Números mostram que violência de gênero cresce nos dias de jogos de futebol
Quando os quatro principais times do Rio entram em campo, os casos de violência doméstica aumentam. É o que diz a recém-lançada pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). O relatório mostra que as ameaças contra mulheres crescem em 23,7%, e os casos de lesão corporal dolosa sobem 20,8% em comparação com dias sem jogos.
Esse aumento acontece em um campo já conhecido: o futebol, acompanhado muitas vezes de rivalidades intensas, frustrações com os resultados e consumo excessivo de álcool, atua como um catalisador para comportamentos agressivos já presentes nas relações familiares.
Ainda que o esporte mais praticado no país não seja a causa direta da violência, sua associação com situações de agressão revela como o esporte, no contexto brasileiro, pode intensificar os conflitos domésticos. Esse fenômeno, no entanto, não é exclusividade nacional. No Reino Unido, estudos da Universidade de Bristol mostram que a violência doméstica aumenta durante grandes eventos esportivos, como a Copa do Mundo. Quando a Inglaterra perde uma partida, o aumento de incidentes de violência doméstica alcança 38%, segundo a organização Women's Aid. No Brasil, essa tendência se manifesta principalmente em competições nacionais, como o Campeonato Brasileiro, especialmente quando resultados inesperados ou negativos frustram os torcedores.
A professora Leda Maria da Costa, da Faculdade de Comunicação Social e pesquisadora do Laboratório de Estudo em Mídias e Esporte (Leme-Uerj), ressalta que a mudança desse cenário também depende da participação ativa dos torcedores. "Eu acho que as torcidas têm o papel fundamental nessa promoção de uma cultura de respeito e de luta contra a violência da mulher", afirma. Esse papel das torcidas aponta para uma possibilidade de transformação em meio à cultura esportiva, reforçando a necessidade de campanhas que conscientizem sobre a violência e promovam comportamentos respeitosos nos estádios e fora deles.
Os casos mais extremos de violência doméstica, os feminicídios, são cada vez mais comuns no Brasil. Em 2022, foram registrados 1.437 feminicídios no país, um aumento de 6% em relação ao ano anterior. Desse total, 53,6% dos crimes foram cometidos por companheiros e 19,4% por ex-companheiros. A interiorização dos feminicídios também é um fenômeno preocupante, com muitos desses crimes ocorrendo em áreas rurais ou em municípios menores, onde a infraestrutura de apoio e segurança é mais precária.
Segundo um relatório da ONU divulgado em 2021, cerca de 45 mil mulheres e meninas são mortas por parceiros ou familiares em todo o mundo anualmente. No Brasil, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) informou que, em 2020, mais de 105 mil denúncias de violência contra a mulher foram registradas, sendo 72% referentes a violência doméstica e familiar. A Lei Maria da Penha caracteriza esse tipo de violência como qualquer ação ou omissão que cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher. A violência se agrava ainda mais durante o final de semana, quando as pessoas passam mais tempo juntas em casa, e os mecanismos de proteção e denúncia, como delegacias e serviços de emergência, estão frequentemente inacessíveis ou sobrecarregados.
O aumento da violência doméstica em dias de jogos de futebol evidencia um problema que se estende além dos estádios e arquibancadas. Para a pesquisa do FBSP, o futebol, enquanto paixão nacional, é um espaço onde as emoções correm à flor da pele, e essa intensidade muitas vezes encontra eco nas dinâmicas de violência já presentes em casa. A combinação de frustração esportiva, consumo de álcool e rivalidades acirradas cria um ambiente em que o controle emocional é perdido e a violência aflora.
Entretanto, o esporte também pode ser um espaço de transformação e conscientização. Uma campanha recente, promovida pela Secretaria da Mulher do Estado do Rio de Janeiro em parceria com os quatro grandes clubes cariocas, busca engajar jovens atletas na prevenção da violência de gênero, mostrando que o futebol pode ser uma ferramenta poderosa para a mudança social.
"Campanhas como essa, focadas nos jovens atletas, têm um papel fundamental em ajudar a desconstruir a cultura do machismo. Precisamos que o esporte promova valores de respeito e equidade, afastando práticas violentas e contribuindo para um futuro onde as relações sejam pautadas pelo diálogo e pela não-violência", afirma Paulo Sarcon, coordenador da Secretaria da Mulher e palestrante da campanha. A iniciativa com os atletas sub-20 visa transformar a visão de todos os envolvidos no universo do futebol, incluindo funcionários dos clubes, atletas e torcedores, promovendo uma cultura de respeito e conscientização contra a violência de gênero.
A análise dos dados de feminicídios por dia da semana revela um padrão claro: os finais de semana são os dias mais perigosos para as mulheres. Cerca de 37% dos feminicídios ocorrem aos sábados e domingos, com o domingo sendo o dia mais letal, responsável por 21% dos casos. Esses dias, tradicionalmente associados ao descanso e à convivência familiar, são também os momentos em que as tensões domésticas muitas vezes atingem seu ápice. As razões para isso variam, mas incluem o aumento do tempo de convivência entre os casais, consumo de álcool e, em muitos casos, tentativas frustradas de reconciliação em relacionamentos marcados por violência.
A violência de gênero, no entanto, não pode ser vista apenas sob a ótica de grandes eventos esportivos ou dos finais de semana. Embora esses momentos ultrapassem a violência, o problema é enraizado em questões culturais e estruturais que transcendem o contexto específico do futebol ou de um dia da semana. A impunidade e a falta de recursos para proteger as mulheres em situação de risco são fatores que perpetuam a violência. Muitos agressores, mesmo após cometerem crimes bárbaros, acabam cumprindo penas leves e são vistos como "pessoas de bem" na sociedade.
Dados mais recentes sobre feminicídios no Brasil revelam que, embora a violência contra a mulher tenha aumentado, ainda há uma subnotificação significativa desses casos. Além disso, a distribuição geográfica dos feminicídios mostra que a interiorização da violência está em andamento, com muitas dessas mortes ocorrendo em áreas mais isoladas, onde o acesso a serviços de proteção e justiça é limitado.
Campanhas de conscientização, como a realizada pelos clubes de futebol no Rio de Janeiro, representam um importante avanço, mas não são suficientes. “Os meios de comunicação têm um papel importante ao levar a sério a pauta da violência de gênero, pois o futebol e a sociedade andam colados; o que ocorre em um repercute sobre o outro. O esporte não pode ser um espaço onde narrativas e posturas contra as mulheres sejam banalizadas”, ressalta a professora Leda, enfatizando que o futebol, assim como outros aspectos da cultura brasileira, pode e deve ser usado como ferramenta de transformação social.
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