Localizado no Arco do Teles, espaço une arte, cultura e ativismo para promover visibilidade e inclusão
É quinta-feira à noite, e o centro do Rio está pouco movimentado por causa da chuva. Entre as construções antigas do Arco do Teles, nos arredores da Praça XV, há um espaço que se enche aos poucos, com arte, cultura e diversidade. Situado em uma das áreas mais tradicionais da boemia carioca, a Queerioca é o primeiro centro de arte e cultura LGBTQIAPN+ da cidade do Rio de Janeiro. O nome do espaço vem da junção das palavras queer, termo de origem inglesa usado para representar pessoas que não se identificam com os padrões tradicionais de gênero e de sexualidade, e carioca. Idealizado pelo casal Cristina Flores e Laura Castro, o local abre portas para exposições artísticas, exibição de curtas e longas-metragens, apresentações musicais e competições de dança. E, principalmente, diversidade.
Quem passava pela Travessa do Comércio podia ver luzes coloridas iluminando o espaço do casarão, onde o som da música ficava cada vez mais alto. No interior, a decoração do ambiente mescla fotografias, livros, esculturas, bandeiras e pinturas penduradas na parede. Quem chega, normalmente usando indumentárias marcantes, é recebido com alegria por amigos que já estão no local.
Cofundadora da casa, Laura Castro conta ao Rampas que o projeto começou a ser idealizado por ela e sua esposa, a atriz Cristina Flores, durante a pandemia de covid-19 diante da falta de espaços de referência de cultura LGBT na cidade do Rio. “ Com a escassez de possibilidades de eventos na pandemia, a gente começou a pensar num espaço seguro para encontros e produções artísticas LGBT. Daí veio o nome Queerioca, uma invenção da Cristina”, conta a a empresária. “Nesse período, os eventos aconteciam na nossa casa. Nós recebíamos as pessoas para criar um espaço de trocas e construções. Agora, esse sonho se materializou em um centro cultural.”
Laura, que é também artista e produtora cultural, relata que uma das missões de sua vida sempre foi a de produzir cultura LGBT: “Eu, uma mulher lésbica, passei a vida sem muitas referências. Quando eu tinha 18 anos, eram pouquíssimos os filmes, livros, peças de teatro que retratavam a nossa vida e história. Quando eu me entendi, fui indo atrás das poucas coisas que tinham para me enxergar no mundo”.
Reviver Cultural
A Queerioca faz parte do programa Reviver Cultural, edital lançado pela prefeitura do Rio de Janeiro. O projeto visa revitalizar os espaços ociosos na região central do município, oferecendo imóveis para a instalação de estabelecimentos artísticos e culturais. Os projetos aprovados no edital são contemplados por um subsídio de aluguel da prefeitura.
A Queerioca ocupa um casarão antigo revitalizado no Arco do Teles, em frente à antiga residência da cantora Carmen Miranda. Atualmente, se sustenta com as vendas do bar interno e busca constantemente parcerias para financiamento e desenvolvimento da programação cultural.
Manifestações artísticas como ato de resistência
Uma das programações mais populares da Queerioca é a Mini Ball, evento de ballroom realizado semanalmente na casa. Coordenadas pela musicista travesti Angeliq Farnocchia, as balls são competições de vogue, estilo de dança que mistura elementos de balé, jazz e dança moderna. Originadas em meados da década de 1970 nos Estados Unidos, as balls ou ballrooms surgiram dentro das comunidades latinas e negras norte-americanas. Nessas competições, as participantes são avaliadas em diferentes categorias, como figurino, atitude e habilidades performáticas. “A comunidade ballroom, para além de uma cultura, é uma ferramenta de desenvolvimento pessoal. Exaltando corpos que são colocados à margem da sociedade, a ballroom permite uma nova ótica social que viabiliza a entrada de pessoas trans e pretas para o mercado de trabalho artístico”, afirma Angeliq, organizadora dos eventos.
Outra atividade fixa do espaço é o cineclube Queerioca Cine, que exibe produções cinematográficas com temas ligados à diversidade sexual e de gênero, além de filmes produzidos por artistas LGBTQIAPN+. A iniciativa é uma parceria entre as produtoras culturais BLG Entretenimento e Reprodutora. Darcy Tenorio, assistente de produção do cineclube, acredita no poder do cinema como uma ferramenta de resistência da comunidade. “O cinema é aquela janelinha que mostra as realidades, sejam elas quais forem. Mostra as nossas vivências, e quando ele é feito por pessoas LGBT, traz isso de uma forma muito sincera. O cinema é uma forma de mostrar que a gente sente dor, que a gente ri, que a gente vive diversas coisas”, relata Darcy.
A reportagem acompanhou uma sessão do cineclube. Na ocasião, foi exibido o documentário Uýra:A retomada da floresta, em que Uýra, uma artista trans indígena, viaja pela Amazônia em uma jornada de autodescoberta.
Além das atividades ligadas ao cinema e aos eventos de ballroom, a Queerioca também oferece exposições de arte semestrais, peças de teatro, shows e eventos de literatura. A cofundadora conta que a casa já realizou ações pontuais na promoção de atividades ligadas à saúde e educação da comunidade LGBTQIAPN+, como debates e rodas de conversa em parceria com o Centro de Referência da Cidadania LGBT Capital, órgão ligado ao estado do Rio de Janeiro que oferece atendimentos jurídico, social e psicológico às pessoas da comunidade.
Neste mês de dezembro, o centro cultural abrigará a Casa Queer, evento literário organizado pela Feira Literária de Paraty com diversas editoras de livros LGBT. O evento contará com lançamentos de livros e debates sobre o Dezembro Vermelho, mês da conscientização sobre a luta contra a Aids.
Inspiração para o cenário carioca
Como primeiro centro cultural dedicado à comunidade LGBTQIAPN+ na cidade, a Queerioca se tornou um espaço de encontro e troca, para onde os artistas querem levar suas produções. “O centro é um espaço que inspira artistas e encoraja as pessoas. Um espaço de segurança onde a temática do que é a cultura queer pode ser debatida, onde pessoas e artistas LGBT podem se encontrar, e essa troca fortalece a nossa coragem para seguir produzindo cultura fora do armário”, afirma a cofundadora Laura.
Makayla Sabino, de 24 anos, artista e influenciadora, vive há mais de 11 anos imersa na cultura ballroom. É uma espécie de líder desse universo, sendo chamada de “mãe” por seus seguidores nas redes sociais. Para ela, a Queerioca é um espaço de segurança, onde o preconceito, o racismo e a transfobia não têm lugar.
Mar Oliveira, homem trans e frequentador da casa, afirma ter tido uma experiência positiva no centro cultural. Ele e a namorada, Natalie Soares, comentam que essas competições não costumam ter muita visibilidade e divulgação, e que já fizeram grandes deslocamentos pela cidade para participar desses eventos.
Para as cofundadoras, o centro cultural é uma espécie de legado para as novas gerações, incluindo seus quatro filhos. “Vivemos lacunas de representação. A gente não tinha um desenho animado ou um livrinho para apresentá-los onde duas mães eram uma possibilidade”, diz Laura. Na avaliação dela, a Queerioca é também um legado delas para os próprios filhos e os filhos de outras famílias homoafetivas. “É para que eles cresçam no mundo com outras referências, o que já vem acontecendo. Sentir essa força de união e acolhimento da comunidade e construir um futuro diferente para os nossos filhos é o que a gente deseja com esse projeto.”
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