ONG criada por universitários humaniza ambiente hospitalar e oferece a quem está em tratamento chance de viajar pelo universo digital
Fátima levanta a mão para tentar alcançar a imagem de Maria. Ao fundo, ela enxerga centenas de fiéis cantando e seguindo a procissão de Nossa Senhora de Fátima. A ex-camelô Fátima Mendonça da Silva, de 60 anos, estava visitando o Santuário da Virgem de mesmo nome que o seu em Portugal. Para essa visita acontecer, ela não teve que entrar em um avião e atravessar o Oceano Atlântico. Sentada em sua maca no Hospital Universitário Gaffrée Guinle, na Tijuca, utilizando óculos de realidade virtual, Fátima se emocionava com a procissão: “Parece que estou dentro do Santuário”.
A experiência só foi possível graças à ONG Virtualidade, projeto montado por ex-alunos e alunos de Medicina da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) que leva experiências de realidade virtual para idosos e pacientes internados no SUS. Lucas Campos, um dos fundadores, hoje médico e residente de neurologia da UFF, conta que ainda era universitário quando a ideia inicial surgiu a partir do contato com uma paciente idosa durante a pandemia:
“Eu estava treinando anamnese, que é aquela primeira conversa para conhecer a paciente, e pedi desculpas ao abordá-la, porque não queria incomodar. Afinal, eu estava apenas treinando, ela já havia sido atendida. Nesse momento, a paciente disse que o momento em que ela mais se sentia bem era quando alguém do hospital vinha falar com ela”, lembra Lucas. Ele ressalta que nesse período, devido às restrições de visitações, os pacientes sofriam muito com a falta de estímulos sociais e cognitivos.
A ideia de usar realidade virtual começou como um projeto de extensão da UniRio, a fim de levar algum tipo de entretenimento a pacientes idosos internados no Gaffreé Guinle. Depois que pacientes de outras faixas etárias começaram a pedir para participar da experiência, Lucas e seu colega de faculdade João Pedro Hazin criaram a ONG, para ajudar na captção de recursos e aumentar o público-alvo do projeto.
Atualmente, o Virtualidade proporciona imersão de realidade virtual para idosos em instituições de longa permanência, pacientes internados ou que estão realizando tratamento quimioterápico e transfusões de sangue, para aqueles que estão sofrendo de ansiedade no pré-operatório ou então que sentem falta de praticar a sua fé no hospital. Lucas explica que cada imersão é personalizada de acordo com a vida do paciente. Os voluntários do projeto, ao abordarem os pacientes, fazem perguntas pessoais e procuram entender qual ambiente imersivo é o mais adequado.
“Já chegamos a levar um paciente para passear em sua cidade natal, já levamos outro para andar de moto, e teve um que pediu para ir ao Palácio de Versalhes porque era arquiteto e tinha feito seu mestrado sobre o castelo”, conta o médico.
A estudante de Medicina da UniRio e voluntária do projeto Bruna Meggetto Allak, 20, já sabia da relação da paciente Fátima com a Igreja Católica antes mesmo de abordá-la para participar da imersão. Bruna é bolsista de iniciação científica e sua pesquisa está diretamente vinculada ao projeto, analisando a influência da fé e da espiritualidade nos pacientes. “No Virtualidade, estou aprendendo a conhecer um lado do paciente que vai além do diagnóstico. Tenho certeza que essa experiência vai me transformar em uma médica melhor”, diz a estudante, que está no quinto período do curso e participa da Ong desde o ano passado.
Fátima estava internada no hospital havia pelo menos dois dias, e seu diagnóstico ainda estava sendo investigado pelos médicos. A idosa estava acompanhada pelo seu filho, um homem adulto, que havia montado uma cama com uma colcha e banquinhos ao lado de sua maca. Fátima sentia falta de ar e muito cansaço, mas, demonstrou curiosidade para usar os óculos ao ser abordada por Bruna e por Paulo Fernando Martins, 21, outro estudante de Medicina da Unirio e voluntário do projeto.
Os voluntários conectaram o aparelho a internet e escolheram entre imersões disponíveis de forma gratuita no Youtube. Antes de começar, além das perguntas para personalizar a experiência, Fátima teve que responder algumas informações sobre o seu estado emocional naquele momento. Mesmo diante da incerteza de seu diagnóstico, ela estava calma e contou sobre sua promessa de que assim que saísse do hospital, nunca mais encostaria em um cigarro.
Fátima havia pedido para ir à Igreja de Nossa Senhora de Fátima aqui no Rio de Janeiro mesmo, mas, abriu um sorriso quando a voluntária disse que conseguiria levá-la ao Santuário de Portugal. Os óculos do projeto permitem que o paciente escute ao fundo o som da imersão. De longe, seu filho tirava fotos com o celular. Quando os fiéis começaram a cantar Ave Maria, as lágrimas de Fátima começaram a escorrer para fora dos óculos.
“Eu até já assisti à procissão de Fátima na TV, mas ter essa experiência é muito diferente. Eu me senti dentro da igreja, parecia que eu estava lá”, contou Fátima depois de retirar o equipamento. Ainda emocionada, perguntou a Bruna e Paulo quando eles estariam novamente oferecendo a experiência. Depois, Fátima questionou Paulo sobre sua aparência cansada e deu uma bronca no rapaz ao saber que ele tinha virado a noite estudando. Os dois haviam se conhecido naquele mesmo dia. “Para mim, participar desse projeto é minha forma de retribuir à sociedade a oportunidade de estar estudando Medicina em uma universidade pública”, explica Paulo.
Mesmo oferecendo a experiência para outras idades, Lucas ressalta que o atendimento ao idoso ainda é o foco principal da Ong: “É uma tentativa de incluir digitalmente a população idosa, que muitas vezes acaba ficando de lado quando se trata de tecnologia”. Segundo ele, o projeto já atendeu mais de 500 pacientes, e cada um tem uma nova história. “Isso que eu mais gosto no projeto. Quem conduz a ação é o paciente, e estamos ali permitindo que ele nos conte uma história que não tem nada a ver com a doença.”
O projeto não recebe nenhum tipo de patrocínio. Recebe doações pontuais, mas a grande parte do financiamento é feita pelos próprios voluntários. Neste ano, ultrapassou as barreiras da UniRio e tem recebido voluntários de outras universidades e de outros cursos além da área da saúde.
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