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Quando cuidar é preparar a hora da partida

Relevância dos cuidados paliativos aumenta num momento em que o Brasil que envelhece; especialistas dizem que é preciso também cuidar dos cuidadores


Por Samira Santos


“A gente morre como vive.” A frase da médica Ana Claudia Quintana Arantes, autora de A Morte é um Dia que Vale a Pena Ser Vivido, ecoa com ainda mais força diante de um país que está envelhecendo. Dos 212,6 milhões de brasileiros, 33 milhões são idosos. Um cenário que traz uma série de desafios sociais, econômicos e, acima de tudo, humanos - principalmente para quem tem a tarefa de cuidar daqueles que estão perto do fim e precisam dos chamados cuidados paliativos.


A atendente de telemarketing Vanda da Silva Almeida, de 55 anos, viveu todos esses desafios ao cuidar, durante oito anos, da mãe em estágio avançado de Alzheimer: “Tem dia que eu trabalho muito a minha mente pra espantar essa história de depressão, mas eu choro sozinha. Ela quer falar e não fala, quer andar e não pode.” Sem esconder a dureza da rotina, Vanda fala sobre a dimensão espiritual desse processo. “Minha religião é a minha janela da noite falando com Deus.  Não tenho religião, mas acredito em Deus. É eu e Ele.”


Durante esses oito anos, ela aprendeu a ter muita paciência e entendeu a importância da estrutura mental dos cuidadores, para não correr o risco de adoecer junto. Enfrentam diariamente o desafio emocional, físico e financeiro de acompanhar alguém com demência. O Rampas ouviu especialistas e cuidadores para entender o quadro do envelhecimento e dos cuidados paliativos no Brasil.


Os idosos brasileiros representam 15,6% da população. Entre 2000 e 2023, a proporção de pessoas com mais de 60 anos  quase duplicou. Estima-se que, em 2070, os idosos representem cerca de 38% da população, saltando dos atuais 33 milhões (em 2023) para impressionantes 75,3 milhões. Em estados como o Rio de Janeiro e o Rio Grande do Sul, a inversão da pirâmide etária já é uma realidade palpável: a população de 60 anos ou mais já supera a de 0 a 14 anos.


Cuidando de quem cuidou da gente (Foto: Freepik)
Cuidando de quem cuidou da gente (Foto: Freepik)

Viver bem e morrer bem


“Cuidar é um ato político”, afirma o fisioterapeuta e pesquisador Ernani Mendes, especialista em cuidados paliativos do Instituto Nacional de Câncer (INCA). “O paciente pode estar fora de possibilidade de cura, mas nunca estará fora da possibilidade de cuidado. Nós, paliativistas, somos especialistas no sofrimento e trabalhamos para aliviar esse sofrimento, nas suas dimensões física, emocional, social e espiritual, em equipe, com escuta e presença.” Para ele, a sociedade também precisa se envolver nesse cuidado: “Não se trata apenas de uma pauta médica. É uma construção comunitária, cultural, política.”


“Cuidados paliativos são uma especialidade que abrange vários cenários. No caso do idoso, pensamos nisso quando há uma doença progressiva, sem perspectiva de cura, e precisamos aliviar sintomas. Mesmo doenças com tratamento, como o câncer, podem se beneficiar do acompanhamento paliativo para manejo dos sintomas”, explica o médico geriatra Ivan Abdalla, do Centro de Demência de Alzheimer (CDA) do Instituto de Psiquiatria da UFRJ.


Ivan Abdalla em sua sala no CDA (Foto: Samira Santos)
Ivan Abdalla em sua sala no CDA (Foto: Samira Santos)

O CDA, inicialmente voltado a pacientes com demência de Alzheimer, hoje atende também idosos com outros transtornos neuropsiquiátricos. “Todo paciente com diagnóstico de demência precisa de orientação, ele e a família, sobre a evolução da doença e formas de atenuar os sintomas. O foco é sempre aumentar a qualidade de vida e diminuir o desgaste da família e do cuidador”, afirma Ivan.


À medida que a demência avança, o quadro se torna mais complexo. “Na fase mais avançada, a pessoa começa a precisar de ajuda para atividades básicas como se vestir, comer, tomar banho. Pode haver dificuldade de deglutição, fala, locomoção. Nesse momento, precisamos discutir com a família o prognóstico e focar no conforto”, diz o geriatra. “


Muita gente associa cuidados paliativos à morte iminente, mas isso é um equívoco. “Qualquer medida que alivia sintomas e melhora a qualidade de vida, mesmo desde o início da doença, pode ser considerada paliativa. Não é só sobre o fim da vida, é sobre viver melhor”, pontua Abdalla. Segundo o médico, o diálogo pode começar de maneira simples: “A pergunta ‘o que é importante para você?’ pode abrir esse diálogo de forma mais humana”. 


O cuidado não termina com a morte. “Muitos familiares voltam ao serviço depois do falecimento para conversar, continuar elaborando o luto. Um grupo de apoio estruturado seria muito importante. O vínculo com a equipe faz diferença até após a partida do paciente”, destaca o geriatra.


O fisioterapeuta e presidente da APAZ (Associação de Parentes e Amigos de Pessoas com Alzheimer, Doenças Similares e Idosos Dependentes), Christiano Barbosa, lembra que os cuidados paliativos devem começar desde os primeiros sinais da doença. “Desde as fases iniciais [das demências] é possível falar sobre cuidados paliativos. [...] É importante que, sempre que a gente fale sobre demência, fale também sobre cuidados paliativos.” A instituição possui um grupo de apoio para cuidadores no centro do Rio, onde o grupo se reúne com uma psicóloga para trocar experiências e desabafos sobre a jornada de ser um cuidador seja profissional ou com um familiar .


Christiano Barbosa no escritório da APAZ (Foto: Samira Santos)
Christiano Barbosa no escritório da APAZ (Foto: Samira Santos)

Ele aponta o maior desafio para a implementação dessa abordagem no Brasil. “A população brasileira não conversa sobre morte ao longo da vida. Falar sobre morte é falar sobre vida.” O envelhecimento não é apenas um fenômeno demográfico, é vivido em casa, por pessoas comuns, que enfrentam, todos os dias, a fragilidade e a potência do fim da vida. Para o fisioterapeuta falar sobre a morte, no fundo, é um convite urgente a cuidar melhor da vida.


Prédio da APAZ no centro (Foto: Samira Santos)
Prédio da APAZ no centro (Foto: Samira Santos)

A realidade de quem vive o fim da vida de perto


Sueli Oliveira, que cuida da mãe com Alzheimer, descreve a dificuldade de aceitar a doença: “Enquanto eu não aceitei a doença, não conseguia ir em frente, por isso eu precisei vir para cá [grupo de apoio]. Porque eles me ajudaram muito aqui. [...] Meu relacionamento com a minha mãe só foi piorando. Porque eu não entendia a doença. Negava o tempo todo.”


A rede de apoio foi fundamental não apenas para o aprendizado técnico, mas para a reconciliação afetiva. Rosilene Mamprim, participante do mesmo grupo da APAZ, compartilhou: “A gente recupera coisas que a gente não teve acesso à nossa mãe. A gente resgata o carinho, o amor. Aqui a gente também aprende que o luto começa com a perda da memória deles. Quando acontece o fato, você já está mais ou menos preparada.”


A vida deve ser vivida com dignidade, porém a morte também exige um processo de aceitação e elaboração, tanto para o paciente quanto para seus entes queridos. A psicóloga Eleonora Torres enfatiza a importância de viver o luto plenamente. "É preciso viver o luto. Não pular etapas. Sentir a dor, chorar, se recolher. Isso é parte do processo de elaboração”, afirma. Em uma sociedade que muitas vezes reprime a expressão da dor e do sofrimento, Torres nos lembra que o luto não é um sinal de fraqueza, mas um processo natural e fundamental para a cicatrização emocional.


Pular etapas do luto, ou buscar negá-lo, pode ter consequências danosas para a saúde mental e emocional. A dor da perda, quando não processada, pode se manifestar de diversas formas, levando a quadros de depressão, ansiedade e outras dificuldades psicológicas. 


A relação com a finitude é um tema central na visão de Eleonora Torres. "A morte não é o contrário da vida, é parte dela. Lidar com isso nos torna mais humanos”, reflete a psicóloga. Essa perspectiva desafia a negação da morte que permeia muitas culturas, aceitar a morte como parte da vida é um passo crucial para uma existência mais plena.


Uma morte saudável


O conceito de “morte saudável” pode parecer um paradoxo para muitos, mas para a psicóloga Eleonora Torres, ele aponta para um ideal de encerramento da vida com paz e aceitação. "Uma morte saudável é aquela em que há reconciliação: com os outros, com a própria história e com o corpo que se vai”, explica. Essa reconciliação envolve perdoar e ser perdoado, aceitar as escolhas e caminhos percorridos, e, finalmente, entregar-se ao processo natural do corpo.


A ideia de legado e continuidade também é central nessa perspectiva. "O que morre é o corpo. Mas as histórias, os afetos e os vínculos seguem vivos”, pontua Torres. Essa compreensão alivia o peso da aniquilação total, permitindo que a memória e a influência do indivíduo transcendam a existência física. O legado não se restringe a grandes feitos, mas reside nos pequenos gestos de amor, nas lições transmitidas, nas memórias compartilhadas.


Na busca incessante pela juventude e pela eternidade, a sociedade moderna frequentemente evita falar sobre a morte. No entanto, para Torres, falar da morte é, também, falar da vida que queremos viver. "Falar da morte é também falar da vida que queremos viver. Quem teme a morte, muitas vezes, teme também viver”, conta. 


A discussão sobre diretivas antecipadas de vontade, testamentos vitais e o planejamento do fim de vida é um reflexo desse preparo. Ao expressar seus desejos e valores, o indivíduo exerce sua autonomia e proporciona tranquilidade aos seus familiares, evitando decisões difíceis em momentos de grande vulnerabilidade.


A formação de profissionais de saúde em cuidados paliativos, a conscientização da população sobre seus benefícios e a desmistificação da morte são passos cruciais, por isso, o apoio psicológico e social para familiares e cuidadores é fundamental.


O luto é um processo que afeta profundamente o núcleo familiar, e oferecer redes de apoio, grupos terapêuticos e informações claras pode mitigar o sofrimento e promover a resiliência. O Brasil que envelhece não é um problema, mas um desafio que exige amadurecer as políticas de cuidados paliativos.



Despedida


Durante a produção desta reportagem, a mãe de Vanda (55), Dona Irene, morreu em decorrência do Alzheimer. O ciclo da vida se manifestou de forma concreta e dolorosa no meio do processo jornalístico. Vanda, que dedicou anos ao cuidado diário, à gestão da dor e à construção silenciosa do afeto, viveu a despedida. A morte sua mãe ajuda a contar histórias que não são apenas sobre estatísticas, políticas públicas ou abordagens médicas, mas sobre pessoas que amam, cuidam e, por fim, precisam deixar partir aqueles que tanto amaram.


Vanda Almeida e sua mãe Irene (Foto: Samira Santos)
Vanda Almeida e sua mãe Irene (Foto: Samira Santos)


6 comentários


Membro desconhecido
24 de set.

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Membro desconhecido
24 de set.

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Membro desconhecido
24 de set.

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Membro desconhecido
24 de set.

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Membro desconhecido
24 de set.

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