Resistência e bons negócios em verde e rosa
- Samira Santos

- 11 de jul.
- 5 min de leitura
Atualizado: 14 de set.
As histórias de quem transformou dor em força e hoje usa o próprio ganha-pão para mudar a vida do morro da Mangueira
Por Samira Santos

O relógio marca 7h20 da manhã e Elton Jorge da Silva, 34 anos, está ajudando na cozinha da Creche Comunitária Montessori, próxima do Morro da Mangueira. O barulho das panelas se mistura às vozes das crianças que chegam sorrindo. “Aqui cada criança é tratada com amor, educação e responsabilidade. Eles aprendem a comer com garfo, faca e copo de vidro”, conta com orgulho Elton, fundador e sócio da creche. O empreendedorismo negro na Mangueira surge da necessidade e da vontade de construir um futuro diferente do passado que muitos carregam. Uma história marcada por desigualdades, mas também por luta.
O Rampas ouviu três histórias que mostram como as trajetórias desses personagens se entrelaçam com a Mangueira. É uma rotina de trabalho dura, que se repete na creche, no estúdio de bronzeamento de Ana Carolina Miranda e na loja de roupas Verde e Rosa, de João Victor Xavier. Muito além de simples empreendimentos, esses espaços se tornam locais de resistência, fortalecimento da autoestima e transformação social dentro da comunidade.E seus donos são agentes ativos de uma transformação profunda na comunidade.
Elton Jorge é cria da Mangueira e carrega nas lembranças as marcas de uma infância marcada pela resistência. “Teve vezes em que a gente dormiu na rua. E, quando chovia, eu já começava a chorar porque sabia que onde tinha lâmpada começava a pingar”, conta. Hoje, ele comanda, junto com sua irmã Leila, a Creche Comunitária Montessori, que atende quase 300 crianças e gera mais de 60 empregos diretos e indiretos. O espaço acolhe mães da própria comunidade, muitas delas funcionárias da creche, que encontram ali uma rede de apoio e desenvolvimento.
Resistir é algo que faz parte da história da Mangueira, um bairro que o Brasil conhece pela escola de samba. Nasceu como muitas favelas do Rio de Janeiro, fruto da exclusão social e do racismo que empurrou a população negra para as margens da cidade. Um grupo foi acomodado na área do Morro dos Telégrafos, por abrigar o primeiro telégrafo aéreo do país. No século XIX, nas terras que pertenciam ao Visconde de Niterói, doadas pelo imperador Dom Pedro II. Anos depois, ganhou o nome de Mangueira, em referência à fábrica de chapéus que funcionava ali e às muitas mangueiras que davam vida ao lugar.
O morro da Mangueira começou a se consolidar como moradia no início do século XX, quando reformas urbanas na Quinta da Boa Vista, em 1908, desalojaram dezenas de famílias, muitas delas de soldados, que subiram o morro carregando os restos das casas demolidas. O cenário se agravou em 1916, quando um grande incêndio no Morro de Santo Antônio, no centro da cidade, forçou ainda mais famílias a buscarem abrigo na Mangueira. Esses primeiros moradores eram, em sua maioria, negros, descendentes de pessoas escravizadas, expulsos dos cortiços e das áreas centrais que foram derrubadas para abrir espaço para a urbanização. Tentativas de expulsão, como a que ocorreu em 1935 pelos herdeiros do Visconde, foram barradas graças ao apoio da prefeitura.

Caminhar pelos becos da Mangueira é perceber como a cultura, a coletividade e o senso de pertencimento são pilares que sustentam não só a comunidade, mas também as trajetórias de muitos empreendedores que ali vivem e trabalham. Eles são, antes de tudo, sobreviventes que através do empreendedorismo são agentes ativos de uma transformação profunda na comunidade.
Ana Carolina Miranda, de 29 anos, mais conhecida como Carol do Bronze, carrega uma história que também se repete em tantas mulheres da favela. Mãe solo de dois filhos, viu na dificuldade uma oportunidade de se reinventar. Começou no bronzeamento por incentivo da tia, que depois desistiu do negócio. Carol, então, agarrou aquela chance com unhas e dentes. “Tem dia que o movimento tá lá em cima, tem dia que tá lá embaixo. É nesses dias que a gente pensa em desistir, mas não pode. Desistir não é opção”, afirma.
Seu estúdio, o ElasBronze, se tornou muito mais que um espaço de estética, nas palavras dela, é um lugar de cura. “Aqui, a cliente não vem só pela marquinha. Muitas vêm pra desabafar, pra se sentir ouvida, acolhida. Às vezes saem daqui chorando, mas saem melhores. É sobre levantar autoestima, sobre se olhar no espelho e se reconhecer bonita, poderosa.”

Para João Victor Xavier, da loja de roupas Verde e Rosa, João Victor entende que, para quem nasce e cresce na favela, a vida exige mais do que força de vontade, exige sagacidade. Com apenas 23 anos, ele já carrega a experiência de quem precisou aprender desde cedo a aproveitar cada oportunidade que surgia. “A vida é uma escola. Quando a oportunidade aparece, a gente tem que estar pronto pra agarrar. Foi assim comigo e é isso que eu sempre tento passar pra quem me acompanha, pros meninos que olham pra mim hoje como inspiração”, afirma o jovem empresário, hoje dono do Grupo Verde e Rosa.
João chegou à comunidade ainda criança. Começou ajudando no ferro-velho da família, mas a visão empreendedora o levou além. “Daqui saiu tudo. A doutrina, o respeito, o amor ao próximo. Tudo que eu aprendi foi aqui”, lembra. Hoje, João não é só dono de uma loja. Ele comanda um grupo com loja física, loja online, casa de shows e, em breve, uma linha infantil. Suas redes sociais somam milhares de seguidores, e ele entende perfeitamente o peso que carrega. “Eu sei que tem criança me olhando e pensando: ‘Se ele conseguiu, eu também posso’. Por isso, cada coisa que eu falo, cada atitude que eu tomo, tem que ser pensada. A gente é exemplo.”

Ausência do apoio institucional
Por trás dessas histórias, há um ponto em comum: a ausência de apoio institucional. “A gente aprendeu na marra. Não tinha quem dissesse o que fazer. Era errar, perder dinheiro, tentar de novo. E só acertar uma vez. A vida é esse jogo”, resume Elton. Dados confirmam essa realidade. Segundo o Sebrae, 47% dos empreendedores negros que tentaram crédito tiveram seus pedidos negados. Mais da metade empreende por necessidade, e a informalidade ainda atinge 82% deles. “No início, eu não sabia nem como calcular preço, como comprar estoque. Só comprava e vendia, mas não sabia que tinha que guardar dinheiro, reinvestir. Fui aprendendo apanhando”, relembra João.
Se falta apoio institucional, a solidariedade da comunidade não falha. Clientes e vizinhos ajuda, acreditam, incentivam os negócios ao vivo e nas redes. A marca Verde e Rosa transformou seu Instagram em vitrine, palco e manifesto. “A gente não vende só roupa. A gente vende história, vende autoestima, vende identidade. O cliente compra a peça, mas compra também um pedaço da nossa caminhada.” O samba, o carnaval, as cores da escola de samba se refletem nas roupas, no nome das marcas, no espírito de resistência. João é direto quando fala disso: “A Mangueira não é só um lugar. É um sentimento. E quem carrega isso no peito nunca tá sozinho.”
Carol complementa, lembrando que sua missão vai além do bronze. “Eu sou da igreja. E, sim, já ouvi muito comentário maldoso dizendo que não combinava ser evangélica e trabalhar com bronze. Mas eu separo. A igreja é uma coisa, o trabalho é outra. E meu trabalho é sobre fazer mulheres se sentirem bem, se sentirem lindas.”
Elton planeja ampliar a creche, abrir turmas para crianças maiores e, quem sabe, criar um centro de capacitação financeira e emocional para outros moradores. Carol quer sua casa própria, estabilidade para os filhos e, no futuro, fazer ação social, ajudar outras mulheres a empreender. João mira mais alto: “A meta é abrir mais lojas, em outros lugares, mas sempre com a raiz aqui. Porque daqui eu não saio. A Mangueira é minha origem é minha força.”
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