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Quando o sonho de educar vira pesadelo

Professores enfrentam o desafio de voltar ao trabalho após traumas


Por Luciano Alves


Professora Patrícia Motinha, em foto tirada minutos após levar um chute no rosto vindo de um estudante. Foto: Arquivo pessoal de Motinha.
Professora Patrícia Motinha, em foto tirada minutos após levar um chute no rosto vindo de um estudante. Foto: Arquivo pessoal de Motinha.

“Quando eu olhei para a frente, só vi o tênis do garoto e senti um forte impacto”, conta a professora Patrícia Motinha. Foi quando ela percebeu que havia levado um chute no rosto; o agressor era um aluno, e o rapaz tentava continuar as agressões, mas foi contido pela mãe e pela coordenadora do colégio. Patrícia gritou por socorro, e dois professores seguraram o aluno e o levaram para a secretaria. Na sala dos professores, com a ajuda de colegas, Patrícia colocou gelo no rosto; o agressor conseguiu escapar e correu até a sala dos professores, chutou a porta até quebrar, sendo  finalmente contido por vários professores e o inspetor da escola.


Patrícia ingressou na rede estadual em 2010 como professora de educação física; na turma de primeiro ano do ensino médio na qual estudava o aluno do caso relatado, lecionava  a disciplina projeto de vida. Ela conta que só viu o aluno uma única vez em sala de aula, no início de 2023. 


Só queria fazer a chamada


Patrícia ficou surpresa quando, no mês de junho, o aluno reapareceu em sala de aula. Ela diz que costuma entrar, cumprimentar a todos e logo em seguida fazer a chamada. Neste dia em que o estudante voltou, ele estava na última fileira, no canto oposto à mesa da professora, de pé e virado de costas para o quadro, falando muito alto com outros estudantes. Patrícia, incomodada com o barulho e sem conseguir fazer a chamada, pediu silêncio, sem resultado. 


Ela conta que saiu da mesa, foi até o aluno, tocou no seu ombro e pediu duas vezes: “Você pode me fazer o favor de se sentar porque preciso fazer a chamada?”. Foi quando, segundo ela, o estudante retrucou: “Quero ver quem vai me colocar sentado”. Patrícia conta que não respondeu ao menino, mas deu as costas, se dirigiu ao corredor e chamou o inspetor do turno da manhã. Ele fez o mesmo pedido de maneira mais enérgica ao estudante, que repetiu a resposta. Paulo então convidou o estudante a deixar a sala, e o menino, ao sair, proferiu uma ofensa grave à professora.


Patrícia decidiu levar o caso à secretaria, onde descobriu que o estudante, diante do excesso de faltas, já havia sido cancelado do sistema. O procedimento indicado era chamar o responsável.


Na semana seguinte, ao entrar na sala de aula, Patrícia conta que ouviu do aluno: “É você que quer me ferrar, né, me expulsar da escola, eu vou aí e vou te quebrar todinha”. Perplexa, Patrícia viu que a ameaça era séria quando o estudante caminhou na direção dela, alterado, e foi contido por outros alunos.


“Sabe quando a gente tem a sensação de que alguma coisa está errada?”. Com medo, Patrícia registrou na delegacia policial do Engenho Novo um boletim de ocorrência por ameaça, e ficou sabendo que o estudante já tinha duas passagens por roubo de celular. Patrícia foi convidada a participar de uma reunião com a mãe do aluno e a equipe do colégio, mas não sabia que o rapaz estaria presente. Foi quando acabou esmurrada. 


Patrícia, com medo e em estado de choque,  passou a ir ao psiquiatra. Ficou com a memória confusa, teve perda de atenção, desenvolveu depressão, síndrome do pânico e transtorno de estresse pós-traumático. Ficou em casa por seis meses. “Eu não tinha coragem de ir na esquina da minha casa”, conta. Quando começou a sair,  não podia ver um adolescente na rua que já entrava em estado de pânico. 


Readaptação


Após 13 meses de afastamento, exames e muita luta, Patrícia voltou ao trabalho ainda em tratamento, na condição de readaptada, com uma função na secretaria de outra escola e a recomendação médica de não ter contato direto com os alunos. O professor readaptado é aquele realocado para um novo cargo, geralmente na área administrativa ou pedagógica, em razão de limitações adquiridas por problema de saúde. A readaptação é um direito previsto na Constituição Federal (art. 37, 13), que permite ao servidor público exercer funções compatíveis com suas limitações de saúde, evitando uma possível aposentadoria por invalidez.


De acordo com o painel de recursos humanos do estado do Rio de Janeiro, há 51.454 professores efetivos no estado. Por meio da Lei de Acesso à Informação, a Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro (Seeduc) informou, que, deste total, 3.010 são professores readaptados. No documento, a Seeduc informou ainda o acompanhamento deste número desde 2020:

Gráfico que mostra a evolução do comportamento do número de professores readaptados desde 2020, tomando por base o mês de março de cada ano. Feito por Luciano Alves
Gráfico que mostra a evolução do comportamento do número de professores readaptados desde 2020, tomando por base o mês de março de cada ano. Feito por Luciano Alves

Pode acontecer com qualquer um


Marisa Guida de Assis, professora de artes visuais da rede estadual há 16 anos, também foi readaptada após cinco anos de trabalho.  Ela se define como arte educadora, porque sempre trabalhou com a parte teatral, além de ter domínio musical.


Marisa conta que teve um câncer e precisou ficar dois anos em tratamento afastada da escola onde  lecionava, em Guapimirim. Retornou como professora readaptada, pois o parecer médico atestou que ela não poderia carregar peso maior que dois quilos na superior do corpo. Além disso, os médicos entenderam que a doença desenvolvida tinha fundo emocional desencadeado pela saída de sua filha de casa e que a sala de aula como um local de estresse negativo, que poderia ser um gatilho para a enfermidade da professora.


No entanto, Marisa explica que mesmo fora estar fora de sala de aula para ela nunca foi sinônimo de estagnação, buscando se reinventar na profissão. “Eu criei meu próprio sistema de trabalho, não fiquei perdida, não fiquei dizendo que não podia isso ou aquilo porque estava doente; eu queria tudo”. Resolveu executar um projeto de arte educação, envolvendo violão, desenho básico e artes visuais em oficinas com os alunos.


Quando foi transferida para uma escola no Rio de Janeiro, ficou alocada na biblioteca. “Aqui eu me descobri, nesta história dos livros”, conta. Por sugestão da diretora atual, decidiu desenvolver a chamada “hora do conto”, com leituras combinadas com canto e teatralidade, ou seja, uma espécie de história cantada. O objetivo, segundo a professora, é desenvolver o afeto do aluno pelo professor e vice-versa, na intenção de promover a cultura da paz dentro da escola. Marisa avalia que atualmente os alunos estão mais violentos e por vezes transformam uma simples palavra numa guerra. “A gente, como professor, tem que ter sabedoria. Ficamos ofendidos mas temos que saber lidar com a situação e não responder da mesma forma, talvez deixando para conversar num outro momento com mais calma”.



Marisa Guida durante preparação para uma atividade de leitura afetiva. Fonte: Arquivo pessoal de Marisa


Afetividade para ressignificar a vida


Para promover a cultura antiviolência, Marisa buscou trabalhar a afetividade e valorização da autoestima com os alunos. Desenvolveu com eles a brincadeira do acróstico, na qual cada um escrevia seu nome na vertical, e, na horizontal, aproveitavam as letras para colocar adjetivos que eles julgassem apropriados para si mesmos. “Eles vivem num lugar de violência, precisam amadurecer muito rápido, e assim necessitam  de um espaço onde possam expandir sua infantilidade”, avalia a professora.


Brincadeira do acróstico desenvolvida por Marisa com os alunos. Foto: Luciano Alves
Brincadeira do acróstico desenvolvida por Marisa com os alunos. Foto: Luciano Alves

Patrícia também foi superando o trauma. “Eu me dividi em duas. A Patrícia que existia antes não existe mais, tive um enterro em vida, a professora morreu”, afirma. Teve carinho e da gentileza de muitas pessoas que a procuraram para oferecer apoio. Patrícia conta que o sonho de trabalhar com educação acabou, mas a vontade de fazer o bem não. Resolveu se matricular na faculdade de nutrição para, futuramente, ajudar na dieta de mulheres que estão na menopausa. Luta contra uma depressão severa, mas se sente rodeada por amor. “A gente vai se recuperando e mantendo o coração quente pelo amor recebido, se eu não tivesse tido isso, talvez não estaria dando essa entrevista hoje”, afirma.



1 Comment


Apenas alguns (graves) casos que demonstram o desafio de ser educador numa cidade como o Rio de Janeiro, onde a educação "parece" não ser prioridade.


Sob qual aspecto vale a pena?


Excelente matéria.

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