Quando só jogar não basta: o desafio da representatividade negra nos eSports
- Luiz Gustavo Almeida
- há 7 dias
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Mesmo com o crescimento explosivo do setor, jogadores e profissionais negros ainda esbarram em preconceito, barreiras econômicas e invisibilidade em um dos maiores mercados do mundo
Por Luiz Gustavo

Num Brasil onde mais da metade da população se declara preta ou parda, a representatividade negra nos eSports ainda é mínima — e os motivos vão além da ausência de jogadores nas grandes finais. Atletas como Jubs, destaque no Valorant, e fNb, referência no League of Legends, mostram que é possível alcançar o topo. Mas suas trajetórias também escancaram o racismo persistente e estrutural.
"Desde o momento que você entra nesse meio, já sabe que vai ser diferente", diz Marco Antonio Seredynski (25), o Serê, comentarista brasileiro em ligas internacionais como a LEC (Europa) e a LPLOL (Portugal). Para ele, ser um dos poucos negros em ambientes de elite nos eSports é uma experiência solitária e, por vezes, hostil. "Você sente os olhares. É como se estivesse sempre em observação. E quando vêm os ataques, você tem que decidir se responde ou segue em frente. Eu escolho continuar, porque não dá para deixar uma voz minúscula fazer barulho", afirma, em entrevista ao Rampas.

Nos últimos anos, os esportes eletrônicos deixaram de ser um nicho para se tornar um fenômeno global. O mercado de eSports deve movimentar mais de 2 bilhões de dólares até 2025, com o Brasil figurando entre os três maiores públicos de games do mundo, segundo a consultoria Newzoo. Mas que passa longe da diversidade racial.
Anônimo e tóxico, racismo começa nos bastidores
A violência racial nos eSports nem sempre acontece diante das câmeras. Ela se manifesta de forma constante e sutil — nos chats de partidas ranqueadas, nas redes sociais e até dentro das próprias organizações. A toxicidade do ambiente online, aliada ao anonimato, abre espaço para comentários racistas e xenofóbicos, muitas vezes naturalizados ou ignorados pelas plataformas. Casos de injúria racial se tornaram mais visíveis nos últimos anos. Um dos episódios mais críticos ocorreu em 2020, quando o jogador fNb, à época representando a FURIA, foi chamado de “macaco” em uma partida ranqueada por outro jogador, José Eduardo, conhecido como Frosty. A repercussão foi intensa. Dois anos depois, quando Frosty foi contratado pela LOUD, uma das maiores organizações de eSports, sua demissão foi anunciada no mesmo dia, após protestos da comunidade.
A polêmica voltou à tona em 2023, quando Frosty foi contratado pela RED Canids Kalunga, atual equipe de fNb. A organização alegou que a decisão foi tomada com o aval do próprio fNb. “Ele se mostrou muito tranquilo em relação ao acontecido e nos disse que não teria nenhum problema em trabalhar com o atleta”, declarou um dos donos da equipe nas redes sociais. Mas o desconforto persistiu. TitaN, companheiro de equipe, foi direto: “Racismo nunca será perdoado.”
Casos como esse expõem o dilema vivido por muitos atletas negros: perdoar o racismo para não comprometer a carreira? Silenciar-se para manter o ambiente profissional? A resposta nem sempre é simples.
Das comunidades para o mundo: o impacto do acesso
Além do preconceito, o acesso ao mundo dos eSports também é uma barreira. Equipamentos de ponta, como computadores gamers, custam caro — um luxo distante para grande parte da juventude negra e periférica. “Ter um PC bom é muito caro no Brasil. Muita gente preta, que já enfrenta dificuldade para o básico, acaba ficando de fora”, explica Serê.
Nesse contexto, jogos como Free Fire funcionam como uma porta de entrada. Desenvolvido para rodar em celulares simples, o jogo popularizou-se em comunidades de baixa renda e democratizou o cenário competitivo. E deu certo: o Brasil venceu o Mundial de Free Fire em 2019 com o time do Corinthians e repetiu o feito em 2024 com o Fluxo, provando que, quando o acesso é viável, o talento emerge.

A presença negra no alto escalão dos eSports ainda é tratada como exceção. Segundo Serê, mudar essa realidade exige mais do que inclusão simbólica. “Não é só colocar um rosto preto em um comercial e achar que resolveu. Precisa haver estrutura, formação, apoio real”, defende. Ele cita como exemplo positivo a LOUD, que durante certo período oferecia suporte completo aos seus atletas, desde visibilidade nas redes sociais até treinamento técnico. Além disso, iniciativas como o AfroGames, que forma jovens de comunidades cariocas para o mercado dos games com suporte técnico e psicológico, têm mostrado que é possível criar caminhos reais de inclusão.
O futuro é agora — mas ainda incerto
Após o boom durante a pandemia, o setor vive uma fase de ajustes financeiros — o chamado eSports Winter, marcado por cortes de patrocínio, demissões e reestruturações. Em meio a esse cenário, construir uma carreira estável nos games exige planejamento. “Não dá pra romantizar. É preciso ter um plano B. A maioria ainda não consegue viver só dos eSports”, alerta Serê. Mesmo assim, ele acredita que ainda há espaço para crescimento — desde que haja vontade real de mudança. “Pode melhorar, mas ainda é um ‘e se’ muito grande. Enquanto não houver transformação estrutural, tudo segue dependendo de exceções.”
A caminhada ainda é longa. Mas nomes como fNb, Jubs e Serê mostram que é possível resistir — e inspirar. Para que os eSports deixem de ser um reflexo das desigualdades do mundo real, é preciso que fãs, empresas, plataformas e organizações assumam sua parte na responsabilidade. Afinal, o jogo só é justo quando todo mundo tem o direito de jogar.
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