Bailarinos enfrentam diariamente o desafio de viver de sua arte
“Eu esperava todo mundo dormir e ia ver o programa do Carlos Imperial na extinta TVS. Ficava tentando pegar as coreografias do coreógrafo Edson Far”. É assim que Ney Andrade, 56 anos, conta como, ainda na adolescência, começou sua história com a dança. Assim como ele, muitos bailarinos sentiram atração pela arte desde cedo, mas tiveram receio de manifestar a paixão diante dos preconceitos e estigmas que envolvem a profissão no Brasil.
Além de Andrade, coreógrafo e professor de dança com especialização em consciência corporal e psicomotricidade, outros dois bailarinos contaram ao Rampas os desafios diários para sobreviver profissionalmente da atividade: Jardel Lemos, 37 anos, docente em dança-educação na escola de ensino formal Marista-Barra da Tijuca; e Luo Souza, 36 anos, acompanhante terapêutico especializado em Análise do Comportamento Aplicada (ABA). Para eles, o ofício sofre o impacto da regulamentação precária e da falta de valorização no mercado. Os profissionais da dança dizem que empregadores e boa parte da sociedade não entendem a atividade como algo sério, que requer muito estudo e dedicação.
Registro pouco valorizado, salário baixo
No Brasil, a profissão da dança é regulamentada pela lei 6533/1978, que reconhece o bailarino como um profissional da área artística. Para exercer o ofício é preciso obter o registro profissional (DRT), emitido pela Delegacia Regional do Trabalho. Mas o registro só sai depois de uma espécie de banca examinadora realizada por uma entidade sindical. No Rio de Janeiro, o Sindicato dos Profissionais da Dança no Rio de de Janeiro (SPDRJ) exige, para profissionalização, diploma expedido por curso técnico ou diploma de bacharelado expedido por faculdade de dança, a realização de provas práticas e teóricas aplicadas pelo próprio sindicato, além de análise curricular. Vale ressaltar que, embora existam muitas escolas de dança informais no estado do Rio, apenas sete são reconhecidas oficialmente para fins de profissionalização, conforme informa o site do SPDRJ.
Embora exista regulamentação, Andrade afirma que ela é muito frágil, pois falta fiscalização. Apenas algumas empresas, como a Globo, solicitam o DRT do bailarino, mas a maioria dos contratantes não faz esta exigência. “Você vai lá, dança, ganha o cachê e ninguém fiscaliza”, diz o bailarino. Ele afirma que, diante da necessidade de sobrevivência, o bailarino acaba não se valorizando e dança por qualquer valor, ou às vezes até de graça para obter likes. O Rock in Rio seria um exemplo de evento com contratos de valores ínfimos. Segundo o coreógrafo, o sindicato tentou intervir, mas a investida fracassou porque a fila de pessoas para dançar no festival sem receber nada estava gigante.
Para Andrade, existem bailarinos que abrem mão do pagamento adequado pela oportunidade de estarem dançando ao lado de uma celebridade. Ele ressalta que não tem nada contra celebridades, mas se preocupa com a questão da desvalorização do profissional de dança, não apenas no sentido financeiro mas também no sentido criativo, pois muitos desses trabalhos envolvem repetições aleatórias que fogem de uma proposta mais conceitual, com pesquisa e aprofundamento. “Isso desqualifica o profissional, que acaba sendo só mais um na multidão”, lamenta o bailarino, saudoso de épocas mais promissoras. Ele conta que, até o início dos anos 2000, havia na cidade muitas casas de show como Scala, Plataforma e Oba Oba, que ofereciam aos artistas uma fonte de renda e trabalho regulares, sem necessidade de depender de audições para espetáculos eventuais.
A formação de um bailarino exige muitos anos de estudo. Um curso técnico ou profissionalizante costuma durar de dois a três anos. Já a faculdade de dança leva pelo menos quatro anos para ser concluída. Existem ainda os cursos livres, que não têm uma duração específica mas podem contribuir significativamente para que a pessoa obtenha seu registro profissional. Andrade cursou dança em uma escola de formação profissional de Cascadura, bairro da Zona Norte do Rio, tendo se formado em 1987. Depois, graduou-se em Educação Física, que, por muitos anos, foi a garantia de carteira assinada – a dança era o lado prazeroso.
Ensinando a dançar
As aulas de dança acabam sendo um caminho rotineiro para muitos profissionais. Mas os problemas de regulamentação e valorização do ofício, bem como outros sobre o entendimento da dança como arte, acabam se repetindo em muitos desses estabelecimentos – tanto no ensino formal como em escolinhas livres, principalmente aquelas não oficializadas pelo SPDRJ.
Jardel Lemos dá aulas de dança em uma escola do primeiro segmento do ensino fundamental, no Rio de Janeiro, função que exige o curso superior de licenciatura em dança. Segundo ele, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) não fornece diretrizes abrangentes e nem uma compreensão do que se entende como educação em dança, então o direcionamento depende muito do professor e de sua formação.
Ele lamenta a escassez de material didático disponível no mercado e a ausência de espaços disponibilizados pela escola para as atividades práticas. Para o professor, falta compreensão da comunidade escolar sobre as aulas de dança. Muitos pensam que ele está ali apenas para criar coreografias para datas festivas. “Se estamos falando de educação em dança, a proposta vai muito além disso”, afirma.
No caso das escolas livres de dança, Ney Andrade afirma que muitas são conduzidas por pessoas sem respaldo profissional, e isso pode comprometer até a integridade física do aluno. No entanto, a maioria dos pais não tem essa preocupação, já que a dança é vista como recreação e a escola é escolhida pelo custo.. Ele conta que já teve uma escola de dança de 1996 a 2014, porém as dificuldades financeiras eram inúmeras. Os alunos, mesmo os matriculados, não eram assíduos, justamente porque a instituição e a atividade não são vistas com a mesma seriedade de uma escola tradicional de ensino. “Muitos pais querem apenas o resultado final, que é a criança brilhando num festival, deixando para segundo plano a proposta principal, que é a formação cognitiva e psicomotora que a dança pode proporcionar”, conta. Assim, a escola de dança acaba tendo que sobreviver de pequenos eventos ou alguma renda extra do dono. “O dinheiro que entra é suficiente apenas para pagar as contas, se manter e rezar para no mês seguinte não sair aluno”, afirma o coreógrafo e professor de dança.
Os festivais de dança são uma fonte de rendimento para as escolas e para profissionais como Andrade. Quando as escolas se inscrevem em concursos do tipo, os alunos se mantêm assíduos, pois querem estar preparados para a apresentação. Também acabam atraindo para a escola os amigos que vão assistir ao espetáculo. Ele lembra que os festivais também movimentam a economia local, pois, além dos dançarinos, envolvem o pessoal da cantina, da limpeza, e outros serviços como o aluguel de mesas e cadeiras.
Dança como parte da educação
A educação em dança tem o objetivo de proporcionar à criança impulso na expressão, compreensão e na interação do seu corpo com outras pessoas, o espaço e os objetos. Outras competências como flexibilidade, equilíbrio, coordenação motora, ritmo e fluência também são trabalhadas, possibilitando que o aluno desenvolva sua capacidade de se comunicar, interpretar, criar e experimentar através da dança, com maior domínio corporal e melhor postura. Para Lemos, é também uma oportunidade de relacionar a dança com sua própria comunidade – como por exemplo o funk e o samba no Rio de Janeiro. A dança tem, em sua visão, um caráter interdisciplinar, conversando com a história e a geografia.
Luo Sousa, por sua vez, trabalha com crianças com deficiência e neurodivergentes, numa vertente que conjuga a psicologia com a dança. Ele conta que seu amor pela dança começou cedo, na igreja que frequentava, e então foi procurar aulas para se aperfeiçoar. Porém, tinha que fazer tudo escondido por causa do preconceito do pai, que era pastor. Mesmo assim seguiu em frente e se profissionalizou. Chegou a ter seu estúdio de dança, mas precisou fechar. “A gente acaba optando pelo sonho ou por viver bem, por ter dinheiro.”
Uma nova perspectiva se abriu no atual emprego, como educador cultural na Secretaria da Pessoa com Deficiência na cidade do Rio de Janeiro, para estimular as habilidades da dança em crianças atípicas. Ele se apaixonou pelo trabalho e foi buscar aperfeiçoamento ao iniciar a graduação em Psicologia. Ele explica que a dança pode atuar como poderosa ferramenta de regulação emocional ao utilizar o movimento como uma linguagem universal, que transcende limitações verbais e cognitivas.“Utilizo a dança e a psicologia para criar um espaço terapêutico que atenda às necessidades únicas de crianças atípicas”, resume.
Sonhos na ponta dos pés
As histórias desses veteranos da dança contam dificuldades da profissão e maneiras que encontraram para não desistirem dos seus sonhos. Profissionais mais jovens também mantêm a esperança acesa. É o caso de Ana Cecília Trentin, 19 anos, e Marcus Vinícius Araújo, 22 anos, ambos alunos de dança da Allegro Academia de Artes em Nova Iguaçu.
Ana Cecília diz que sua história com a dança começou já na infância, quando começou a fazer aulas, mas levou com maior seriedade e resolveu profissionalizar-se apenas na época da pandemia da Covid-19. Segundo Trentin, nesse período, ela sentiu que na verdade foi a dança que a escolheu. “A arte salva, te cura de muita coisa, te levanta de lugares onde você nunca imaginou estar”, afirma. Ela faz faculdade de arquitetura mas sonha, no futuro, conjugar esta profissão com a dança, tendo sua academia e fazendo diferença na vida de muitas crianças.
Marcus Vinícius é aluno bolsista da academia e, devido à sua condição financeira, só conseguiu ter o primeiro acesso à dança através de um projeto social na sua cidade e depois no Sesc de Nova Iguaçu. Ele também tem objetivos dentro da dança, mas demorou a pensar que a atividade estaria aberta a ele. “Ser preto, pobre e da Baixada Fluminense exige uma força de vontade gigantesca, porque o caminho não facilita nada”, afirma.
Mas sonhos não envelhecem, principalmente quando se fala em arte. Andrade, aos 56, pretende retomar sua companhia de dança. Uma possibilidade é se arriscar e tentar manter a companhia com dinheiro só de bilheteria, contando com apresentações que possam surgir, mas ele não descarta buscar patrocinadores, como fizeram as companhias Corpo, Deborah Colker e do Teatro Municipal, por leis de incentivo à cultura.
O sonho de Andrade, que está se especializando em danças de matriz africana, é ter uma companhia formada só com corpos negros em cena, fazendo da dança uma bandeira contra o racismo e intolerância religiosa. Aos mais jovens, diz que não desistam. “Eu mesmo poderia ter desistido lá nos anos 90, quando me diziam: ‘Você é talentoso, pena que é preto’.” Contra o preconceito, ele aposta na dedicação e no talento para transmitir sua arte, emocionar o público e, de quebra, levar dinheiro para casa – fazendo a família também acreditar no sonho.
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