de escape. Te ajuda a interpretar textos, mas também a forma de enxergar a vida (...) Assim como o esporte é muito importante (para nossa saúde), a arte também é.”
Clara Maia, 25, é cientista social e mora em Magalhães Bastos, bairro da Zona Oeste do Rio. Ela afirma que, apesar de viver em um local com pouca oferta, as atividades culturais são uma prioridade em sua rotina. Em entrevista ao Rampas, Clara destaca que frequenta o teatro pelo menos uma vez ao mês e, que além disso, também participa de outras programações, como exposições artísticas e museus.“ É bem difícil uma peça famosa, bem conceituada, aparecer na minha região. Então se eu quero assistir algo do meu interesse, eu tenho que me deslocar para a Zona Sul ou para o Centro”, pontuou Clara. Ela descreve seu contato com arte e cultura como momentos de aprendizados e curiosidade, em que “seu mundo interior se expande”.
Quando a distribuição cultural é tão desigual, os desafios não existem só para quem quer desfrutar, mas também para aqueles que criam e vivem da arte. Ana Ester Chagas, 25, é estudante de Letras na UERJ e moradora do bairro Senador Vasconcelos, na Zona Oeste do Rio. Ela integra o Cultura Zona Oeste, um grupo de teatro de Campo Grande. Em conversa com o Rampas, a artista reconhece que a oferta cultural tem melhorado em seu bairro, mas pontua que essa mudança de panorama vem muito mais do esforço da comunidade do que da ação efetiva de políticas públicas.
Ana participa ativamente dos eventos que ocorrem no campus e, até mesmo, já ocupou os palcos do Teatro Odylo. Juntamente com seu coletivo, esteve no elenco do musical “O Auto da Compadecida”, baseado no livro de Ariano Suassuna. Para Ana Ester, independentemente de seguir profissionalmente, “todos deveriam fazer teatro”. Ela acredita que muito da importância da prática repousa no fato de que para além de um reconhecimento corporal, o teatro promove um “reconhecimento de quem você é no mundo”.

Ana Ester destaca os desafios de conciliar todas suas atividades no curto espaço de tempo de 24 horas: “É um grande corre. (Tem que) estar sempre com uma marmitinha, comer no ônibus, comer no trem, estar sempre correndo e entendendo também quando, às vezes, não dá para estar em tal lugar ou não dá para assistir àquela aula. Sabe, é sempre um diálogo com os professores, porque realmente é muito difícil”, desabafa.
Cultura Para Quem?
A amplitude cultural da UERJ é uma referência admirável, no entanto, não é a realidade de todo o Rio de Janeiro e isso destaca que, ainda hoje, atividades culturais como o teatro, permanecem inacessíveis para grande parte da população. Apesar do Município do Rio de Janeiro ser composto por 166 bairros, possui apenas 12 teatros públicos, administrados pela Secretária Municipal de Cultura. Eles estão distribuídos em apenas 9 bairros, a maior parte deles, localizados no Centro e na Zona Sul. Apenas 3 teatros estão localizados na Zona Norte, 2 deles na Tijuca, bairro predominantemente de classe média e, apenas 1, no Méier. As regiões Oeste e Sudoeste, por sua vez, apresentam o revoltante número de 0 teatros administrados pelo Município. Os teatros administrados pela FUNARJ, por sua vez, são apenas 5 e estão localizados nos bairros Marechal Hermes, Campo Grande, Copacabana, Centro e Vila Kennedy.
Para além disso, pesquisas e levantamentos nacionais também mostram que fatores que determinam o acesso à cultura no Brasil, também possuem origens raciais. Os dados são da pesquisa “Cultura nas Capitais”, feita em 2024 e que reúne informações de 19.500 pessoas, a partir dos 16 anos e moradoras de todas as capitais brasileiras. Considerando somente a Cidade do Rio de Janeiro e utilizando a opção “raça” como filtro, a pesquisa revela que 31% da população preta e 36% da população parda fluminense nunca foram ao teatro. Considerando a população branca, o número cai para 22%. Utilizando o filtro de “classes sociais”, os números mudam, mas não se tornam, de forma alguma, menos alarmantes. Apenas 6% da população da classe D e 25% da classe C já frequentaram o teatro. Quando consideramos a classe A, por outro lado, observamos uma porcentagem muito maior, com 65% de pessoas. Dados da quarta edição do Sistema de Informações e Indicadores Culturais (SIIC) revelaram que, em 2018, famílias com uma renda de até 1908 reais comprometiam somente 1,6% de sua renda com alguma atividade cultural. Essa porcentagem, por outro lado, subiu para 26,2% em famílias com rendimento de até 5.724 reais, evidenciando que a renda também é um fator determinante no acesso e valorização da cultura.
Por outro lado, os avanços existem e iniciativas como as da Divisão de Teatro da UERJ revelam que, aos poucos, a cultura começa a transpor as barreiras socioeconômicas e a se fazer presente no cotidiano carioca. Ainda assim, para que a desigualdade cultural seja realmente superada, é preciso muito mais do que boa vontade. Políticas públicas consistentes e uma redistribuição justa dos equipamentos culturais pela cidade, são medidas urgentes. Em 2003, quando ainda ocupava o cargo de Ministro da Cultura, Gilberto Gil - que também já esteve nos palcos da UERJ - salientava: “cultura é igual arroz com feijão, é necessidade básica.” Hoje, 22 anos depois, a luta daqueles que sofrem com a desigualdade cultural é reafirmar e, diariamente, defender essa máxima.
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